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A teoria do bem jurídico nos regimes totalitários do século XX

Com o movimento espiritualista neokantiano, o conceito de bem jurídico se desmaterializa em definitivo, convertendo-se em instrumento autorreflexivo de legitimação política dos valores acolhidos pelas normas positivas. Nesse ponto, na análise de Ferrajoli, o bem jurídico perde a capacidade de atuar como critério de delimitação e deslegitimação

externa da intervenção penal e chega ao fim de sua parábola evolutiva.130

Diante disso, os juristas do regime nacional-socialista, no marco do modelo acentuadamente subjetivista do Direito Penal da vontade, viram-se livres para decretar o arquivamento da categoria e a sua substituição pelas noções de “violação do dever”, “desvalor

da atitude interna” e “infidelidade” ao Estado ou ao seu chefe.131 Era o fundo do poço para a

teoria do bem jurídico.

A ciência penal, no contexto da ditadura nazista, assistiu à controvérsia entre a Escola de Marburgo e a Escola de Kiel a respeito da manutenção da noção de bem jurídico. Para os membros da Escola de Marburgo, não se fazia necessário abandonar o conceito de bem jurídico, mas apenas superar sua origem individualista, como pretendeu Binding. Dessa

127 MANTOVANI, Ferrando. Parte generale. 3. ed. Padova: CEDAM, 2011. (Diritto penale.). p. 202.

128 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 38. Observa-se, nesse aspecto, a influência de Hegel e sua noção de “espírito objetivo que vive historicamente”. 129 MARQUES, Daniela de Freitas. Elementos subjetivos do injusto. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 50. 130 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan

Choukr, Juarez Tavares e Luis Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 376. 131 Ibid., p. 376.

forma, o Direito Penal deveria ser orientado à tutela dos bens do Estado, preponderantes em relação aos individuais. 132

Fiéis ao pensamento teleológico neokantista, os penalistas da Escola de Marburgo tentaram demonstrar a adequação da categoria ao espírito próprio do Direito Penal de um Estado totalitário. Contudo, fizeram-no “em termos tais que a sobrevivência do conceito de bem jurídico só foi possível à custa do total esvaziamento do seu conteúdo material e da sua

inocuidade do ponto de vista de garantia e de crítica”133.

Já os penalistas da Escola de Kiel viam na teoria do bem jurídico um inimigo a ser eliminado, em razão de seu legado liberal e individualista. Por isso, rejeitavam a aplicação de qualquer das suas formulações à dogmática jurídico-penal, reputando-as inconciliáveis com a

nova ordem.134 A partir daí, a noção liberal de crime como ofensa a bens jurídicos foi

substituída pela de “violação ao dever de fidelidade ao Estado ético, personalizado no

Führer”. Por outro lado, o critério para determinar a danosidade social do comportamento

punível passou a ser o “são sentimento do povo”.135

Nesse contexto, autores como Schaffstein e Dahm procuraram reestruturar a teoria da norma penal, de maneira que ao Direito Penal fosse atribuída uma tarefa dita “moralmente mais elevada”. Assim, a função da norma penal não seria mais apenas preservar determinados bens materiais, mas impulsionar a nova moralidade nacional-socialista, por meio da repressão

dos sintomas da vontade infiel136.

Ademais, a consumação do delito passa a prescindir da lesão efetiva ou potencial de qualquer bem da vida, sendo suficiente, para tanto, a manifestação da vontade rebelde. Os bens e interesses, individuais e coletivos, perderam toda a relevância para a existência do delito, já que a essência do crime estava no dever que é imposto ao indivíduo como decorrência do seu papel na comunidade. Dentro dessa lógica, a punição do falso testemunho, por exemplo, não guarda qualquer relação com o interesse coletivo pela administração da justiça, justificando-se em razão do desrespeito ao dever do cidadão de lealdade ao Estado administrador da justiça.137

132 ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em Direito Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 68.

133 Id. A nova lei dos crimes contra a economia (Dec.-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro). In: VÁRIOS. Problemas

Gerais. Coimbra: Coimbra Editora, 1998. p. 393. (Direito Penal económico e europeu: textos doutrinários; 1).

134 ANDRADE, op. cit., p. 68.

135 FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo. Diritto penale – Parte generale. 3. ed. Bologna: Zanichelli, 1995. p. 11.

136 MANTOVANI, Ferrando. Parte generale. 3. ed. Padova: CEDAM, 2011. (Diritto Penale). p. 195. 137 GREGORI, Giorgio. Saggio sull’oggetto giuridico del reato. Padova: CEDAM, 1978. p. 34-36.

As consequências nefastas do abandono da teoria do bem jurídico pelo Direito Penal nazista são bem conhecidas: a punição do crime impossível e dos atos preparatórios, como, por exemplo, o planejamento do homicídio de qualquer líder do regime nacional-socialista; a criminalização de condutas, até então, juridicamente irrelevantes, como a prática de relações sexuais entre arianos e não arianos; o estabelecimento de um Direito Penal de autor, no qual o

delito é expressão de um “sentimento jurídico depravado”, entre outras138.

Além do conceito material de crime, esfacelado diante da prevalência da noção de vontade desleal ou infiel ao Estado sobre a de fato socialmente danoso, o conceito formal de crime também desaparece. Isso porque o princípio da legalidade foi aniquilado e, diante da ausência de separação de poderes, era possível aos juízes e ao próprio Führer aplicar penas sem lei anterior que as previssem, via raciocínio analógico, visando à prossecução dos

objetivos do nacional-socialismo139.

O regime fascista na Itália, por sua vez, não teve grandes dificuldades em conviver com o pensamento da autodenominada Escola Técnico-Jurídica, enunciada por Rocco em 1910 como reação à filosofia liberal de Carrara. De fato, diferentemente das Escolas de Marburgo e Kiel, a Escola Técnico-Jurídica não se prestou à conformação de todo o Direito Penal aos fins do Estado totalitário, mas, assim como a Escola de Baden, foi incapaz de resistir ao avanço autoritário e defender o Estado de Direito:

[...] o neokantismo y o tecnojuridicismo foram interessantes discursos de burocracias acadêmicas e judiciais, inteligentemente montados, com os quais se logrou estabelecer um status quo de baixa agressão às agências políticas autoritárias, preservando seus espaços institucionais. De modo algum deram lugar a um direito penal do estado de direito, pois foram incapazes de defendê-lo, não se podendo sustentar o contrário só porque sem eles o direito penal estaria ainda mais submetido ao arbítrio dos respectivos estados policiais. Se esse último fosse verdade, o máximo que demonstra é que foi um método conjunturalmente útil.140 (tradução nossa)

138 PELARIN, Evandro. Bem jurídico-penal. Um debate sobre a descriminalização. São Paulo: IBCCRIM, 2002. p. 74-75; BACIGALUPO, Enrique. Manual de Derecho Penal. Parte general. Bogotá: Temis, 1994. p. 10-11. 139 KAUFMANN, Arthur. A problemática da Filosofia do Direito ao longo da história. In: KAUFMANN,

Arthur; HASSEMER, Winfried (Org.). Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito

contemporâneas. Trad. Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira. Rev. e coord. António Manuel Hespanha.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 124.

140 No original: “[…] el neokantismo y tecnojuridicismo fueron interesantes discursos de burocracias académicas y judiciales, inteligentemente montados, con los que lograron establecer un statu quo de baja agresión con las agencias políticas autoritarias, preservando sus espacios institucionales. En modo alguno dieron lugar a un derecho penal del estado de derecho, pues fueran incapaces de defenderlo, no pudiendo sostenerse lo contrario sólo porque sin ellos el derecho penal hubiese estado aun más sometido al arbitrio de los respectivos estados policiales. De ser verdad esto último, lo máximo que demuestra es que fue un método coyunturalmente útil.” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal. Parte General. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. p. 344).

O Código Penal Italiano de 1930 ou Código Rocco é o grande monumento penal do fascismo. Nele, a tutela do Estado se sobressai como a única missão do Direito Penal,

atribuindo-se um sentido particularmente autoritário a cada um dos tipos penais clássicos.141

Nesse sentido, em comentários à parte especial do diploma fascista, Rocco indicou como objeto jurídico dos delitos de homicídio, lesão, coação e furto não mais a vida humana, a integridade pessoal, a liberdade individual e a propriedade privada, mas o “interesse do Estado na segurança das pessoas”, o “interesse do Estado em garantir a liberdade individual”

e o “interesse público na inviolabilidade dos bens patrimoniais”142. Além disso, o estupro era

tido como atentado contra a moralidade pública e os bons costumes; o aborto atingia a saúde e a integridade da estirpe – valores que se identificavam com o interesse demográfico do Estado

– todos esses bens jurídicos da nação143.

Sob a égide dos regimes ditatoriais socialistas, a dogmática jurídica assumiu uma posição aparentemente contraditória em relação à teoria do bem jurídico, porquanto a concepção de crime na doutrina marxista se opôs ao sistema liberal clássico ao mesmo tempo em que o retomou e resignificou. Por conseguinte, o conceito de bem jurídico manteve a sua definição tradicional quando considerado isoladamente, mas adquiriu um esquema dogmático

novo no interior do sistema penal revolucionário.144

Como resultado da interpretação dialética fornecida pela dogmática marxista aos conceitos jurídico-penais, verifica-se a conservação e defesa de um sólido fundamento objetivo para a noção material de crime, representado pela desconformidade do comportamento aos interesses econômico-políticos da classe operária (a edificação do Estado Socialista, o bem comum do povo trabalhador, etc.). Assim, todos os bens jurídicos defendidos pelo ordenamento jurídico foram reduzidos a um só bem onicompreensivo – o interesse social – de forma que o único limite substancial reconhecido ao enquadramento típico era a não periculosidade da conduta em relação aos interesses fundamentais do Estado.145

O novo regime político instaurado com o advento da Revolução Russa de 1917 rechaçou em grande parte o Direito Penal liberal, tachando-o de “burguês”, “classista” e vocacionado à defesa da propriedade privada e dos interesses capitalistas das classes

141 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal. Parte General. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. p. 339.

142 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Trad. Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luis Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 375.

143 PELARIN, Evandro. Bem jurídico-penal. Um debate sobre a descriminalização. São Paulo: IBCCRIM, 2002. p. 74.

144 GREGORI, Giorgio. Saggio sull’oggetto giuridico del reato. Padova: CEDAM, 1978. p. 39. 145 Ibid., p. 41-42.

privilegiadas. O Código Penal russo de 1922 trazia uma concepção substancial ampla de crime, fundada na “perigosidade” do fato e do agente para a ordem jurídica instituída pelo poder operário. Com base nessa definição, permitia-se a punição de fatos não criminalizados pela lei, “mas que se mostrassem, a critério do juiz penal, ‘perigosos’ para os fins a serem

alcançados pela revolução”146.

Observa-se que, durante o socialismo soviético, o conceito de bem jurídico, quando mantido, teve seu conteúdo condicionado ao perfil das diferentes fases do processo revolucionário. De uma maneira geral, o crime foi definido como fato antissocial, perigoso para os interesses do proletariado e para a edificação do Estado socialista. Todavia, o juízo de periculosidade aos interesses da revolução proletária não se restringia ao fato, incidindo também sobre o autor. Dessa forma, o criminoso era o contrarrevolucionário a serviço do capitalismo.147

Segundo Mantovani, nos países comunistas, o crime não era mera violação do dever,

mas, antes de tudo, fato socialmente perigoso148. Por conseguinte, a ilicitude material possuía

acentuado relevo, tanto que, após a restauração do princípio da legalidade na década de 1960 na União Soviética, ao juiz foi autorizado deixar de considerar crime um fato formalmente previsto, caso não se revelasse “socialmente perigoso”. Conforme esclarece Battaglini, “O direito soviético inspira-se essencialmente no princípio da conformidade com o escopo

revolucionário (“rievtsielesobraznot”), antepondo, assim, o problema da valoração substancial

ao da interpretação formal”149 (itálico no original).

Anota-se que essa concepção substancial de crime também está presente no Código Penal cubano em vigor, que, ao definir crime, exige, para além da tipicidade formal, que o fato seja “socialmente perigoso”. No entanto, o códex cubano permite a aplicação de medidas de segurança antedelictum, independente da prática de fato previsto como crime, aos sujeitos

considerados “perigosos” e aos “indivíduos antissociais”.150

Pelo exposto, resta evidente que, por dois séculos, o conceito de bem jurídico recebeu as mais variadas definições e conteúdos, provando-se volátil ao ser acolhido tanto por regimes democráticos quanto autoritários. Logo, dependendo da configuração político- ideológica, a teoria do bem jurídico foi instrumentalizada com o fim de atender a interesses

146 SALES, Sheila Jorge Selim de. Um estudo sobre o significado ideológico da parte especial do Código Penal nos (ex) países socialistas não democráticos. In: SALES, Sheila Jorge Selim de. Escritos de Direito Penal. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 65.

147 Id. Princípio da efetividade no Direito Penal e a importância de um conceito garantista do bem jurídico-penal.

Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 95, v. 848, p. 416-435, jun. 2006. p. 427.

148 MANTOVANI, Ferrando. Parte generale. 3. ed. Padova: CEDAM, 2011. (Diritto Penale). p. 181-183. 149 BATTAGLINI, Giulio. Direito Penal. Trad. Paulo José da Costa Júnior. São Paulo: USP, 1973. v. 1. p. 139. 150 SALES, op. cit., p. 77-78.

conflitantes, como os de classe da burguesia, da revolução do proletariado e do Estado nazifascista.

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