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A Política Externa da Rússia para a Geórgia

Capítulo 4. O pragmatismo e o multivetorialismo na política externa Putin-Medvede

4.2. A política externa da Rússia para a Comunidade dos Estados Independentes

4.2.3. A Política Externa da Rússia para a Geórgia

“Em Novembro de 2003 a ‘Revolução Rosa’ aconteceu na Geórgia, onde ao lugar do evasivo Eduard Shevardnaze, oscilando entre o Ocidente e Moscovo, chegou o político estritamente pró-ocidental […] Mikhail Saakashvili” (Dugin, 2016: 118). “As reformas trazidas pela Revolução Rosa e pelo governo pró-democrático de Saakashvili permitiram melhorias substanciais ao nível da estabilidade interna, facilitando o investimento estrangeiro, enquanto os rendimentos das taxas de trânsito dos gasodutos e oleodutos asseguraram elevados rendimentos ao governo. […] Mas os territórios autoproclamados independentes, Abcázia e Ossétia do Sul, e a falta de concordância relativamente a um estatuto político para os mesmos têm marcado profundamente a história da Geórgia pós-soviética” (Freire, 2011: 101).

“Depois de chegar ao poder, Saakashvili dirigiu-se rapidamente para um veloz afastamento da Rússia, para as relações mais próximas com os EUA e a NATO92; […] [Saakashvili] começou a sabotar ativamente quaisquer iniciativas integracionais no quadro da CEI e tentou infundir nova vida à unificação essencialmente anti-russa […] dos governos da CE com o bloco GUAM: Geórgia, Ucrânia, Azerbaijão e Moldávia”

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Em Abril de 2008, ou seja, poucos meses antes da guerra Russo-geórgiana, a NATO aceitou na reunião de Bucarest o princípio de adesão da Geórgia à organização (Mazat e Serrano, 2012: 31).

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(Dugin, 2016: 118-119). Este curso pró-ocidental da Geórgia tem sido motivado em grande medida pelos já referidos sentimentos anti-russos e pelo desejo de distanciamento absoluto do velho império. Os discursos de afrontamento a Moscovo são frequentes, discorrendo velhos receios de políticas imperialistas neocoloniais russas que procuram legitimar a necessidade de integração célere nas estruturas ocidentais. Deste modo, a retórica anti-russa marcou um relacionamento difícil com Moscovo ao longo da presidência Putin-Medvedev (Freire, 2011: 101). “Diante deste posicionamento de Saakashvili, as relações Rússia-Geórgia deterioraram-se e Moscovo foi usando vários meios para pressionar Tbilisi, principalmente, apoiando os movimentos separatistas como foi o caso da intervenção militar russa na Geórgia em apoio aos movimentos separatistas da Ossétia do Sul e da Abcázia, em 2008” (Wache, 2014: 144-145).

Desde o início da sua presidência, Saakashvili declarou o objetivo de reintegração e recuperação do controlo dos territórios separatistas como uma das suas principais prioridades. Contudo, tendo em conta que este objetivo sempre foi fonte de crispação, em particular com a Rússia, cujo apoio às autoridades separatistas se manteve de forma continuada - como atesta o discurso abaixo -, Saakashvili foi forçado a desenhar várias propostas de partilha de poder que foram apresentadas às autoridades locais e, estas propostas sempre encontraram reação negativa, com base no pressuposto de que apenas a independência é uma solução negociável (Freire, 2011: 102).

Por sua vez, na mesma linha de pensamento e simpatia de Putin pelas regiões separatistas, o então ministro da defesa da Rússia, Anatoliy Serdyukov proferiu as seguintes palavras: “Não deixaremos nossos pacificadores e cidadãos russos desprotegidos” (Folch, 2009). A permanência nestes territórios de forças de manutenção da paz russas, sob a bandeira da CEI, representa o controlo de uma área que a Federação Russa cunha como vital para os seus interesses nacionais (Freire, 2011: 102). Mas também pode ser interpretada como uma demostração clara da reafirmação geopolítica russa em relação a NATO e aos seus membros na região e na arena internacional (Mazat e Serrano, 2012: 30).

Entretanto, com o passar do tempo, as tensões e trocas de acusações entre a Geórgia e as regiões separatistas apoiadas por Moscovo iam se agudizando, e no inicio

“A Rússia reconheceu a independência da Abcázia [e da Ossétia do Sul] e pretende e dará todos os benefícios econômicos, políticos e, se necessário, militares a estes territórios”, disse Putin em uma coletiva de imprensa na capital da Abcázia, Sukhumi (Bryanski, 2009).

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de Agosto de 2008, as tensões transformaram-se num conflito entre a Rússia e Geórgia, que por sua vez transformou-se num evento extremamente importante, de um ponto de vista geopolítico. A 7 de Agosto, a Geórgia avançou com uma operação para tomar a Ossétia do Sul. Na noite de 8 de Agosto, o fogo dos foguetes começou em Tskhinvali […], e depois as tropas georgianas começaram o seu assalto à cidade usando tanques. Neste mesmo dia elas tomaram a cidade e começaram a exterminar a população. As tropas georgianas também submeteram uma localização dos soldados da paz russos a disparos […], entre os quais houve baixas significativas. De acordo com os conceitos internacionais, isto significou a declaração de guerra da Geórgia a Rússia (a condução de operações militares contra as forças armadas regulares de um país estrangeiro). Em resposta a esta provocação, ainda a 8 de Agosto, Moscovo conduziu um contingente militar para a Ossétia do Sul […], e a 9 de Agosto, as tropas russas aproximaram-se de Tskhinvali, entraram em conflito com as tropas georgianas e começaram a libertar a cidade e todo o território da Ossétia do Sul da presença georgiana. Simultaneamente, as tropas russas entraram no território do Vale de Kodori e destruíram as bases militares georgianas que ai havia (Dugin, 2016: 126-129).

“Encontrando-se em guerra com a Geórgia, as tropas russas […] começaram a avançar para a capital da Geórgia, Tbilisi, mas depois de penetrarem profundamente no território do seu inimigo, mais tarde retiraram-se e voltaram para dentro das fronteiras da Ossétia do Sul e da Abcázia. Mais tarde, Dmitry Medvedev explicou que a cessação da incursão na Geórgia, que tinha todas as hipóteses de terminar em vitória da Rússia, tinha sido uma realização pessoal. A 26 de Agosto de 2008, a Rússia reconheceu oficialmente a independência da Ossétia do Sul e da Abcázia nas fronteiras existentes na altura” (ibid). Por sua vez, os Estados Unidos e os países europeus marcaram sua desaprovação em relação à intervenção russa, porém, não se envolveram diretamente no conflito, e em revelia a Rússia, não reconheceram a independência da Abcázia e da Ossétia do Sul (Mazat e Serrano, 2012: 31). Como já analisada na política externa da Rússia para a Ucrânia, esta postura mansa do Ocidente perante a feroz Rússia, é percepcionada pelo Kremlin como um sinal de fraqueza. Se o Ocidente tivesse adoptado uma postura severa a quando da intervenção russa na Geórgia, provavelmente hoje a Crimeia não faria parte do território russo. E se no futuro, o Ocidente quiser travar Putin no espaço pós-soviético, este deverá adoptar uma postura mais contundente, caso contrário, só poderá esperar mais incursões russas, e possivelmente mais tentativas de redesenhar as fronteiras do espaço pós-soviético com base numa identidade plástica e

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ambígua. Para Daalder et al, caso as aspirações revisionistas da Rússia não sejam contidas, “estas políticas russas representam um perigo claro para a segurança europeia, para a comunidade do Atlântico Norte, assim como para os vizinhos da Rússia na Eurásia” (2015: 73).

De acordo com Kakachia, a invasão da Geórgia por parte de Moscovo se inseria num “ajuste de contas por causa do Kosovo. Se o Kosovo podia ser declarado independente com o aval do Ocidente, então a Ossétia do Sul e a Abcázia podiam ser declaradas independentes sob patrocínio da Rússia. Quaisquer objeções por parte dos Estados Unidos e da Europa apenas confirmariam a sua hipocrisia” (2008: 36).

No contexto pós-Guerra Fria, a guerra russo-georgiana representa o “ponto mais baixo das relações Rússia-Estados Unidos” (Mankoff, 2009: 104). De igual modo, posicionou-se como o primeiro caso de fracasso total da estratégia de enfraquecimento sistemático da Rússia adoptada pelos Estados Unidos no pós-Guerra Fria (Mazat e Serrano, 2012: 31). Foi também na intervenção da Rússia na Geórgia que pela primeira vez as forças armadas russas, sob os comandos de Medvedev, foram além das fronteiras da Federação, não tendo temido a pressão ocidental e uma ameaça dos EUA (Dugin, 2016: 129). “Outra grande lição da intervenção russa na Geórgia foi que o Cáucaso tinha voltado a ser zona de controle russo. A Segunda Guerra russo-georgiana foi para a Rússia, principalmente, uma forma de conter o processo de expansão da NATO no Cáucaso” (Mazat e Serrano, 2012: 31).

Esta análise é confirmada pelo discurso pronunciado pelo então Presidente Medvedev em 2011, no qual ele afirma o seguinte:

Com este discurso, Medvedev deixa claro quais são os reais objetivos da política externa russa não só para Geórgia como também para toda a CEI, o de travar a expansão da Aliança Atlântica em direção ao seu estrangeiro próximo e consequentemente as suas fronteiras. Por outro lado, segundo Mazat e Serrano, “é importante sublinhar que o Cáucaso é um corredor essencial para o transporte do petróleo do mar Cáspio, assim como do gás da Ásia Central. Os europeus enxergam na Geórgia um parceiro

“Se tivéssemos fraquejado em 2008, hoje existiria uma outra realidade geopolítica [no Cáucaso] e o mais provável é que já estivessem na Aliança Atlântica uma série de países que [a Aliança] tentou empurrar artificialmente para o seu seio… eles [a Aliança], na realidade, estavam à espera de uma resposta completamente diferente… e enganaram-se nos cálculos. Isto ficará na história, digam lá o que disserem” (Milhazes, 2011).

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fundamental para a sua estratégia de diversificação do abastecimento energético. Os Estados Unidos consideram que […] [a Geórgia] é a peça essencial no Cáucaso para lutar contra a hegemonia russa no transporte do gás para a Europa. O traçado de Nabuco, grande projeto de gasoduto promovido pelos Estados Unidos […] passa pelo território georgiano” (Mazat e Serrano, 2012: 31-32). Portanto, “ao controlar a Geórgia, a Rússia poderá bloquear os recursos da Ásia Central e do mar Cáspio para isolar o Azerbaijão e os países da Ásia Central e reforçar o seu peso energético na Europa” (Kakachia, 2008: 35), por outro lado, ao controlar a Geórgia, a Rússia frustra a já mencionada estratégia norte americana de enfraquecer Federação na região.

“Após a crise de Agosto, a emergência da Rússia como uma potência imperial, que tenta regressar às táticas da Guerra Fria para intimidar os vizinhos tornou-se um facto inegável. Esta orientação ficou confirmada depois de o então presidente russo Medvedev delinear cinco princípios da política externa da Rússia. As reivindicações russas de uma «privilegiada» esfera de influência dentro das fronteiras da antiga União Soviética, juntamente com a declaração do direito de intervir em nome dos cidadãos russos fora das suas fronteiras, geraram expressões de confusão, consternação e rejeição na comunidade internacional. Muitos peritos acreditam que esta atitude da Rússia pode levar a uma nova desordem mundial” (Kakachia, 2008: 39-40).

E no entanto não é claro se a suposta unipolaridade que emanou do final da Guerra Fria realmente continua a existir aos olhos do Kremlin. Lavrov afirmou que o mundo unipolar deixou de existir imediatamente a seguir a Agosto de 2008, presumivelmente como consequência direta da vitória da Rússia contra a Geórgia. Desta forma, a Rússia emerge da «realidade do mundo multipolar», que, de acordo com esta versão, já é um facto e como tal não necessita de ser defendido. Portanto, o problema- chave não é a demolição da «hegemonia americana» que presumivelmente terá amadurecido depois de 1989, mas sim qual o tipo de ordem internacional que terá de substituí-la (Makarychev, 2009: 61).

Dito isto, os eventos de Agosto de 2008 marcaram sem dúvida o momento mais tenso na irreconciliável relação entre a Rússia e o Ocidente. De um lado estava o Ocidente a apoiar Saakashvili e do outro a Rússia a apoiar as repúblicas da Ossétia do Sul e da Abcázia. A colisão destes dois blocos antagónicos, com base nas proxy war, remete-nos ao período da Guerra Fria, onde estes dois campos de poder, adoptavam políticas predatórias um contra o outro com o propósito de enfraquecer a posição do seu

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adversário. Entretanto, diferentemente do resultado da Guerra Fria, desta vez, a vitória inequívoca foi para o lado de Moscovo, em detrimento de Washington. A vitória de Moscovo fez-se acompanhar por duas dimensões, sendo elas a militar e a político e diplomática. No que diz respeito a vitória militar, esta prende-se com o facto de o exercito russo ter derrotado as tropas georgianas equipadas com equipamentos de ponta financiados pelo Ocidente. Quanto a vitória político e diplomática, esta tem que ver com o fato do Kremlin ter conseguido evitar uma confrontação direta com o mundo ocidental através da proxy war, e em ter prevenido o surgimento de uma força anti-Rússia na região.

Deste modo, concluí-se que a política externa da Rússia para a Geórgia, é determinada pelos movimentos separatistas da Ossétia do Sul e da Abcázia, que têm o apoio da Rússia. Entretanto, surge a seguinte questão: por que é que com a Geórgia a Rússia não recorreu a energia como uma ferramenta de coerção, tal como o fez no caso da Ucrânia e da Bielorrússia? Na verdade, a Rússia até que tentou, mas não resultou.

“Em 2005, a Gazprom anunciou aumentos substanciais no preço do gás vendido para a Geórgia. Contudo, no inverno de 2005-2006, os pipelines que transportavam o gás russo para a Geórgia foram sabotados por indivíduos desconhecidos, levando ao corte temporário da exportação do gás para a pequena república. Em Novembro de 2006, após o fornecimento do gás à Geórgia retomar a normalidade, a Gazprom anunciou que cortaria o fornecimento de gás para a Geórgia até o final do ano, a menos que a Geórgia concordasse com uma subida dos preços na ordem dos 100% ou em vender o seu principal pipeline para a Gazprom” (Woehrel, 2009: 11).

No entanto, a posição geográfica da Geórgia, vizinha do Azerbaijão, país rico em energéticos, permitiu-lhe combater a pressão russa de forma mais eficaz do que outros países, [nomeadamente a Ucrânia e a Bielorrússia]. Mas, deve-se sublinhar que para que essa resistência fosse possível o aspeto que realmente jogou a favor da Geórgia foi o facto de este ser país de trânsito para o pipeline do Azerbaijão concluído em meados de 2006, que transporta 1 milhão de barris de petróleo por dia para o porto turco de Ceyhan (Pipeline Baku-Tbilisi-Ceyhan ou BTC). Acrescenta-se a este aspeto o

pipeline concluído no início de 2007, que inicialmente transportava 2,2 bilhões de

metros cúbicos de gás natural azerbaijano para a Geórgia e para a Turquia (Pipeline Baku-Erzurum). Ainda assim, deve-se ter em conta que ao seu favor a Geórgia também

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conta com o pipeline que transporta o petróleo de Baku para o porto georgiano de Supsa (ibid).

Figura 16. Pipelines azerbaijanos que passam pela Geórgia

Fonte: de Thomas (2010: 168).

Portanto, a localização geográfica da Geórgia no tabuleiro de xadrez eurasiático, permite-lhe contornar as pressões russas e assim evitar uma maior dependência face ao maestro da região transcontinental. Dai que, com a Geórgia a energia como instrumento de coerção não consegue materializar o principal objetivo da política externa da Federação Russa no espaço pós-soviético, - o de controlar o comportamento destes estados -, e para compensar esta lacuna da política externa russa para a pequena república, a Rússia é obrigada a recorrer a intervenção militar para defender o seu interesse nacional.