• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 1. Da URSS à Federação Russa: Novas Perspetivas sobre a Política Externa e

1.1. A Chegada de Mikhail Gorbatchev ao Poder: Perestroika e Glasnost

1.1.1. Novo Pensamento

Desde a chegada de Mikhail Gorbatchev ao posto de secretário geral do PCUS, reformas profundas vinham sendo implementadas internamente. Contudo, para Gorbatchev, não só transformações no plano interno eram necessárias, existia a necessidade de se modificar a estratégia de atuação da União Soviética nas relações internacionais. Gorbatchev desejava que as relações internacionais fossem normais e justas, e não a partir dos interesses nacionais das superpotências dominantes, e assim, mudando drasticamente a política externa soviética baseada no marxismo-leninismo do conflito irreconciliável entre o comunismo e o capitalismo, Gorbatchev desenha a sua política externa denominada o “novo pensamento” (novomyshlenie).

Segundo Rego (1999: 83), “o novo pensamento político modificou […] radicalmente a concepção soviética das relações internacionais, que passou a ser marcada por um entendimento humanista”.

Com a sua política externa, “Gorbatchev defendia a noção de mutua segurança coletiva com o Ocidente e a assinatura de uma série de acordos revolucionários de controle de armas com os Estados Unidos, assim como a retirada de militares da Europa e do Terceiro Mundo. ntroduzindo a ideia da “casa europeia comum”, Gorbatchev pretendia atingir a integração russo-europeia baseada nos princípios da democracia social europeia” (Tsygankov, 2010: 5).

26

“ nicialmente Gorbatchev planeava envolver o Ocidente através de múltiplas iniciativas de desmilitarização. Já em 1985, ele argumentava que a doutrina militar deveria tornar-se mais defensiva; anunciou uma moratória unilateral em ensaios nucleares; insistiu na necessidade de dissolver os blocos militares; e deu a conhecer a prontidão desproporcionalmente soviética de fazer grandes cortes nas suas forças convencionais. Seguiu-se propondo mudanças mais abrangentes durante os vários encontros com os líderes ocidentais. Em Janeiro de 1986, propôs eliminar todas as armas nucleares até 2000, e ofereceu alguns cortes em armas estratégicas” (Tsygankov, 2013: 43). Foi neste período que o Acordo Soviético-Americano de curto e médio alcance (INF) foi assinado durante a primeira visita oficial de Gorbatchev aos Estados Unidos em Dezembro de 1987. Este acordo incluía medidas que não apenas travariam a corrida armamentista, mas também a redução substancial dos arsenais de misseis soviéticos. Como Gorbatchev enfatizou na reunião do Politburo depois do seu regresso dos Estados Unidos: “A assinatura do Tratado NF foi um ponto crítico no nosso relacionamento com os americanos. O progresso nesta questão abriu o caminho para outras áreas do desarmamento nuclear, químico e convencional. Definiu o fundo para uma abordagem igualmente eficaz para resolver os problemas regionais e para o desenvolvimento... nossos laços bilaterais.” (Cherniaev, 2007: 126). A visita e sucessiva assinatura do Acordo Soviético-Americano de curto e médio alcance (INF) nos Estados Unidos, simbolizou o primeiro grande feito da nova política externa da União Soviética.

Entretanto, importa referir que quando Gorbatchev subiu ao poder, já há cinco anos que as forças armadas soviéticas lutavam no Afeganistão. Uma vez no poder, ele define o problema do Afeganistão como a sua principal prioridade. É deste modo que, embora anos mais tarde, de acordo com Makarychev, “em Fevereiro de 1989, a União Soviética retirou as suas tropas do Afeganistão” (2010: 494). Gorbatchev acreditava que a vitoria militar no Afeganistão era impossível e, não importava quantos militares a URSS tivesse no terreno, era simplesmente impossível de se vencer. Manter as tropas no Afeganistão, só aumentaria a presença dos Estados Unidos na região, e ao mesmo tempo incitaria o mundo muçulmano contra a URSS.

Contudo, Gorbatchev não parou por aqui, “em 1991, comprometeu-se em reduzir unilateralmente as suas forças de 500.000 homens, em retirar as suas divisões blindadas e aéreas de assalto da República Democrática Alemã, Checoslováquia e

27

Hungria10. Esta foi uma impressionante prova da nova abordagem de política externa da União Soviética, que foi amplamente reportada pelos meios de comunicação” (Cherniaev, 2007: 127-128).

“Desde o início, as maiores expectativas de Gorbatchev estavam associadas com o progresso das relações soviéticas com a Europa Ocidental. Por um lado, ele queria aliviar a Europa dos braços dos arsenais formidáveis acumulados no seu território. Por outro lado, o potencial econômico da Europa Ocidental poderia ser útil na transformação da economia e torná-la mais eficaz. Finalmente, a Rússia historicamente, antropologicamente e culturalmente faz parte da Europa” (ibid, 2007: 131).

Entretanto, Tsygankov relata que “apesar de todos esses esforços, os líderes ocidentais não foram tão cooperativos como Gorbatchev esperava. Embora Ronald Reagan e a primeira ministra britânica Margaret Thatcher gostassem da personalidade de Gorbatchev, eles não se sentiam convencidos com os seus argumentos contra a dissuasão nuclear e as armas nucleares como um ‘mal absoluto’. Reagan e Thatcher não acreditavam na sinceridade da União Soviética quanto renuncia da “Doutrina de Brejnev” na Europa Oriental ou retirada das suas tropas do Terceiro Mundo. O núcleo de desconfiança tinha que ver com a natureza incerta da reforma soviética e o receio dos conservadores retornarem ao poder” (2010: 41).

“Esta política conciliadora de Gorbatchev terminou com a Guerra Fria, mas também teve as suas consequências totalmente inesperadas para a sua administração: os governos comunistas da Europa do Leste foram derrubados durante o período de 1989- 1990. O motivo disso foi a recusa da Doutrina Brejnev por parte de Gorbatchev e a proclamação do principio do “direito soberano de cada povo eleger o seu próprio sistema social”. De acordo com este principio, a União Soviética não tentaria restabelecer o governo comunista na Europa do Leste, nem impediria a reunificação da Alemanha. Além disso, em meados de 1990, Gorbatchev e o Chanceler Alemão Helmut Kohl firmaram um acordo em virtude do qual a União Soviética consentia com a entrada da Alemanha unificada na NATO” (Makarychev, 2010: 494).

Para Gorbatchev, a resposta da comunidade internacional - “de onde a União Soviética passou a fazer parte” - a agressão do Iraque ao Kuwait, era um sinal de mudanças radicais na política internacional. Ao seu ver, a condenação das nações ao

10

28

Iraque, era mais um impacto da nova política externa da União Soviética (Cherniaev, 2007: 138).

Ainda no âmbito do novo pensamento de Mikhail Gorbatchev, Makarychev aponta que “no inicio da década dos anos 90, foram desmanteladas as organizações internacionais da Europa do Leste controladas pelos soviéticos. Em Janeiro de 1991 se dissolveu o Conselho de Assistência Económica Mutua (CAME/COMECON), enquanto os estados membros que o formavam acordaram em restabelecer os vínculos multilaterais do mesmo. Em Julho de 1991, o Pacto de Varsóvia seguiu o exemplo […] nesse período, as relações EUA-URSS foram melhorando gradualmente. Em uma cúpula em Malta no final de 1989, Gorbatchev e o presidente George H.W. Bush declararam o fim da Guerra Fria” (2010: 494).

Segundo Cherniaev, três semanas antes do golpe de Agosto, Bush e Gorbatchev assinaram o tratado START I em Moscovo e discutiram os principais parâmetros para um sistema de segurança abrangente (2007: 138). “De acordo com as estipulações do tratado seria eliminado um grande número de misseis balísticos intercontinentais: as partes concordaram com a redução de cerca de 35 por cento dos mísseis norte americanos com ogiva nuclear e cerca de 50 por cento dos mísseis soviéticos com ogivas nucleares ao longo de um período de sete anos” (Makarychev, 2010: 494).

Ainda neste período de cooperação, a União Soviética solicitou a adesão ao FMI e ao Banco Mundial, bem como apelou para o G7. Foi neste contexto que, no verão de 1991, Gorbatchev participou da reunião do G-7 que teve lugar em Londres (Cherniaev, 2010: 139). Entretanto, Franciscon (2014: 239), relata que “a URSS não foi aceite economicamente no círculo das nações capitalistas desenvolvidas, não recebeu a ajuda financeira prometida pelo FMI e G7, e teve a sua área de influência ocupada diplomaticamente pelo Ocidente assim que se retirou dela”.

Em Novembro de 1990, os Estados Unidos, a União Soviética e a maioria dos estados europeus assinaram o Tratado sobre as Forças Armadas Convencionais na Europa (Tratado CFE), que previa a redução de vários tanques, veículos blindados, artilharia e aviões de combate. Ainda, no âmbito da política do “novo pensamento” de Gorbatchev, a União Soviética estabeleceu relações diplomáticas com a Arábia Saudita, Coreia do Sul e Israel (Makarychev, 2010: 494).

29

“Como uma das suas principais prioridades, Gorbatchev considerava o estabelecimento de relações estreitas com a China. Assim, a União Soviética resolveu uma série de problemas, que constituíam obstáculos nas relações sino-soviéticas: voltou atrás no apoio soviético à presença militar vietnamita no Camboja, e reduziu significativamente o número de armas e tropas posicionadas ao longo da fronteira norte com a China. Em troca, o governo chinês decidiu realizar uma cimeira com Gorbatchev em Pequim em 1989, que foi a primeira reunião entre os líderes soviéticos e chineses desde os anos 1950” (ibid).

Entretanto, criticas não faltaram ao novo pensamento de Gorbatchev, de acordo com Tsygankov, “os conservadores rejeitaram a ideia de que o Ocidente tinha feito uma contribuição para o desenvolvimento mundial e insistiram que a Rússia soviética tinha pouco a aprender com a modernidade ocidental. Para eles, a autoridade moral no mundo encontrava-se inquestionavelmente fora do Ocidente, o Ocidente era visto como uma comunidade inferior unida pela aspiração de se enriquecer à custa do mundo. A crise mundial diagnosticada por Gorbatchev não poderia ser resolvida por apelos ao próprio Ocidente. Para os estatistas, o novo pensamento tinha como resultado destruir as capacidades militares soviéticas e civilizacionistas, era o corroer do próprio espírito da sociedade soviética. Os nacionalistas religiosos, que seguiram a filosofia dos eslavófilos do século XIX e viam a Rússia como detentora de crenças religiosas ortodoxas corrompidas pelo cristianismo ocidental, reforçaram a posição destes últimos” (2010: 38-39).

Enquanto que os liberais, sob a liderança de Boris Yeltsin, criticaram exatamente o oposto dos conservadores. Eles insistiram que a filosofia de Gorbatchev não atribuía os mais comuns valores humanos da civilização ocidental. Na opinião de um estudioso, os valores humanos são aqueles “que se baseiam nos critérios da civilização ocidental, com os seus valores democrático-liberais e o seu nível de desenvolvimento científico- tecnológico”. Enquanto Gorbatchev estava propondo uma abordagem globalmente integrada baseada na noção de responsabilidade mútua, os liberais viam o Ocidente como a autoridade moral final e o modelo a seguir (Tsygankov, 2013: 41-42).

E como que se de um ultimo adeus se tratasse, “Gorbatchev preparou, em segredo, e de seguida anuncio em público, a convocação de um grande referendo

nacional […] para meados de Março de 1991. A questão central colocada ao eleitorado

30

“união federal”, ou separamo-nos todos em 15 países diferentes? (Sob o ponto de vista jurídico, a pergunta foi formulada assim: aprova, ou não, o projeto de Tratado de União

das Repúblicas Soviéticas Soberanas?). Com o anúncio público deste referendo, que se

considerava decisivo, começou o último ano da presidência Gorbatchev. Foi uma atitude cem por cento democrática. E era uma jogada política de grande coragem: ou tudo ou nada!” (Amaral, 2012: 63-64).

Rego conclui que, com esta visão gorbatcheviana, Gorbatchev rompia com o tipo de relações “taco-a-taco” e com toda a logica que tinha conduzido à corrida armamentista. Tinha, também, conseguido o apoio da opinião pública internacional, que via nele a solução para pôr fim ao terror coletivo que gerava a sombra da guerra nuclear. O Embaixador americano, George Kennan, declarou, que o novo entendimento das relações internacionais ia ainda mais longe do que as reformas económicas de Gorbatchev, depositando grandes esperanças nele (1999: 85-86).

Contudo, Tsygankov expõe que o novo pensamento não é tão impressionante em áreas fora da segurança. A preocupação de Gorbatchev com assuntos de controle de armas não o ajudou a reformar a economia soviética ou melhorar os padrões de vida das pessoas. Enquanto Moscovo estava ocupado a negociar questões de segurança com as nações ocidentais, a economia estava perdendo cada vez mais o controle, acabando por colapsar em 1990. Este desenvolvimento prejudicou Gorbatchev gravemente em sua capacidade de seguir o curso internacional originalmente concebido. Já em 1990, este curso estava a caminho de mudar do soviético em termos de iniciativa e projeto para em grande parte para o Ocidente-controlado. O líder do novo pensamento foi enfraquecido e teve de fazer muitas mais concessões aos líderes ocidentais do que ele imaginara. Ele não tinha mais a iniciativa ou autonomia política necessária para sustentar o seu curso, e o presidente dos EUA, George H. W. Bush no seu Estado da União correto proclamou a “vitória” do Ocidente na Guerra Fria. Além disso, a política externa de Gorbatchev não mobilizou a identidade cultural russa. Introduzida para revigorar a energia do país e a iniciativa social, o novo pensamento deixou os cidadãos profundamente divididos e inseguros sobre seu futuro. Já em 1989, 34% do público considerava que a União Soviética não poderia servir de exemplo para o mundo, em comparação com os apenas 5% em 1988 (2010: 23-24).

Resumindo, o novo pensamento de Gorbatchev não pretendia substituir o modelo soviético por um próximo ou similar ao ocidental. Mas sim devolver a União

31

Soviética ao circulo das nações desenvolvidas e ocidentais. Com o novo pensamento, Gorbatchev aspirava libertar a criatividade e o potencial humano da sociedade soviética, que na sua opinião havia sido suprimido pelo regime de Estaline. Com a sua nova política externa, Mikhail Gorbatchev realmente conseguiu romper com o antigo isolacionismo soviético baseado no conflito irreconciliável entre o comunismo e o capitalismo e garantiu uma melhoria radical na segurança militar.

Com os acordos de desarmamento, controle de armas nucleares, retirada das tropas soviéticas da Europa Oriental e do Terceiro Mundo e com a suspensão do financiamento aos regimes comunistas e ou socialistas, Gorbatchev conseguiu evitar a escalada de conflito, assim como poupar elevadas somas de dinheiro com o orçamento militar que durante muito tempo se afirmou corresponder ao calcanhar de Aquiles da economia Soviética. Contudo, se realmente fosse a maior fraqueza do regime soviético, com as suas reformas a economia soviética deveria ter-se robustecido, mas não, pelo contrario, esta estagnou. A URSS vendia armamento militar para a Europa e para o Terceiro Mundo, deixando de vender, Gorbatchev estava a abdicar de uma grande parte das receitas da União. Por sua vez, o desarmamento da URSS correspondeu a quase duas vezes mais do que o americano, e como se não bastasse, em seguida teve as suas áreas de influencia ocupadas pelo Ocidente. A verdade é que Gorbatchev desenhou a sua política externa sobre frágeis pressupostos. A situação da União Soviética ao invés de melhorar, deteriorou-se.

Por sua vez, os empréstimos solicitados por Gorbatchev nunca foram concedidos, e nem sequer a União Soviética foi aceite no circulo das nações capitalistas desenvolvidas. Gorbatchev falhou em reconhecer a União Soviética como um império. Convocar um referendo nas condições débeis em que a União Soviética se encontrava, forte nacionalismo nas repúblicas bálticas, na Geórgia, na Moldávia, fracasso económico, e descontentamento era um auto-suicídio, o que mais tarde culminou com a desintegração do Império Soviético e com o surgimento de quinze novos estados11. Gorbatchev fez com que os soviéticos perdessem a Guerra Fria para o Ocidente, e este por sua vez emergisse como a civilização triunfante e como o garante da paz no mundo.

11

Arménia; Azerbaijão; Bielorrússia; Estónia; Geórgia; Cazaquistão; Quirguistão; Letónia; Lituânia; Moldávia; Federação da Rússia; Tajiquistão; Turquemenistão; Ucrânia; e Uzbequistão (Brzezinski, 1997: 94).

32

Internamente Gorbatchev foi derrotado e obrigado a renunciar. A escolha óptima, seria Gorbatchev ter preparado a economia para as reformas e combater a corrupção. Mas, Gorbatchev aptou por arriscar uma grande posição conquistada em troca de ganhos incertos. Mais uma vez o premie parece ter avaliado mal a situação da União Soviética. Concluindo, as reformas de Gorbatchev foram um fracasso, isso porque elas não conseguiram alcançar o seu objetivo supremo de recuperar a União Soviética, pelo contrário, a economia colapsou e o império se desmembrou. Em pouco mais de cinco anos, Gorbatchev conseguiu acabar com um império com mais de setenta anos.