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Capítulo 3. O Eurasianismo e o Excecionalismo Russo

3.3. O Eurasianismo Clássico

“Entender o pensamento geopolítico russo, após uma grande ruptura, tal qual ocorreu com a URSS, exige a adoção de uma perspetiva distinta, uma vez que a Rússia sempre foi um ator importante e diferenciado do sistema internacional, principalmente, por seu conhecido espaço de influência que sofreu um duro golpe, tanto geográfico quanto político” (Teixeira, 2009: 131). “Após suplantar a grande crise dos anos de transição, a Rússia procura retomar a uma posição de destaque no cenário político-estratégico mundial, buscando reagir à ofensiva estratégica do Ocidente na Eurásia, representada, por exemplo, pela distribuição geopolítica das novas bases norte-americanas, ocorridas nos anos 1990, que correspondem a um ‘novo cordão sanitário’” (ibid, 2009: 137). Essa reação da jovem Rússia face as ações do Ocidente (liderado pelos EUA) tem encontrado uma forte estrutura de apoio no eurasianismo ou neo-eurasianismo de Dugin.

Segundo Matos, “o termo eurasianismo apresenta diversas acepções. Surge pela primeira vez no século XIX, cunhado pelo movimento eslavófilo que defendia a rica diversidade da Eurásia, numa espécie de outra via que não europeia ou asiática, e que juntasse a cultura e a tradição da Ortodoxia e da Rússia. Esse foi, pois, seu primeiro uso” (2012: 71).

Nos anos 1920, o movimento Eurasianista conseguiu juntar uma série de intelectuais de alto nível com um amplo espectro de áreas de interesse e especialização, como a geografia, economia, etnografia, linguística, filosofia, [musica], história, estudos da religião e orientalistas (Lemonte, 2013: 4). Dentre seus nomes mais destacados estão o do filólogo e etnólogo Nikolai S. Trubetskoy, o historiador Peter Savitsky, o teólogo

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ortodoxo G. V. Florovsky, um musico critico, Pyotr Suvchinsky e mais a frente, o geógrafo, historiador e filósofo Lev Gumilev (Matos, 2012: 70 e Silvius, 2014: 50).

“Estes teóricos do eurasianismo estudaram de modo aprofundado os impérios de Genghis Khan, Mongol e Otomano, e se encontraram mais de uma vez com Karl Haushofer. Baseado ainda na produção do inglês Halford Mackinder, essa primeira variante do eurasianismo, procurou estabelecer a identidade russa, distinta da ocidental e propugnava uma fusão das populações muçulmanas e ortodoxas [...]. Rejeitaram a proposta de integração russa à Europa, de Pedro, O Grande. Defendiam que a Rússia era, claramente, não europeia, que era um continente em si, separada objetivamente, tanto da Europa quanto da Ásia, pela geografia, e que teve sua cultura moldada por influências da Ásia” (Matos, 2013).

Segundo Lemonte (2013: 5), “a tradicional contraposição entre a Horda Dourada e o Estado Moscovita foi subvertida em seu princípio, pois de seu ponto de vista, ambas constituiriam uma só entidade. O estado moscovita teria sido algo continuísta, produto da síntese entre os elementos culturais eslavos e ‘turanianos’81, dando parto a uma civilização nova e original. Para os eurasianistas clássicos, então, a própria cronologia do surgimento da civilização russa é sujeita a um revisionismo historiográfico. O período kievano perde [a sua] importância sob esta ótica, já que só será considerada a emergência da civilização russa […] após o longo período da dominação mongol, no qual uma civilização caracteristicamente eurasiática teria emergido. O Império Mongol representa um elemento-chave na teoria de Trubetzkoy e de outros eurasianistas, fundamental para a defesa de certo relativismo cultural vis-à-vis a Europa e sua pretensão universalista para o resto do mundo não ocidental. O Império Mongol era a encarnação da figura de Genghis Khan, que teria sido o responsável por conferir à Rússia o seu senso de identidade cultural singular, além de um modelo de desenvolvimento estatal e controle territorial do espaço eurasiático. Para os eurasianistas é o Império Mongol que dota a Rússia de [uma] pretensão universalista, já que esta deveria necessariamente se transformar na força-motriz para a unificação do espaço eurasiático, sendo neste sentido uma herdeira deste mpério”.

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Com a revolução russa de 191782, e com o consequente fim da existência formal do Império Russo, juntamente com outros eurasianistas, Trubetskoy tentou adaptar o seu pensamento aos novos desafios da conjuntura internacional83. Perante este quadro, Trubetskoy defendeu que o conceito de separatismo era inaceitável, e insistiu na indivisibilidade da grande região que correspondia à Eurásia. Para o teórico, a globalidade geográfica, económica e étnica, distinta quer da Europa, quer da Ásia deveria ser preservada. Trubetskoy afirmava que “o substrato nacional do antigo Império Russo e o substrato nacional da atual URSS, só poderia ser a totalidade dos povos que habitavam este mesmo Estado, tido como uma nação multi-étnica peculiar e que, como tal, possuía o seu próprio nacionalismo. Na mesma linha de pensamento, Savitsky defendia que a Eurásia havia sido moldada pela natureza. Na sua visão a natureza havia condicionado e determinado os movimentos históricos e a interpenetração dos povos, cujo resultado foi a criação de um único Estado, que derivado da natureza, possuía a qualidade transcendente da mesma (Santos, 2004). Por sua vez, Gumilev defendia “a luta cultural e política entre, de um lado, o Ocidente e, de outro, o subcontinente da Eurásia, guiado pela Rússia” (Matos, 2012: 71).

“Os eurasianistas clássicos, também defenderam que o conflito civilizacional entre a Rússia e a Europa antecedem ao Eurasianismo. Os eurasianistas expandiram este tema falando do morrer do Ocidente e da iminente ascensão do Oriente” (Silvius, 2014: 51). “No campo da economia, esta primeira versão do eurasianismo defendia a existência da propriedade privada, mas apresentavam-se como adversários do ‘capitalismo puro’, e apelavam a uma cooperação entre as propriedades privada e estatal” (Milhazes, 2016: 42). “O corpo do trabalho do eurasianismo clássico pode ser considerado uma prolongada crítica a Europa, na qual a Rússia é concebida como uma entidade geocultural distinta, fora da esfera da civilização europeia” [...] Para os teóricos clássicos, “o eurasianismo constituiu uma versão da ideocracia russa - o reinado de uma

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Os eurasiáticos clássicos distinguiram a Revolução Russa em dois aspetos principais da mesma. Primeiro, como a representação do culminar da tendência de ocidentalização na história russa iniciada pelas reformas de Pedro, O Grande. Para os eurasiáticos, isso constituiu não só uma rebelião contra Deus em prol de objetivos seculares, mas também o início de uma profunda divisão entre uma elite educada, o governo e o povo russo. Em segundo lugar, a revolução destruiu a velha ordem e trouxe forças populares para a vida política russa. No entanto, sendo estranho ao povo russo, o bolchevismo serviu apenas como uma função temporária que seria substituída pelo eurasianismo, uma ideologia orgânica e religiosa mais próxima da perspetiva do povo russo. Ao suplantar os bolcheviques, os eurasiáticos "assegurariam a estabilidade de um Estado" orgânico "russo" (Silvius, 2014: 51-52)

83 Nesse período, os russos, antes considerados como os “donos e proprietários” de todo o território, passaram a ser considerados “um povo entre outros” que partilhavam a autoridade territorial (Santos, 2004).

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ideia abrangente, empregada por uma classe dominante (neste caso os eurasiáticos) e salvaguardada por um estado autocrático” (Silvius, 2014: 51-52).

Além desta primeira versão do eurasianismo, temos o atual eurasianismo ou neo- eurasianismo. De acordo com Matos, “o atual Eurasianismo, ou neo-eurasianismo, herda dos anteriores muitas de suas características, mas é distinto de ambos em vários sentidos” (2012: 72). O eurasianismo contemporâneo que na sessão que se segue passamos a discutir, é representado essencialmente por Aleksandr Dugin.

“Aleksandr Dugin pode ser caracterizado como geopolítico, filósofo, cientista político e sociólogo. Ele é também considerado um importante jornalista e analista político. É preciso enfatizar sua grande influência no pensamento geopolítico russo pós- soviético”. O seu pensamento de que a geopolítica não é somente uma ciência, mas possui muito de ideologia tem tido muita influência na política russa, e os seus livros tem sido utilizados pelas escolas geopolíticas militares e civis da Rússia. Na Rússia, Dugin tem ocupado vários cargos, de entre eles, pode-se destacar o de assessoria no Duma, onde teve e continua a ter muita influência junto aos assessores responsáveis pela política externa do governo […] [Putin-Medvedev], sendo considerado o idealizador oficioso dessa. Como será discutida na sessão que se segue, a influência de Dugin é vista nos pronunciamentos de ambos os líderes russos, quando abertamente falam do eurasianismo como o guia das relações internacionais da Rússia (Matos, 2012: 73).

De acordo com Teixeira, “Dugin é o principal defensor do neo-eurasianismo, assim como, Zbigniew Brzezinski, acredita que o centro do mundo é a Eurásia e por isso, a Rússia tem que ser o centro da Eurásia. Sua obra retoma o conceito geopolítico clássico de Halford Mackinder, a teoria da Heartland […]”. Do seu ponto de vista, “este é o momento da Rússia lutar pelo poder na região com os EUA, uma vez que com a sua posição geográfica e com os seus recursos naturais, é capaz de garantir aos povos e aos Estados vizinhos a soberania e a verdadeira segurança da região” (2009: 138-139). De igual modo, Dugin recupera a tese das Pan-Regiões de Haushofer (figura 8), e “a redesenha para defender, contra o mundo unipolar da globalização atual, um novo modelo de globalização multipolar” (Matos, 2012: 75).

“Esse novo pensamento geopolítico russo valoriza o fortalecimento do Estado Russo e a ampliação de sua área de influência, sobretudo no que se denomina de

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Eurásia, demonstrando assim o deslocamento geográfico da antiga área de influência soviética - o Leste Europeu - para a Ásia Central. O crescimento dos laços russos com os países da Ásia Central (Cazaquistão, Uzbequistão, Turquemenistão, Tadjiquistão e Quirguistão) e do Cáucaso (Armênia), revela-nos o estabelecimento de um novo eixo geopolítico. Ademais, promove fortes relações econômico-militares com países como o Irã[o] e a Índia e concretiza a Organização para Cooperação de Xangai (SCO) - […] [construção] geopolítica que poderá se tornar na maior aliança estratégico-geopolítica desde a criação da NATO -, que torna evidente que a Eurásia será o novo palco geopolítico do século XXI, com clara intenção russa de dominá-lo geoestrategicamente” (Sousa, 2012: 61).