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O Multivetorialismo e o Pragmatismo: vetores estruturantes da política

Capítulo 4. O pragmatismo e o multivetorialismo na política externa Putin-Medvede

4.1. O Multivetorialismo e o Pragmatismo: vetores estruturantes da política

“A política externa russa tem sido moldada de acordo com vários fatores, de caráter endógeno, apesar dos princípios e objetivos estruturantes pós-Guerra Fria

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permaneceram ao longo do tempo: autoritarismo, centralização e aumento de influência no sistema internacional. O que de fato tem mudado e conferido um sentido de algum desajustamento à formulação da política russa tem sido a conjugação de meios e oportunidades na definição e prosseguimento dos seus interesses. Em meados de 1990 houve uma alteração na orientação da política externa russa, como referido, com um tom mais assertivo e de reafirmação no que Moscovo define como o seu […] [estrangeiro próximo], numa lógica de reposição do status quo. Ou seja, a Federação Russa assume claramente uma linha de continuidade na definição estratégica do espaço da antiga União Soviética, que se mantém nos anos Putin” (Freire, 2011: 50). De facto, analisando os documentos fundamentais da política externa da Rússia durante a presidência Putin-Medvedev constata-se que a CEI, constitui a área de preferência da atuação russa, seguida das dimensões ocidental e oriental (Freire, 2009: 77-78). Entretanto, em algumas partes, chegava-se a criticar abertamente a estratégia adotada por Putin no início da década durante o auge do liberalismo ocidental. Citado por Jubran (2015: 88), Ivanov proferiu o seguinte:

Contudo, de acordo com Sergei Lavrov, ministro dos negócios estrangeiros da Rússia: “A política externa russa hoje é tal que, pela primeira vez em toda a sua história, a Rússia começa a proteger o seu interesse nacional usando as suas vantagens competitivas” (Yasmann, 2007). Para Freire, é “a combinação de fatores internos e externos que tem tornado possível este curso afirmativo, com ordem e crescimento a nível doméstico a sustentarem a procura de reconhecimento e legitimidade” (2011: 54).

Não obstante, “a chegada de Vladimir Putin ao poder e a recuperação econômica que se seguiu levaram ao abandono da estratégia da “colaboração” [com o Ocidente] e a uma tentativa de recuperação do poder do Estado russo e também a consolidação do seu papel de potência regional ao longo dos anos 2000. Naturalmente, esta mudança de estratégia foi acompanhada pela volta das tensões nas relações entre a Rússia e os Estados Unidos, que mantêm suas tentativas de enfraquecimento do poder russo. Da mesma forma, houve uma transformação das relações com os países europeus, mas de forma mais complexa, devido à interdependência econômica crescente entre a Europa e

“Levaram-se a cabo algumas metas irrealistas como, por exemplo, o estabelecimento apressado da ‘parceria estratégica’ e até mesmo das relações de ‘aliança’ com o Ocidente, para as quais nem a Rússia nem os próprios países ocidentais estavam preparados, assim como entendiam de formas distintas os seus significados. Por isso, muitos nos EUA e inclusive em alguns países da Europa Ocidental, emergidos sob influência da falsa síndrome do ‘vencedor da Guerra Fria’, não viam a Rússia democrática como um aliado equânime. No melhor caso, atribuíam a ela o papel do parceiro menor” (Ivanov, 2000: 208).

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a Rússia, principalmente - mas não apenas - no setor energético” (Mazat e Serrano, 2012: 10).

“Enquanto presidente da Rússia entre 2000 e 2008, Vladimir Putin definiu a política externa do país como sendo multivetorial e multipolar. A Rússia ambiciona uma política externa equilibrada onde a procura de polos múltiplos tem por objetivo diversificar aliados e permitir a alteração das relações privilegiadas numa procura constante de contrapeso e primazia. […] A projeção do poder e o curso afirmativo da política externa de Putin, assentam numa ordem interna estável” (Freire, 2011: 54). “A presidência de Dmitri Medvedev, iniciada em 2008, não representou nenhuma mudança em termos de posicionamento geopolítico da Rússia. Assim, Medvedev, mais do que um aliado fiel, é seguidor de Putin. Apesar dos recorrentes boatos sem fundamentos sobre eventuais divergências entre os dois, na prática os fatos concretos são que: i) Medvedev indicou Putin para Primeiro Ministro assim que assumiu; ii) mais recentemente, ele sugeriu Putin como candidato à eleição para Presidente em 2012; e iii) uma vez eleito, Putin então indicou Medvedev para ser seu Primeiro Ministro” (Mazat e Serrano, 2012: 22).

“Além disso, o mais importante é que Putin - ou Putin-Medvedev - representa(m) a ascensão ao poder da ampla e sólida coligação de interesses econômicos e políticos que se uniram quanto à necessidade de recompor as bases mínimas de operação de um Estado capitalista moderno que superasse a fase selvagem e predadora da ‘acumulação primitiva’ na Federação Russa. A nova estratégia de afirmação geopolítica, segundo as explicações ‘psicologizantes’ presentes em boa parte da literatura ocidental sobre o tema, seria o resultado de um suposto ‘revanchismo’ russo, alimentado pelas múltiplas humilhações enfrentadas pela Rússia durante os anos 1990” (ibid). Emprestando as palavras de lyin a quem Putin recorre com frequência: “a nossa hora irá chegar quando a Rússia emergir da desintegração e da humilhação e começar uma época de grandeza” - e adaptá-las aos anos que definem a ascensão […] de Vladimir [Putin] (Lima, 2016a: 16), percebe-se o nacionalismo, o melodrama e o discurso geoidentitário que legitima o orgulho russo ferido e impulsiona a sua política externa que contesta a desintegração da União Soviética, a liberalização russa influenciada pelo modelo americano, os alargamentos da NATO e da União Europeia no Leste, e a necessidade de travar o expansionismo ocidental.

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Putin “foi muito claro no seu famoso discurso pronunciado na 43ª Conferência de Munique sobre a Política de Segurança, em 2 de Outubro de 2007” (Mazat e Serrano, 2012: 23). Segundo Stuermer (2009: 26), Putin, “o líder de um império desfeito avisava aos Estados Unidos de que a ordem mundial unipolar dos sonhos do período que se seguiu à Guerra Fria estava fora do seu alcance”:

“Seria esta a mensagem que o antigo oficial do serviço de informações russo tentava passar aos Estados Unidos e a todas as nações que confiam neste país como último bastião da segurança mundial, já que ele próprio, enquanto elemento do KGB em Dresden […] assistira de perto ao esboroar do poder imperial? A mensagem era clara: não confiem nos Estados Unidos porque, mais cedo ou mais tarde, também esta nação terá o mesmo destino de todos os outros impérios da história” (Stuermer, 2009: 26).

Mas voltemos a CEI. De acordo com Freire (2011: 54-55), os [quatro] objetivos de política externa russa, definem como ponto central a promoção da CEI como área de interesse vital. É, contudo, uma área heterogénea com Estados diferenciados em termos das suas opções políticas, recursos económicos e perfis sociais. Isto significa que o objetivo russo de controlo e influência é limitado, apesar da sua influência reconhecida na área. Esta tem-se traduzido na política de envolvimento de Moscovo em termos económicos, políticos e militares. A manutenção das bases militares na Moldava e na Arménia é disso um exemplo (tabela 2). Além do mais, os vastos recursos naturais da região levam a que Moscovo controle as rotas de gasodutos e oleodutos bem como infraestruturas como forma de manutenção da sua influência sobre os governos locais, ao mesmo tempo que beneficia desses mesmos bens económicos. Mantém-se ainda, embora com limites, […] como parceiro privilegiado em termos comerciais de muitas destas repúblicas, incluindo a venda de armamento e outros equipamentos militares”.

Entretanto, “o espaço pós-soviético, em grande medida devido aos seus recursos energéticos, tornou-se uma área de interseção de interesses diferenciados, conferindo- lhe contornos complexos. Ao assegurar a margem de manobra em termos político- diplomáticos e económicos, Moscovo prossegue simultaneamente o objetivo de manter esta área como influência especial, e de contrabalançar e ter uma palavra a dizer quanto à presença dos Estados Unidos na região, ao aumento de influência chinesa na área ou a

“Esse é um mundo onde existe apenas um mestre, um soberano. E, no final do dia, isso é pernicioso não apenas para todos aqueles dentro desse sistema, mas também para o próprio soberano, porque este tipo de ordem mundial acabaria por se destruir sobre si mesma” (President of Russia, 2007).

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outras ingerências externas que identifica como contrárias à promoção da sua primazia neste espaço. […] Já quanto a China, a dinâmica repete-se, ora colaborando em termos político-económicos e militares […]. Além do mais, a UE tem ganho uma presença crescente na área, sugerindo também uma atitude reativa de Moscovo, crítica do envolvimento da União, enquanto tenta estabelecer relações bilaterais preferenciais com alguns dos seus membros, como [por exemplo] a Alemanha […] (ibid: 57).

É neste mosaico da política externa russa que as sessões que se seguem se irão desenrolar. Juntos, estes vetores compõem uma característica chave da orientação multifacetada da política externa de Putin-Medvedev. Contudo, importa enfatizar que cada um destes vetores (ocidental e oriental) é valioso em si, entretanto, dentro destes destaca-se o estrangeiro próximo da Rússia, ou seja, a CEI considerada sua área prioritária ou de preferência.

No que diz respeito ao pragmatismo, de acordo com Adam, “o pragmatismo significava que a Rússia passaria a se relacionar com qualquer país do sistema internacional, independentemente de sua forma de governo ou de seu passado em relação a Moscovo. A motivação do Kremlin seria unicamente os interesses do Estado e da sociedade russa. Tal prerrogativa de política externa pode ser associada com a aproximação com os Estados asiáticos, pois estes, na sua maioria, não são praticantes da democracia do tipo ocidental. Ao se declarar respeitadora do princípio de não intervenção em assuntos internos de outros países, a Rússia se distancia da postura por vezes arrogante da União Europeia e, principalmente, dos EUA, que arvoraram para si a condição de guardiões - seletivos - da democracia no sistema internacional, elemento justificador de suas declaradas intervenções humanitárias” (2012: 56). Portanto, tendo em conta que o pragmatismo é uma caraterística indissociável da política externa de Putin-Medvedev, nas sessões que se seguem analisar-se-á de que forma Putin faz o uso desse pragmatismo na condução da sua política externa.