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Capítulo 2. O Aparelho de Política Externa da Federação Russa e a Tomada de Decisões

2.3. Determinantes da Política Externa de Putin (2000-2017)

2.3.1. Determinantes Domésticos

2.3.1.2. O Separatismo Checheno

“O separatismo checheno é um elemento que sempre se toma em conta na política externa russa. Na verdade, o separatismo checheno tornou-se um assunto de difícil gestão para a Rússia quando em Outubro de 1991, antes da queda da URSS, Djokhar Dudaiev proclamou unilateralmente a independência da Chechénia41. Apesar de a independência ter sido reconhecida apenas pela Geórgia, o separatismo checheno não vergou e acabou entrando em guerra com a Rússia. A guerra iniciou em 1994, quando Boris Yeltsin enviou 40 mil soldados para evitar a separação da Chechénia. Esta só veio a conhecer uma relativa calmia em 1997, quando foi assinado o acordo de paz. Mas em Setembro de 1999 o conflito armado retomou, destacando-se o ataque perpetrado pelos separatistas chechenos a 3 de Setembro de 2004, à escola de Beslan42, na Ossétia do Norte” (Wache, 2014: 134).

Pelas razões acima apontadas pode-se concluir que o separatismo checheno determina o comportamento da política externa da Rússia. Este argumento pode ser robustecido com a resposta do presidente Putin no âmbito da Cimeira União Europeia - Rússia em Bruxelas. Questionado por um repórter se os ataques da Rússia contra os terroristas chechenos também incluía eliminar porções da população civil da Chechênia, Putin, em frente aos lideres da União Europeia não mostrou delicadeza na sua resposta:

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A Chechénia é uma República e faz parte da Federação Russa apesar do forte movimento separatista. 42 Depois de derrubarem dois aviões civis, os terroristas levaram mais de mil reféns em uma escola em Beslan, Ossétia do Norte. O comandante checheno Shamil Basayev assumiu a responsabilidade pelo incidente, exigindo a retirada das tropas russas do território da Chechênia. Em última análise, quando os terroristas estavam em processo de libertação dos reféns, centenas de mulheres e crianças morreram. Na longa lista de ataques terroristas contra civis russos, este foi o pior. Este ataque também veio no meio dos esforços do Kremlin para estabilizar a situação na Chechênia e apresentá-la como um progresso considerável na luta contra o terrorismo. Os ataques pareciam estar a espalhar-se pelo norte do Cáucaso, e as pessoas se sentiam cada vez menos, e não mais, protegidas da ameaça. Essa reação terrorista foi um grande golpe para as promessas de Putin de “erradicar o terrorismo”, que o ajudaram a vencer as eleições presidenciais de Março de 2000 (Tsygankov: 2010: 156). Entretanto, em Dezembro de 2004, foi aprovado pelo parlamento e assinada por Putin a lei que acabava com as eleições diretas para governadores regionais no país. Doravante, os governadores seriam nomeados pelo presidente, com o nome indicado tendo que ser aprovado pela assembleia legislativa local. Estas mudanças foram tão radicais que, a partir de 2004, a organização norte-americana Freedom House, que mede o nível de democracia e liberdades políticas nos diversos países do mundo, rebaixou a Federação Russa para a classificação de “país não livre” (Segrillo, 2012: 109).

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Com este discurso, como se pode constatar, Putin procura sensibilizar os dirigentes ocidentais para a ameaça que o separatismo checheno representa não apenas para a Rússia, mas para toda comunidade internacional43. Relacionando o separatismo checheno ao terrorismo e a um choque civilizacional, Putin procura criar uma operação conjunta no combate ao terrorismo e assim garantir a soberania da República da Chechénia. Putin pretende resolver dois problemas com uma só ação. Ou como é dito na gíria, “matar dois coelhos com uma só cajadada”. Para atingir este fim, de acordo com Wache (2014, 135), Putin defende as Nações Unidas como o suporte internacional através das sanções emanadas pelo Conselho de Segurança.

Segundo Wache (ibid), “o outro posicionamento da política externa russa influenciando, em parte pelo movimento separatista checheno é o não-reconhecimento da independência do Kosovo44”. Neste sentido, é sugestivo o discurso de Putin a quando da declaração unilateral da independência por parte do Kosovo a 17 de Fevereiro de 2008. Putin disse:

Segundo Stuermer (2009: 27-28), “não é que a Rússia tivesse uma fórmula melhor ou mais sustentável para promover a estabilidade nos Balcãs, mas o Kosovo era um dos temas da agenda global relativamente ao qual Putin desejava deixar claro que nada poderia ser feito para prejudicar a Rússia. A Sérvia, suserano tradicional dos albaneses do Kosovo, era uma velha aliada e protegida da Rússia desde as guerras dos czares contra o Império Otomano e dos tempos das quezílias com a Áustria. Belgrado

43 O ataque perpetuado pelos dois irmãos chechenos a maratona de Boston em 2013, parece que veio reforçar esta tese (Wache, 2014: 135).

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Kosovo era uma província autónoma da Sérvia que depois do fim da Guerra do Kosovo, em 1999 passou para a administração transitória da ONU, de acordo com a resolução 1244 do Conselho de Segurança de 10 de junho de 1999. Kosovo declarou unilateralmente a sua independência a 17 de fevereiro de 2008 (Wache, 2014: 135).

“Eu acho que você é de um país que é, de fato, um aliado dos Estados Unidos da América. Você está em perigo. Eles falam sobre a necessidade de matar todos os kafirs [não-crentes], todos os não- muçulmanos, todos os ‘portadores de cruz’, como eles os chamam. Se você é um cristão, você está em perigo. Mas se você rejeitar sua religião e se tornar um ateu, você também está programado para liquidação, de acordo com sua maneira de pensar e com as suas regras. Você está em perigo. Se você decidir se tornar um muçulmano, mesmo isso não vai salvá-lo, porque eles consideram o Islão tradicional ser hostil aos seus objetivos. Mesmo neste caso, você está em perigo” (Feifer, 2002).

“Nós achamos que o apoio a uma independência unilateralmente declarada por Kosovo é imoral e ilegal”, Putin acrescenta, “a integridade territorial dos países é garantida pelos princípios básicos da lei internacional”. E continua, ”Vocês não têm vergonha na Europa de aplicar dois pesos e duas medidas para resolver problemas” (BBC Brasil, 2008).

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era considerada um território russo onde as nações ocidentais deveriam caminhar com muito cuidado. Mais tarde, na cimeira do G8 - que decorreu na luxuosa estância de férias da zona ribeirinha de Heiligendamm durante o Verão de 2007 - Putin chegou, inclusivamente, a advertir as nações ocidentais para o facto de que permitir que o Kosovo se separasse da Sérvia significaria a derrota da «cristandade» no seu combate épico contra o Islão. Referia-se, evidentemente, ao velho papel de potência protetora de todos os países e territórios ortodoxos que a Rússia tradicionalmente reclamava para si”. Para Mazat e Serrano (2012: 33), o reconhecimento da independência do Kosovo por parte da União Europeia poderia ter consequências potencialmente desestabilizadoras no seu país, devido à existência no território da Rússia de vários pequenos movimentos étnicos regionais com aspirações separatistas.

Contudo, importa referir que, com esta narrativa histórico-identitária, Putin procura invocar o passado histórico da Rússia e reconstruir a imagem da Rússia como um país forte e poderoso, membro de pleno direito na comunidade internacional e influente no desenvolvimento global. Vladimir Putin, em seu discurso em 2003 para a Assembleia Federal, afirmou que “o destino histórico da Rússia ao longo destes mil e mais anos” era manter “uma propagação do Estado sobre um território tão vasto e preservar uma comunidade única dos povos [russos/ortodoxos], mantendo-se uma forte presença no cenário internacional” (President of Russia, 2003). Este discurso não deixa margens para dúvidas de que Putin pretende recuperar a forte posição da Rússia considerada digna de um país com tamanho e história única como a dela. Para tal, Putin tem moldado uma nova identidade geopolítica que difere da anterior adotada por Gorbatchev e Yeltsin. A implicação prática desta narrativa geo-identitária é que o Kremlin deverá conduzir uma política externa de acordo com esse papel, o que significa se comportar como um polo independente e um dos principais atores da política internacional o que vai de encontro com os objetivos dos quatro conceitos de política externa russa (2000, 2008, 2013 e 2016) acima discutidos.

Contudo, mesmo que se descarte os argumentos acima expostos sobre as implicações do reconhecimento da independência do Kosovo por parte da Rússia, ainda assim, de acordo com Wache, “a indignação de Putin faz sentido quando se toma em conta a questão dos separatistas chechenos, que em 1991 tinham declarado unilateralmente a independência e a Rússia enfrentou duas guerras (1994-1996/7 e 1999-2004) para evitar que a Chechénia fosse uma república independente” (2014:

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135). No seu artigo, Dérens (2007), expõe que uma independência precipitada como pede o presidente Bush, não negociada no âmbito da ONU, poderia provocar a constituição, em curto prazo, de uma Grande Albânia, que relançaria automaticamente os irredentismos croata e sérvio, às custas da Bósnia-Herzegovina. Sem falar do precedente internacional explosivo que isso constituiria para as múltiplas entidades tentadas a proclamar - elas também unilateralmente - sua independência a saber: Palestina (em relação a Israel), Saara Ocidental (ao Marrocos), Transnístria (à Moldávia), Curdistão (à Turquia), Chechénia (à Rússia), Abkhazia (à Geórgia), Nagorno-Karabakh (ao Azerbaijão), Taiwan (à China), ou mesmo na própria Europa, o País Basco e a Catalunha (à Espanha e França), para citar apenas esses casos.

É deste modo que, após o Kosovo unilateralmente ter proclamado a sua independência da Sérvia em 2008, seis países da União Europeia, entre eles a Espanha, deixaram claro que não iriam reconhecer o novo país, já que essa independência poderia servir de procedente aos separatistas em seus próprios territórios (Globo.com, 2008). Perante este quadro delicado, Miguel Angel Moratinos, ministro dos negócios estrangeiros espanhol proferiu o seguinte discurso:

O Chipre, a Roménia e a Eslováquia também têm estado relutantes em reconhecer a independência do Kosovo. Do outro lado do mundo, temos a China, a Indonésia e a Sri Lanka, que também criticaram o ato de secessão da província Sérvia (Drebes, 2009: 41-42). Com base na informação acima apresentada, constata-se que a declaração unilateral da independência kosovar pode criar um efeito domino em países que enfrentam o mesmo fenómeno. No caso russo, as ambições separatistas chechenas figuram-se como o “calcanhar de Aquiles” da integridade territorial russa. Deste modo, a atual presidência não pretende e não pode legitimar um separatismo que afetará a união e a soberania da Rússia e assim provocar uma desintegração tal como a ocorrida na União Soviética. Dai que, ao se analisar o aparelho da política externa russa, este determinante domestico deve ser tido em conta. Não obstante, importa realçar que este fenómeno tem influenciado a condução da política externa russa desde os tempos soviéticos. Dai que, conter o separatismo checheno para além de ser um determinante domestico da política externa russa, pode ser considerado como um dos elementos de continuidade da política externa da União Soviética na nova Rússia.

“O governo espanhol não irá reconhecer o ato unilateral proclamado pela assembleia kosovar e não vai reconhecer porque não considera que respeita a legalidade internacional” (Globo.com, 2008).

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