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Capítulo 3. O Eurasianismo e o Excecionalismo Russo

3.2. O Eurasianismo e a Rússia Contemporânea

No início do século XV, a Rússia já havia começado a adquirir de modo firme e sequencial as características da Heartland, o que levou gradualmente a identificação da sociedade russa como sendo a civilização da terra, a telucracia. O Heartland não é uma característica da cultura dos eslavos do Leste; mas no decorrer do processo histórico foram precisamente os russos aqueles que se encontraram nessa situação e adoptaram uma marca civilizacional continental tendo por base a terra. É por essa razão que a geopolítica russa é por definição a geopolítica da Heartland; ou seja, a geopolítica que tem por base a terra, a geopolítica da terra (Dugin, 2016: 10-11).

Para Dugin, deve-se “ter em consideração a Federação Russa contemporânea de acordo com as suas fronteiras atuais como um dos momentos de um ciclo histórico mais extenso, no decorrer do qual o estatismo eslávico de Leste entrou em ressonância com “civilização da terra” e se identificou cada vez mais com o Heartland. Tal significa que a Rússia contemporânea, geopoliticamente considerada, não é algo de novo, ou seja, um mero governo surgido há vinte e poucos anos atrás, mas uma etapa de um processo histórico longo, multissecular, que a cada etapa faz com que a Rússia se torne cada vez mais na expressão da ‘civilização da terra’ a uma escala planetária. Antes, as etnias eslavas de Leste do Principado de Kiev encontravam-se na periferia da civilização ortodoxa, cristã oriental, e encontravam-se na zona de influência da segunda Roma. Isto por si só já colocaria os russos no polo oriental da Europa” (ibid: 11-12).

Quanto ao polo asiático, de acordo com Santos, para uma melhor compreensão do que se pretende analisar no trabalho, deve-se recuar na história russa até ao início do século XIII, pois nessa época teve lugar um acontecimento catastrófico que deixou marcas indeléveis no carácter nacional russo. Em 1206, um génio militar de nome

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Teumjin, posteriormente conhecido como Genghis Khan, teve o sonho de conquistar o mundo, tarefa que ele cria lhe ter sido confiada por Deus. Nessa época, a Rússia era composta por cerca de uma dúzia de principados, frequentemente em guerra uns contra os outros. Assim, entre 1223 e 1240, a Rússia não tendo conseguido se unir para combater o inimigo comum [os hordas mongóis], os seus principados foram colapsando um a um perante a implacável máquina de guerra mongol (2008: 2).

Após a invasão das hordas mongóis e conquista da Rússia, o Principado foi incluído na construção geopolítica eurásica do império nómada, inspirado na terra de Genghis Khan (posteriormente parte deste separou-se na forma das Hordas Douradas) (Dugin, 2016: 12). Santos acrescenta que o domínio mongol também instaurou um sistema político muito centralizado79, e o resultado inevitável foi um jugo tirânico dos príncipes vassalos sobre os seus súbditos, cuja sombra ainda hoje se faz sentir na Rússia. Para o autor, o domínio mongol que perdurou na Rússia por cerca de 250 anos deixou cicatrizes tão profundas e perenes na psicologia da nação russa, que ajudam a compreender grande parte da sua atual xenofobia, política externa (muitas vezes tida como agressiva, como foi referido acima), e histórica aceitação da tirania. Não obstante, no final do século XV, a opressão mongol foi acabada por van , “o Grande”, príncipe de Moscovo. Isso porque, a tão temida máquina de guerra mongol, tinha entretanto perdido a vontade e o gosto de lutar e se acomodado (2008: 2-3).

Com a queda da Constantinopla e o despertar das Hordas Douradas o principado moscovita herda duas tradições: a tradição político-religiosa bizantina e a tradição eurásica tradicional, tradição esta que foi passada dos mongóis para os grandes príncipes russos. A partir dessa altura os russos começaram a vislumbrar-se como sendo “a terceira Roma”; ou seja, como os portadores de uma organização civilizacional destinta, que contrastava a todos os níveis basilares com a Europa ocidental, com a civilização católica do Ocidente. A partir do século XV, os russos emergem no panorama da História mundial como uma “civilização da terra” e todas as linhas de força geopolítica fundamentais da sua política externa passam desde esta altura a ser sujeitas a um único objetivo: a integração da Heartland, o fortalecimento da sua influencia na zona do Nordeste da Eurásia, a afirmação da sua identidade perante o seu adversário mais agressivo, a Europa Ocidental (a partir do século XVIII a Grã-Bretanha

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Sistema de “khanatos” - semelhantes a principados - onde o “khan” era uma espécie de senhor feudal, sujeito a tributos obrigatórios pesadíssimos pelos mongóis.

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e, em maior extensão, o mundo anglo-saxão), que aceitara a iniciativa da “civilização do Mar” e da talassocracia. Este duelo entre a Rússia e a nglaterra (posteriormente os EUA) desenrola-se desde o século XVIII até a nossa altura, a lógica geopolítica da História mundial, “a grande guerra dos continentes” (Dugin, 2016: 12).

“O significado geopolítico permanece na sua totalidade como invariável em todas as fases subsequentes da História russa: desde o czarismo moscovita passando pelos Romanov, a Rússia de S. Petersburgo e a União Soviética até à atual Federação Russa. Dos séculos XV a XXI a Rússia permanece como o polo planetário da “civilização da Terra”, a Roma continental” (ibid).

Em tom de síntese da sessão, foi possível compreender que a Rússia contemporânea não constitui algo de novo, a Federação Russa faz parte de um longo processo histórico, que a cada etapa vai consolidando cada vez mais a sua caraterística de “civilização da terra”. Na presente sessão, também foi possível perceber que a Rússia é uma civilização distinta, contém características tanto europeias como asiáticas, sendo assim uma civilização eurasiática e excecional80. Portanto, da segunda Roma, a Rússia herdou caraterísticas político-religiosas bizantinas, e dos mongóis, a tradição eurásica ou eurasiática tradicional, tornando assim o eurasianismo uma característica inseparável da história e cultura russa. Contudo, é importante ressalvar que o período da dominação mongol, deixou sequelas profundas na Rússia que se fazem sentir até aos atuais dias. Juntas numa única imagem, estas características da alma russa nos ajudam a perceber de forma mais objetiva e concisa as decisões tomadas por Putin-Medvedev tanto no âmbito domestico como na conjuntura externa. Ou seja, as cicatrizes deixadas pelo jugo mongol, influenciam tanto as decisões da política interna como da política externa da Rússia de Putin. Assim, olhando para a política externa russa - muitas vezes percepcionada como sendo belicista, imprudente e agressiva - pode-se concluir que este é um elemento de continuidade não só do período soviético, mas sobretudo da dominação mongol, que passa por todas as fases subsequentes da História russa até à atual Federação Russa. Ainda assim, revelasse de extrema relevância clarificar que Putin faz o uso do eurasianismo ou excecionalismo russo como instrumento ideológico para legitimar a sua política externa. Isto é, tal como se analisou na sessão anterior, Putin tem procurado construir a identidade russa envolta de uma ideologia plástica para

80 Contudo, importa sublinhar que o facto da Rússia conter características da Europa, assim como da Ásia, não faz da Rússia tanto europeia como asiática. Como será discutida na sessão que se segue, a Rússia é um continente em si, separado tanto da Europa como da Ásia.

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legitimar a sua política externa que tem como objetivo recuperar o estatuto internacional russo a partir da perceção que ela tem de si mesma como uma grande potência (derzhava). Segundo Ferreira e Terrenas, a percepção da presidência Putin-Medvedev é de que inevitavelmente, quanto mais plástica a identidade da Rússia pós-soviética for, mais fácil será definir objetivos pragmáticos adaptados aos novos desafios do Estado, da sociedade e das elites dirigentes (2016: 48). “São os referentes emocionais de uma memória partilhada que se fundem e legitimam o poder político por via da plasticidade própria do imaginário russo. É portanto inegável que a chegada de Putin à presidência da Rússia representou uma nova dinâmica na transição pós-soviética” (ibid: 52).