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A POSIÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO SISTEMA JURÍDICO

No documento Alexy, Robert - Teoria Discursiva Do Direito (páginas 165-170)

Direitos fundamentais no estado democrático

2.1. A POSIÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO SISTEMA JURÍDICO

A posição dos direitos fundamentais no sistema jurídico da Alemanha é caracterizada por quatro extremos: os direitos fundamentais regulam, em primeiro lugar, com o grau mais elevado, em segundo lugar, com a maior força executória, em terceiro lugar, os objetos de maior importância e, em quarto lugar, com a maior medida de abertura. Cada uma dessas pro- priedades extremas é, tomada em si, inofensiva. A conexão delas envolve porém problemas de fato explosivos. Isso deve ser explicado agora.

2.1.1. O grau mais elevado

O primeiro extremo, o grau mais elevado na estrutura escalonada do direito estatal interno, resulta do mero fato de os direitos fundamentais es- tarem regulamentados na constituição. Disso, junto com as máximas “lex superior derogat legi inferiori” e “direito federal prevalece sobre direito es- tadual” (artigo 31 da Lei Fundamental), segue-se que toda norma jurídica que os contradiz é inconstitucional e por isso, em regra, nula.

2.1.2. A maior força executória

Somente em conexão com o segundo extremo, a maior força ex- ecutória, ostenta o primeiro extremo, o grau mais elevado, a força completa dos direitos fundamentais. O artigo 1º, parágrafo 3º da Lei Fundamental

determina que os direitos fundamentais vinculam, como direito imediata- mente válido, a legislação, o poder executivo e a jurisdição. Isso significa uma quebra das tradições constitucionais do Império e da República de Weimar. Na República de Weimar, inúmeros direitos fundamentais valiam simplesmente como proposições programáticas, que não eram executáveis judicialmente. Quem quiser ser polêmico pode dizer que eles eram lírica constitucional. Na República Federal, a observância de todos os direitos fundamentais é, ao contrário, completamente controlada pela justiça, o que começa nas instâncias inferiores, por exemplo, a justiça administrativa, e termina no Tribunal Constitucional Federal em Karlsruhe. Essa completa possibilidade de arguição perante o judiciário, que atinge todas as outras normas constitucionais, é um dos tesouros da Lei Fundamental. Todo aquele que quer escrever na constituição ideais políticos não judiciáveis deveria saber o que ele coloca em risco. Basta uma proposição constitu- cional não judicialmente controlável para se começar a jornada rumo à desvinculação.

O controle judicial se estende a todos os três poderes. O controle do executivo, por exemplo da polícia, tem sido evidentemente realidade, ou pelo menos um postulado evidente, desde o momento em que os direitos fundamentais passaram a valer como direito positivo. Não tão evidente é, por outro lado, o controle do legislador, que, na Alemanha, é exercido pelo Tribunal Constitucional Federal em diversos tipos de processo. Antes valia: direitos fundamentais somente no âmbito da lei; hoje se diz: leis somente no âmbito dos direitos fundamentais.2Constantemente a justiça freia o le-

gislador. Exemplos conhecidos são a decisão sobre o aborto,3a decisão

sobre o ensino superior4e a decisão sobre o recenseamento.5Com o con-

trole também do legislador os direitos fundamentais entram em uma re- lação de tensão com o princípio da democracia, do que ainda nos ocuparemos.

Também no caso do controle da jurisdição o Tribunal Constitucional Federal por fim pisou em um território desconhecido. Desde a decisão Lüth, de 1958, uma das decisões do Tribunal Constitucional Federal com maiores consequências, deve todo juiz, em toda decisão, observar os direit- os fundamentais. Esses direitos fundamentais devem, enquanto valores ou

“decisões objetivas de valores”, irradiar-se sobre todo o direito. Com isso os direitos fundamentais ostentam sua força não só nas relações entre os cidadãos e o estado, mas também no direito civil, que trata da relação entre os cidadãos. Isso é por alguns criticado como “excesso de direitos funda- mentais em relação ao direito como um todo”, e por outros festejado como realização completa dos direitos fundamentais.

2.1.3. Objetos de maior importância

O grau mais elevado e a maior força executória significariam pouco se os direitos fundamentais regulamentassem questões específicas sem im- portância. Exatamente o contrário é porém o caso. Com os direitos fundamentais decide-se sobre a estrutura fundamental da sociedade. Pode- se assim enfatizar a neutralidade político-econômica da Lei Fundamental, que com a garantia da propriedade (artigo 14 da Lei Fundamental), da liberdade profissional (artigo 12 da Lei Fundamental) e da liberdade con- tratual (artigo 2º, parágrafo 1º da Lei Fundamental) toma a decisão a favor de uma economia de mercado. A garantia da liberdade de opinião, de im- prensa e de transmissão por rádio e televisão (artigo 5º, parágrafo 1º da Lei Fundamental) estabelece o pilar fundamental do sistema de comunicação da sociedade. Outros direitos fundamentais devem ser mencionados apenas para se reconhecer seu significado fundamental: a garantia ao casamento, à família e ao direito de herança, a liberdade de religião e a proteção à vida e à inviolabilidade corporal, que desempenham um novo papel com con- sequências abrangentes por exemplo no direito ambiental e no direito atômico.

2.1.4. A maior medida de abertura

Os três extremos até aqui abordados, o grau mais elevado, a maior força executória e o fato de serem os objetos mais importantes de regulamentação, transformam-se em um problema somente através de sua conexão com um quarto extremo, a maior medida de abertura. Frequentemente aponta-se o caráter extremamente sucinto, até mesmo

conciso e vazio de conteúdo dos textos referentes a direitos fundamentais. Toda regulamentação da União Europeia sobre coisas como o empacota- mento de carnes frias vai bem mais além em extensão, detalhamento e pre- cisão que a seção da Lei Fundamental referente aos direitos fundamentais. O que os direitos fundamentais são hoje não se deixa extrair do texto seco da Lei Fundamental, mas somente dos cerca de 94 volumes da jurisdição do Tribunal Constitucional Federal, que assumiu sua abençoada função em 1951. Os direitos fundamentais são aquilo que são sobretudo através da in- terpretação. A jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal oferece um abundante material ilustrativo sobre o que isso significa. Qual leigo ter- ia a ideia, através de uma leitura imparcial, que a Lei Fundamental, com a cláusula contida no artigo 5º, parágrafo 5º, proposição 1, “a ciência, a pesquisa e o ensino são livres”, determina que professores devem ter uma influência decisiva no que diz respeito a questões de pesquisa e de con- tratação de recursos pessoais em comitês universitários?6Para citar um

outro exemplo: pode-se ler na Lei Fundamental, na medida que se queira, um direito à autodeterminação informacional,7que não se encontra escrito

em lugar algum. Somente quando se consulta a decisão sobre o recensea- mento, de 1983, descobre-se que esse direito integra o direito fundamental geral da personalidade, que, embora, enquanto tal, não esteja escrito expli- citamente na constituição, resulta porém de uma conexão entre o artigo 1º, parágrafo 1º da Lei Fundamental, que garante a dignidade humana, e o artigo 2º, parágrafo 1º da Lei Fundamental, que, segundo a controversa in- terpretação do Tribunal Constitucional Federal, assegura a liberdade geral de ação. Nenhuma vez sequer o Tribunal para na interpretação literal da Lei Fundamental. O artigo 12, parágrafo 1º da Lei Fundamental permite a restrição somente da liberdade de exercício profissional, mas não a re- strição da liberdade de escolha profissional. O Tribunal decidiu, em sua famosa decisão sobre as farmácias, de 1958, que a cláusula de restrição de- ve se estender também à liberdade de escolha profissional.8Essa decisão é

correta, mas é uma decisão contra legem. Para citar ainda um outro exem- plo: a Lei Fundamental contém alguns direitos assegurados literalmente sem restrições e que não podem ser restringidos. São eles, dentre outros, a liberdade de crença, artística e científica. Se o texto fosse tomado

literalmente não se poderia proibir a morte fundamentada por uma religião, nem que pintores de rua parassem no meio de uma autoestrada. Além disso, para citar um exemplo prático sério, experimentos em animais, ex- perimentos genéticos e experimentos médicos em seres humanos não po- deriam ser restringidos por lei e controlados por comitês de ética. Assim o Tribunal Constitucional Federal desenvolveu a fórmula de que também direitos fundamentais garantidos sem reserva podem ser restringidos a fa- vor de direitos fundamentais colidentes de terceiros e de outros valores jurídicos que possuem nível constitucional. Menciono isso não para criticar essa fórmula; ao contrário, eu a considero correta. Quero apenas deixar claro que tudo no âmbito dos direitos fundamentais é interpretação. Um úl- timo exemplo: quem pensaria que a proposição “O domicílio é inviolável” é aplicável também ao espaço comercial e empresarial, ou seja, que eles devem ser classificados como domicílio no sentido do artigo 13, parágrafo 1º da Lei Fundamental? Em todo caso, o Tribunal Constitucional Federal decidiu assim.9

Deve-se interpretar em várias áreas. Basta pensar em poesia, pinturas abstratas e receitas de cozinha formuladas de forma imprecisa. A espe- cificidade mais importante da interpretação constitucional resulta dos três primeiros extremos indicados, o grau mais elevado, a maior força ex- ecutória e o conteúdo mais importante. Aquele que consegue tornar a sua interpretação dos direitos fundamentais vinculante, ou seja, em termos práticos, aquele que aceita o Tribunal Constitucional Federal, alcança aquilo que no processo político é inalcançável: ele transforma sua con- cepção sobre as questões sociais e políticas mais importantes em algo como um componente da constituição, tirando-as com isso da agenda política. Uma maioria parlamentar simples não pode mais fazer nada. Somente o próprio Tribunal Constitucional Federal ou uma maioria de dois terços, prevista pelo artigo 79, parágrafo 2º da Lei Fundamental para a modi- ficação da constituição, pode mudar a situação. Tudo isso esclarece não só porque se aceita com tranquilidade a possibilidade de interpretação dos direitos fundamentais, mas também porque sobre ela se diverge na arena política. Pode-se falar sobre uma batalha sobre a interpretação dos direitos fundamentais. O árbitro dessa batalha não é porém o povo, mas sim o

Tribunal Constitucional Federal. É isso compatível com o princípio da democracia, cujo núcleo é expresso no artigo 20, parágrafo 2º da Lei Fun- damental através da formulação clássica “todo poder estatal emana do povo”?

2.2. DIREITOS FUNDAMENTAIS E DEMOCRACIA

No documento Alexy, Robert - Teoria Discursiva Do Direito (páginas 165-170)