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DIREITOS FUNDAMENTAIS E DEMOCRACIA 1 Três modelos

No documento Alexy, Robert - Teoria Discursiva Do Direito (páginas 170-174)

Direitos fundamentais no estado democrático

2.2. DIREITOS FUNDAMENTAIS E DEMOCRACIA 1 Três modelos

Há três visões sobre a relação entre direitos fundamentais e democra- cia: uma ingênua, uma idealista e uma realista. Segundo a visão ingênua não há conflito entre os direitos fundamentais e a democracia. Tanto os direitos fundamentais quanto a democracia são coisas boas. Como podem duas coisas boas colidir? A concepção ingênua quer com isso dizer que se pode ter os dois de forma ilimitada. Essa visão do mundo é bonita demais para ser verdadeira. Seu ponto de partida, que só pode haver conflito entre o bem e o mal, mas não dentro do bem, é falso. Quem vai querer contestar que a prosperidade e o pleno emprego, que se apoiam no crescimento econ- ômico, são coisas boas em si, e quem vai negar que a proteção e a preser- vação do meio ambiente é algo bom? Por razões bem conhecidas existe porém, em nosso mundo, caracterizado pela finitude e escassez, um con- flito entre esses dois bens. A visão idealista admite isso. A sua reconcili- ação entre direitos fundamentais e democracia não acontece por isso nesse mundo, mas sim no ideal de uma sociedade bem ordenada. Nela, ao con- trário, o povo e seus representantes políticos não estão de modo algum in- teressados em violar os direitos fundamentais de alguns cidadãos através de decisões majoritárias, ou seja, através de leis. A manutenção dos direitos fundamentais é um motivo sempre efetivo para todos. O catálogo de direit- os fundamentais tem ainda, nesse modelo rousseauniano, somente um sig- nificado simbólico. Ele formula meramente aquilo em que todos de todo modo acreditam e que todos de todo modo querem. Enquanto ideal que pode ser confrontado com a realidade política e do qual se deve aproximar

tem esse modelo seu valor. Mas pode-se perceber que esse ideal é inal- cançável. Por isso, para aqueles que querem agir e não apenas sonhar, é correta apenas a visão realista. Segundo ela a relação entre direitos funda- mentas e democracia é caracterizada por duas noções. Elas rezam:

(1) direitos fundamentais são extremamente democráticos; (2) direitos fundamentais são extremamente antidemocráticos. Os direitos fundamentais são extremamente democráticos porque com a garantia dos direitos de liberdade e igualdade eles asseguram a existência e o desenvolvimento das pessoas, que são capazes de manter vivo o pro- cesso democrático, e porque com a garantia das liberdades de opinião, de imprensa, de transmissão por radiodifusão, de reunião e de associação, as- sim como com o direito de voto e com as outras liberdades políticas eles asseguram as condições de funcionamento do processo democrático. Ao contrário, os direitos fundamentais são extremamente antidemocráticos porque eles suspeitam do processo democrático. Através da vinculação também do legislador eles retiram competências decisórias da maioria par- lamentarmente legitimada. Constantemente vemos a oposição primeiro per- der no processo democrático e depois ganhar no areópago de Karlsruhe.

Esse duplo caráter dos direitos fundamentais deve repelir os ad- vogados de uma doutrina pura. Eles estão à espreita em ambos os lados do problema. Há tanto seguidores de um processo democrático conteudistica- mente ilimitado, geralmente idealistas rousseaunianos assumidos ou dis- farçados, quanto céticos da democracia, para quem existe uma tal ordem preestabelecida de coisas que é apenas confundida através do processo democrático e que por isso deveria ser protegida de forma ainda mais forte do que acontece hoje através de direitos fundamentais e outros princípios constitucionais. Não vamos nos preocupar com ambos. Nossa pergunta de- ve ser apenas como pode ser encontrado um caminho entre essas duas posições extremas.

2.2.2. Representação política e argumentativa

O ponto de partida é constituído pela noção de que direitos fundamen- tais são direitos tão importantes que a decisão sobre sua concessão ou não- concessão não pode ser deixada à maioria parlamentar simples. O que porém é tão importante a ponto de ser retirado da agenda política? Essa pergunta leva a problemas filosóficos profundos, em última instância, à pergunta se de fato existem direitos fundamentais e humanos ou se a crença neles não é, como afirmou Alasdair MacIntyre, diferente da “crença em bruxas e em unicórnios”.10Não podemos nos ocupar dessa questão aqui, e,

felizmente, não precisamos fazê-lo, pois é certo que, na Alemanha, os direitos fundamentais valem como direito positivo. Nosso tema é somente como se deve interpretá-los se a relação entre direitos fundamentais e democracia deve ficar equilibrada.

Poder-se-ia afirmar que os direitos fundamentais devem ser interpreta- dos de modo que eles protejam aquilo que todos os cidadãos consideram tão importante a ponto de não poder ser confiado à maioria parlamentar simples. Desse modo o princípio da democracia estaria reconciliado no mais alto grau com os direitos fundamentais. Essa concepção é, ao mesmo tempo, correta e incorreta. Vamos começar com aquilo que ela tem de falso. O que os cidadãos consideram importante depende de seus ideais, de suas representações sobre bens, de suas convicções religiosas e de sua visão de mundo. Queremos designar esse conglomerado difícil de ser dese- maranhado como “concepção moral”. Ora, é fato que as concepções morais dos cidadãos são extremamente diversas. John Rawls denominou isso o “fato do pluralismo”.11Certa concepção se atrela a uma ética de resultados

e detesta o estado social, outra estima sobretudo o prazer e o tempo livre e requer financiamento. Para uma o divórcio, o aborto e a pornografia são, por razões religiosas, um grande mal; outra vê nisso o triunfo da liberdade. Uma vê na técnica e na ciência a chave para o futuro, outra o instrumento do declínio. A lista pode ser prolongada praticamente até onde se queira. Ela mostra que os direitos fundamentais não podem ser apoiados simples- mente nas concepções morais dos cidadãos. Em que eles devem então se fundamentar? A solução está em uma velha ideia que se encontra no berço

dos direitos fundamentais como fenômeno da modernidade. Trata-se da distinção entre convicções pessoais e normas jurídicas válidas em geral. Na época tratava-se da liberdade de religião. Hoje, esse pensamento deve ser expandido às mais diversas formas de convicções, atitudes e projetos de vida. Existe uma diferença fundamental entre a pergunta “como quero eu viver?” e a pergunta “como queremos nós viver?”. A resposta à primeira pergunta constitui uma concepção moral pessoal, que inclui uma repres- entação daquilo que para mim é uma vida boa. A resposta à segunda per- gunta constitui uma concepção moral pública, que expressa uma repres- entação comum sobre condições justas de cooperação social em um mundo que é caracterizado pelo fato do pluralismo. Rawls fala então, quando se consegue uma resposta congruente à segunda questão, em um consenso sobreposto (overlapping consensus).12Naturalmente há conexões entre as

duas perguntas e a resposta a nenhuma das duas é fácil. De todo modo fica claro de que maneira deve ser determinado aquilo que é tão importante e que não pode assim estar à disposição do legislador ordinário. Deve-se per- guntar o que cidadãos racionais com diferentes concepções pessoais de bem consideram condições tão importantes da cooperação social justa sobre as quais o legislador ordinário não pode decidir. Nessa pergunta encontra-se a chave para uma possível reconciliação entre o princípio da democracia e os direitos fundamentais. Um tribunal constitucional que procura respondê-la de forma séria não quer colocar sua concepção contra a concepção do legislador; ele aspira antes a uma representação argument-

ativa dos cidadãos, que se opõe à representação política desses cidadãos no

parlamento. Se a representação argumentativa obtém êxito, obtém êxito a reconciliação.

Poderia se desejar algo mais preciso. Devo porém lembrar a obser- vação de Aristóteles sobre a exatidão na ciência do estado. Assim, lê-se na Ética a Nicômaco que “não [se deve] perseguir a exatidão da mesma forma no que diz respeito a todos os objetos [...], mas em cada caso do modo que o material dado permita”.13Essa avaliação, de mais de 2.300 anos, pode ser

completada através de uma visão do Tribunal Constitucional Federal de 1991. Ela reza:

A interpretação, sobretudo do direito constitucional, tem o caráter de um dis- curso, em que não são apresentados, através de um trabalho metodologica- mente perfeito, enunciados absolutamente corretos e incontestáveis do ponto de vista técnico, mas sim afirmadas razões, razões opostas e, por fim, as mel- hores razões que devem decidir a questão.14

Juntemos aquilo que ouvimos de filósofos e de Karlsruhe, e podemos agora afirmar sobre a relação entre direitos fundamentais e democracia: conhecemos o problema, possuímos um critério-guia para sua solução e po- demos agora começar o discurso sobre questões concretas. Para atrelar isso à prática usual na maioria dos estados democráticos constitucionais de hoje deve a confrontação até aqui usada entre direitos fundamentais e democra- cia ser ampliada para a tríade direitos fundamentais, controle de constitu- cionalidade e legislação parlamentar. Nesse contexto, seja de agora em di- ante finalmente analisada a decisão da segunda turma do Tribunal Con- stitucional Federal sobre o imposto sobre o patrimônio, de 22 de junho de 1995,15com base na qual deverão ser verificados os resultados até aqui

conseguidos.

No documento Alexy, Robert - Teoria Discursiva Do Direito (páginas 170-174)