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O IMPOSTO SOBRE PATRIMÔNIO COMO CASO-TESTE

No documento Alexy, Robert - Teoria Discursiva Do Direito (páginas 174-184)

Direitos fundamentais no estado democrático

2.3. O IMPOSTO SOBRE PATRIMÔNIO COMO CASO-TESTE

Na decisão do Tribunal Constitucional Federal sobre o imposto sobre o patrimônio tratou-se da questão sobre se o parágrafo 10, número 1, da Lei do Imposto sobre o Patrimônio (VStG), através da redação disponível até a decisão, violava a constituição, na medida em que onerava a propriedade imobiliária vinculada à unidade de valor e outras formas de patrimônio não vinculadas à unidade de valor com a mesma alíquota. Isso fraudaria, nos anos de arrecadação que a decisão abrangeria, 0,5% do patrimônio sujeito a tributação. A qual responsabilidade tributária essa alíquota levaria dependia essencialmente da avaliação do patrimônio existente na época. Isso ocorreu em relação à propriedade imobiliária e a outras formas de patrimônio, sempre de formas bastante distintas. A propriedade imobiliária foi, depois de 1964, avaliada com base em uma unidade de valor e entrou com 140%

desse valor na soma do patrimônio global. O patrimônio restante foi, ao contrário, estipulado através de valores correntes. Por isso pode-se dizer, grosso modo, que a propriedade imobiliária foi taxada de acordo com um valor passado e as outras espécies de patrimônio de acordo com o valor corrente. Por causa do considerável aumento no valor da propriedade imobiliária desde 1964 isso levou a uma carga tributária extremamente diferenciada entre a propriedade imobiliária e outras espécies de pat- rimônio. A carga tributária sobre o patrimônio imobiliário constituía, em alguns casos, meramente um décimo da carga do patrimônio restante. A justiça financeira de Rheinland-Pfalz viu nesse privilégio da propriedade imobiliária uma ofensa à máxima da igualdade, contida no artigo 3º, pará- grafo 1º da Lei Fundamental, e submeteu o caso ao Tribunal Constitucional Federal, em um processo de controle concreto de constitucionalidade (artigo 100, parágrafo 1º da Lei Fundamental). O Tribunal Constitucional Federal declarou o parágrafo 10, número 1 da lei sobre o imposto sobre o patrimônio (VStG) incompatível com o artigo 3º, parágrafo 1º da Lei Fun- damental, e considerou o legislador obrigado a produzir uma nova regula- mentação em um prazo generoso, até o fim do qual o direito então existente continuaria sendo aplicável. O prazo expirou sem que o legislador produzisse uma nova regulamentação. Assim, o imposto sobre o pat- rimônio não pôde mais ser cobrado.

Essa decisão é extremamente interessante para a questão aqui abor- dada sobre a relação entre direitos fundamentais, controle de constitucion- alidade e legislação, porque nela se misturam o problemático com o não- problemático e o todo é evidenciado de forma concreta através de um voto destacado bastante crítico do juiz Böckenförde. Começo com aquilo que não parece ser problemático.

A decisão da turma e a opinião divergente de Böckenförde concordam que a carga desigual entre o patrimônio vinculado à unidade de valor e o patrimônio não vinculado à unidade de valor viola a disposição de direito fundamental do artigo 3º, parágrafo 1º da Lei Fundamental, ou seja, a máx- ima geral da igualdade.16A carga desigual contradiria o conceito de im-

posto sobre o patrimônio, segundo o qual o patrimônio deveria basicamente ser estipulado proximamente ao tempo corrente e o imposto sobre o

patrimônio não seria justificado através de fins extrafiscais, como o in- centivo da construção imobiliária habitacional.17Por trás desse veredito

relacionado ao caso concreto está a regra geral de que na verdade o legis- lador, quando da escolha do objeto tributado e da fixação da alíquota do tributo, teria um amplo poder discricionário, mas deveria, depois da fixação desse objeto tributado e da alíquota do tributo, transpor a decisão tomada consequentemente ou consistentemente no sentido da igualdade da carga tributária.18

Tanto essa regra geral quanto a decisão do caso concreto estão abertas a diversas especificações, e ambas deixam muitos problemas em aberto. Não se deve ocupar deles aqui. A questão deve antes ser como ambas pro- posições esboçadas aqui, a concreta e a geral, devem ser avaliadas de acordo com o critério sugerido acima. Será que cidadãos racionais com diferentes concepções pessoais sobre o bem, por exemplo diferentes ori- entações sobre trabalho, concorrência e solidariedade, as considerariam condições tão importantes da justa cooperação social a ponto de o parla- mento não poder decidir contra elas ou violá-las? Pensemos no que signifi- caria uma autorização para o parlamento decidir contra elas ou violá-las. Ela significaria que a maioria parlamentar estaria autorizada a aprovar car- gas tributárias desiguais que, em primeiro lugar, contradizem o respectivo sistema tributário e, em segundo lugar, também não poderiam ser justifica- das como exceções. Até mesmo cidadãos que aspiram fortalecer as com- petências decisórias do parlamento o tanto quanto possível não podem querer isso se eles são racionais e exigem condições importantes de uma cooperação social justa. Cargas diferentes, que são incoerentes e não são justificadas, não são racionais nem justas, e é importante que elas não existam se o sistema jurídico deve manter sua legitimidade. Assim, a de- cisão sobre o imposto sobre o patrimônio oferece um exemplo tanto para uma ação judicial constitucionalmente legítima contra um legislador inerte, que não gosta de mexer em privilégios assentados de amplos círculos, quanto para a utilidade da nossa questão-guia.

Dois outros limites que o tribunal estabelece ao legislador tributário poderão encontrar concordância ampla. O primeiro pode ser expresso pela regra de que o contribuinte deve ser taxado de acordo com seu poder

financeiro,19ou seja, “de acordo com sua renda, patrimônio e presença no

mercado.”20Isso exclui, por exemplo, um imposto sobre o ato de votar em

eleições políticas.21Isso violaria o direito fundamental à igualdade da carga

tributária, do artigo 3º, parágrafo 1º da Lei Fundamental. A segunda regra estabelece um limite absoluto para o legislador. Ela proíbe que ele, que já oneraria através de impostos sobre a renda e rendimentos bem como at- ravés de tributos indiretos a “base econômica do modo pessoal de vida”, sujeite-a mais uma vez a um imposto sobre o patrimônio.22Isso significa

que um valor como o valor médio de uma habitação de uma família deve estar isento de imposto sobre o patrimônio.23

Naturalmente pode-se colocar isso em dúvida, como quase tudo. Porém, o verdadeiro problema começa somente com a questão de se o im- posto sobre o patrimônio além ou acima daquilo que é necessário para o modo pessoal de vida pode interferir nos ativos patrimoniais. A segunda turma do Tribunal nega essa possibilidade. De acordo com sua concepção, que ela classifica como “fundamental”,24o que é, no que diz respeito ao

efeito vinculante previsto no parágrafo 31 da Lei sobre o Tribunal Con- stitucional Federal (BVerfGE), pelo menos interessante, sob as condições do direito tributário atual, em que o patrimônio já é onerado através de di- versos outros tributos, o imposto sobre o patrimônio só deve ser autorizado como imposto sobre rendimentos patrimoniais. Rendimentos patrimoniais são os “possíveis frutos a serem usualmente esperados” de um pat- rimônio,25independentemente de eles serem de fato obtidos ou não.26A

limitação aos rendimentos financeiros significa que o patrimônio básico, o denominado patrimônio consolidado, está basicamente isento de imposto sobre o patrimônio, sendo assim vedado, ou seja, proibido, que o legislador estabeleça um imposto sobre o patrimônio como imposto sobre o pat- rimônio básico. Isso é fundamentado através da garantia à propriedade, contida no artigo 14 da Lei Fundamental, protegendo-a de um confisco gradual.27

A segunda turma do Tribunal não para aí. Ela limita o legislador não só em relação aos rendimentos patrimoniais usualmente obtíveis, mas tam- bém o proíbe completamente de atingir esses rendimentos. O artigo 14 da Lei fundamental protegeria não só o patrimônio substancial ou básico, mas

também seus rendimentos. O fato de o uso da propriedade, de acordo com o artigo 14, parágrafo 2º da Lei Fundamental, dever “ao mesmo tempo” servir ao bem estar da coletividade significa que o êxito econômico do uso da propriedade deveria estar disponível “com o mesmo valor”28para o uso

privado e para o bem-estar da coletividade. Disso resultaria que os rendi- mentos patrimoniais não poderiam ser completamente tomados pelo estado. Na verdade a carga tributária total sobre os rendimentos patrimoniais deveria conduzir a uma divisão pela metade entre público e privado, ou seja, não poderia ultrapassar a metade dos rendimentos patrimoniais.29

Segundo Böckenförde, todas essas considerações sobre rendimentos patrimoniais devem ser dispensadas, porque elas não teriam sido necessári- as para a decisão do caso. As relativamente não-problemáticas consider- ações sobre a proposição da igualdade seriam suficientes.30Isso pode

porém ser deixado como está, pois é fácil pensar uma constelação em que se chega à alternativa entre imposto sobre rendimentos patrimoniais e im- posto sobre o patrimônio básico. Somente isso deverá ser abordado a seguir.

Böckenförde tem a opinião de que a constituição não exige a restrição do imposto sobre o patrimônio a um imposto sobre rendimentos patrimoni- ais nem a divisão ao meio da carga tributária. O artigo 14, parágrafo 1º, da Lei Fundamental protegeria, segundo a jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional Federal, somente posições concretas de pro- priedade e não o patrimônio como um todo. Em relação a tributos o direito fundamental à propriedade ostentaria sua força somente se eles tivessem um efeito estrangulador.31Não haveria razão alguma para se desviar dessa

jurisprudência. Pelo contrário. O jogo livre da concorrência levaria, sob as condições da liberdade e igualdade jurídicas, ao surgimento da desigualdade material. Por isso, no estado social de direito o legislador deveria ter a possibilidade de correção “do processo não regulado de desen- volvimento social”.32O princípio do estado social (artigo 20, parágrafo 1º

da Lei Fundamental) o obrigaria a assegurar uma ordem social justa. O direito tributário seria exatamente o “meio elementar e a condição essen- cial” para se atingir o equilíbrio social.33Se somente os rendimentos patri-

moniais ou também o patrimônio básico deve ser taxado não seria uma

questão do direito constitucional, mas sim uma questão de política tributária, que deveria ser capaz de reagir às respectivas circunstâncias eco- nômicas e sociais.34A limitação à metade dos rendimentos patrimoniais,

estabelecida pela segunda turma do Tribunal, seria um privilégio dos pos- suidores de grande patrimônio e uma “limitação não justificada”,35um “en-

jaulamento do legislador”,36que já teria forçado a transformação do sis-

tema atual de tributação patrimonial em uma “cama de procrusto”37e teria

tornado o legislador futuro absolutamente “sem poder contra uma dinâmica própria que pode resultar da acumulação de valores patrimoniais”.38

Quem tem razão? Não é fácil responder a essa pergunta. Deve-se de fato dispor do patrimônio integralmente onerado tributariamente até o lim- ite da “supressão” da política tributária, como parece soar em Böcken- förde? Isso significaria não levar suficientemente a sério a garantia da pro- priedade, contida no artigo 14 da Lei Fundamental. Deve por outro lado o patrimônio básico uma vez adquirido – exceto em estado de calamidade como depois de 1918 e 194539– estar absoluta e definitivamente isento de

todo imposto sobre o patrimônio, quando, por considerações referentes a justiça social, isso se impusesse? Isso significaria levar não muito a sério o princípio do estado social, regulamentado no artigo 20, parágrafo 1º e no artigo 28 parágrafo 1º, proposição 1 da Lei Fundamental, assim como o uso social da propriedade, disposto no artigo 14, parágrafo 2º da Lei Funda- mental. Assim, tanto a decisão da segunda turma do Tribunal quanto a opinião divergente de Böckenförde não parecem ser a resposta correta, e todo aquele que conhece a história sobre a disputa em relação à justiça tributária como parte da disputa sobre a justiça social pode saber que o con- fronto nunca chegará a um ponto em que se consiga, de uma vez por todas, certeza e concordância geral. A partir disso devemos concluir que o con- trole de constitucionalidade – em geral ou em grupos de casos específicos – não seja talvez o instrumento correto para a proteção dos direitos fundamentais?

Eu entendo que não. A decisão da segunda turma do Tribunal bem como a opinião divergente de Böckenförde naturalmente oferecem motivos para crítica, mas não para uma postura cética contra o controle de constitu- cionalidade. Há duas razões para isso. A primeira é que, como mostra a

decisão, ao lado de divergências e problemas há também muitas coisas que são relativamente não-problemáticas e que possibilitam um amplo con- senso fundamental. Entre elas estão as considerações sobre o tratamento desigual entre o patrimônio vinculado à unidade de valor e o patrimônio não vinculado à unidade de valor, a tributação de acordo com a capacidade contributiva e a proteção dos fundamentos econômicos do modo pessoal de vida em relação ao imposto sobre o patrimônio. Muitos críticos do controle de constitucionalidade não percebem que em todas as áreas da constituição existem muitas questões não-problemáticas como essas. Somente se tal consenso desaparecesse ou dissesse respeito a coisas não importantes o controle de constitucionalidade realmente começaria a balançar. O segundo argumento contra a dúvida fundamental sobre o controle de constitucional- idade afirma que o mero fato de algo ser problemático e discutível diante de intérpretes racionais da constituição não constitui uma razão suficiente para afastar o controle de constitucionalidade e entregá-lo imediatamente ao parlamento democraticamente legitimado. Quem argumenta assim con- funde a dicotomia discutível-indiscutível com a dicotomia direito constitucional-política. A questão sobre com que intensidade o legislador pode taxar o patrimônio não é uma questão a ser respondida pela política, mas sim um problema do direito constitucional. Trata-se dos limites da política. A decisão da segunda turma do Tribunal e a opinião divergente mostram que a solução do problema não é fácil. Pode ser que nenhum dos dois lados tenha encontrado o ponto certo. Ele deve existir porém em al- gum lugar entre a supressão e a proteção absoluta do patrimônio básico, se os direitos fundamentais, por um lado, estabelecem restrições ao legislador, e se o princípio do estado social, por outro lado, obriga o legislador a asse- gurar uma ordem social justa.40Para resolver o problema, mais adequado

que uma decisão da maioria simples no parlamento é, nessa situação, antes o discurso multilateral entre o tribunal constitucional, o legislador, a opin- ião pública e a ciência, discurso esse em que a decisão esboçada não con- stituirá a última palavra. O parlamento decidiria como juiz de sua própria causa. A questão sobre as fronteiras da política se transformaria, pelo menos institucionalmente, em uma questão política, e enquanto questão sobre os limites da política perderia o sentido. Se é possível dar uma

resposta de direito constitucional a essa questão e se essa resposta deve ter significado político, resta assim somente o procedimento do controle de constitucionalidade.

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* Traduzido a partir do original em alemão Grundrechte im de- mokratischen Verfassungsstaat, publicado originalmente em Justice, Morality and Society, a Tribute to Aleksander Peczenik on the Occasion of his 60thBirthday – 16 November 1997, A. Aarnio/R. Alexy/G. Bergholtz (orgs.), Lund, Juristförlaget i Lund, 1997, p. 27-42.

1 L. A. Seneca, Epistulae morales ad Lucilum, Stuttgart, 1991, Livro 5, Carta 47: “’Servi sunt.’ Immo homines.”

2 Cf. H. Krüger, Grundgesetz und Kartellgesetzgebung, Göttin- gen, 1950, p. 12. 3 BVerfGE, 39, p. 1; 88, p. 203. 4 BVerfGE, 35, p. 79. 5 BVerfGE, 65, p. 1. 6 BVerfGE, 35, p. 79 (p. 143 s.). 7 BVerfGE, 65, p. 1 (p. 43). 8 BVerfGE, 7, p. 377 (p. 400 ss.). 9 BVerfGE, 32, p. 54 (p. 68 ss.).

10 A. MacIntyre, Der Verlust der Tugend, Darmstadt, 1988, p. 98. 11 J. Rawls, Die Idee des politischen Liberalismus, Frankfurt/M.,

1992, p. 334.

12 J. Rawls (nota 11), Die Idee des politischen Liberalismus, p. 293 ss.

13 Aristoteles, Nikomachische Ethik, Darmstadt, 1969, 1098a. 14 BVerfGE, 82, p. 30 (p. 38 ss.) 15 BVerfGE, 93, p. 121. 16 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 146, 149). 17 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 146 ss.) 18 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 136). 19 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 135). 20 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 134). 182/443

21 Cf. P. Kirchhof, Die Verschiedenheit der Menschen und die Gleichheit vor dem Gesetz, München, 1996, p. 46. 22 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 141). 23 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 141). 24 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 136). 25 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 137). 26 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 140). 27 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 137).

28 Cf. P. Kirchhof (nota 21), Die Verschiedenheit der Menschen und die Gleichheit vor dem Gesetz, p. 48.

29 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 138). 30 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 150 ss.). 31 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 153 ss.). 32 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 162 ss.). 33 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 163). 34 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 156 s.). 35 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 161 s.). 36 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 157). 37 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 158). 38 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 164). 39 BVerfGE, 93, p. 121 (p. 138 s.). 40 BVerfGE, 22, p. 180 (p. 204). 183/443

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A contrução dos direitos

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