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A prevenção e a responsabilidade civil extracontratual

No documento CURITIBA 2012 (páginas 176-181)

4. A REFUNDAMENTAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELA

4.2 A INTERNALIZAÇÃO DA PREVENÇÃO NO DIREITO DA

4.2.1 A prevenção e a responsabilidade civil extracontratual

A responsabilidade civil tem sido compreendida, ao longo da história, como instituto fundamentalmente reparatório da prática de atos que, em sendo qualificados como ilícitos, acarretam danos às vítimas. Vale dizer, só se poderia responsabilizar alguém após a verificação de sua imputabilidade em relação à violação do Direito e à causação de prejuízos.

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De tal premissa, portanto, redunda a implementação de todo um sistema jurídico eminentemente repressivo, voltado à descrição de comportamentos antijurídicos que, dadas determinadas regras de imputação, geram o dever de indenizar ou compensar os prejuízos sofridos pelas vítimas.

Assim idealizada a racionalidade da responsabilidade civil, parece evidente que o escopo de prevenção da prática de atos ilícitos e dos possíveis danos decorrentes, a partir do sistema de responsabilização, poderia ser considerado, quando muito, mera consequência eventual e indireta, ou seja, uma verdadeira externalidade fortuita que, apesar de desejada, não se fundaria exatamente no instituto referido.

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459 "O dano é, dos elementos necessários à configuração da responsabilidade civil, o que suscita menos controvérsia. Com efeito, a unanimidade dos autores convém em que não pode haver responsabilidade sem a existência de um dano, e é verdadeiro truísmo sustentar esse princípio, porque, resultando a responsabilidade civil em obrigação de ressarcir, logicamente não pode concretizar-se onde nada há que reparar.", DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, vol. II, 6ª ed. rev. e aum. Belo Horizonte: Forense, 1979, p. 393.

460 Conforme Hans-Bernd SCHÄFER e Claus OTT, a prevenção de danos causada pela aplicação do direito de responsabilidade civil é considerada, consencualmente, como um bem-vindo efeito colateral”. The economic analysis of civil law. Northampton: Edward Elgar, 2004, p. 110.

Por tal perspectiva, a prevenção da ilicitude e dos danos jamais poderia ser compreendida como fundamento próprio da responsabilidade civil, ou seja, um elemento constituinte interno do instituto, que se manteria, então, atrelado tão somente aos seus tradicionais vetores repressivos.

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Aliás, a remissão cada vez mais frequente à responsabilidade civil como um

“Direito de Danos”, no sentido de se pensar o sistema de responsabilidade de forma a viabilizar às vítimas a mais apropriada indenização, bem ilustra a preocupação com a repressão, desconsiderando-se ou pouco se creditando ao instituto eventual comprometimento com a prevenção.

Tal premissa começou a ser ao menos relativizada, gradativamente, a partir do momento em que a doutrina e a jurisprudência, inspiradas pelo sistema da common law, passaram a preconizar a necessidade de se atrelar à responsabilidade civil uma função punitivo-preventiva exemplar no intuito de, por via do agravamento da sanção pecuniária compensatória, induzir a dissuasão dos comportamentos ilícitos geradores de danos.

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A bem da verdade, aliás, o reconhecimento de que a prevenção pode ser gerada a partir da majoração da indenização parece revelar que a internalização da prevenção no âmbito da responsabilidade civil já está, ao menos na prática, efetivamente ocorrendo.

Com efeito, se a indenização constitui elemento integrante e essencial do instituto da responsabilidade civil, como parece pacífico, ao se preconizar a viabilidade da implementação de um sentido “repressivo-preventivo” a partir da

461 Extrai-se da doutrina tradicional a corrente lição segundo a qual “não haverá responsabilidade civil se inexistir dano, como dissemos, o que significa dizer que a prevenção de danos não integra o rol dos pressupostos da responsabilidade civil, tampouco a ameaça a direitos”, DONNINI, Rogério. Prevenção de danos e a extensão do princípio do neminem laedere.

Responsabilidade civil: estudos em homenagem ao professor Rui Geraldo Camargo Viana. Rosa Maria de Andrade Nery, Rogério Donnini (coords.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 490.

462 Como ressalta Judith MARTINS-COSTA, “Tal qual delineada na tradição anglo-saxã, a figura dos punitive dammages pode ser apreendida, numa forma introdutória e muito geral, pela ideia de indenização punitiva (e não dano punitivo, como às vezes se lê). Também chamados exemplary dammages, vindicte dammages ou smart money, consistem na soma em dinheiro conferida ao autor de uma ação indenizatória em valor expressivamente superior ao necessária à compensação do dano, tendo em vista a dupla finalidade de punição (punishment) e prevenção pela exemplariedade da punição (deterrance) opondo-se – nesse aspceto funcional – aos compensatory dammages, que consistem no montante da indenização compatível ou equivalente ao dano causado, atribuído com o objetivo de ressarcir o prejuízo”, Usos e abusos da função punitiva (punitive dammages e o direito brasileiro). R. CEJ Brasilia, nº 28, jan. mar/2005, p. 16.

indenização, o que se está a fazer é nada menos do que internalizar a prevenção na responsabilidade civil.

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Também no campo da responsabilidade civil negocial é possível apontar as mesmas justificativas para a incidência da prevenção, no intuito da preservação da integridade dos direitos derivados das relações negociais, por via da observância de deveres jurídicos ligados ao princípio da boa-fé, ainda que comumente designados como deveres instrumentais, secundários ou acessórios, na medida em que tendentes a proteger a prestação.

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Vale dizer, como adiante se pretende demonstrar, a internalização da prevenção também já pode ser considerada uma realidade no mundo da responsabilidade civil contratual.

O desafio que se abre a partir da constatação da presença da prevenção no Direito da responsabilidade civil, outrossim, diz respeito à sistematização científica de tal processo de internalização, que não deve ficar atrelada ao mero praxismo da doutrina e dos tribunais nacionais, sob pena de se revelar atentatória, inclusive, à garantia constitucional da segurança jurídica.

O que se pretende demonstrar presentemente ultrapassa a mera e atualmente notória constatação da assunção de uma função preventiva da responsabilidade civil. Sustenta-se a necessidade de uma possível sistematização da prevenção no campo da responsabilidade civil, o que só nos parece viável a partir do reconhecimento de que, muito mais do que funcionalizar o instituto, a prevenção na verdade o refundamenta, legitimando-o no contexto da sociedade atual.

Mas quais as razões que não apenas justificam como impõem uma tal internalização da prevenção? Em que sentido a refundamentação proposta revelar-se-ia útil e adequada ao direito da responsabilidade civil?

463 Exatamente por tal motivo, parece contraditório o pensamento da doutrina quando, a um só tempo, nega que a prevenção faria parte da responsabilidade civil mas acena para a possibilidade de a função preventiva ser concretizada por via do agravamento das indenizações: “Entretanto, a prevenção de danos (à pessoa, ao meio ambiente, nas relações contratuais de qualquer natureza) se dá, como dissemos, por força do referido art. 5º, XXXV, da CF (...). Todavia, a real e efetiva prevenção de danos sucede com a fixação do valor de desestímulo quando do arbitramento da indenização (...). Portanto, previne-se o dano com a fixação de valores indenizatórios que, efetivamente, inibam o agente”, DONNINI, Rogério. Prevenção de danos e a extensão do princípio do neminem laedere. Responsabilidade civil: estudos em homenagem ao professor Rui Geraldo Camargo Viana. Rosa Maria de Andrade Nery, Rogério Donnini (coords.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 498-499.

464 Como afirma GLITZ, “As atividades negociais não só possuem função social, como lhes é imprescindível o respeito aos princípios constitucionalmente garantidos. Essa noção introduz na seara negocial novos dilemas e perspectivas. Dentre elas destaca-se o papel da boa-fé como princípio obrigacional e suas diversas funções e como forma de manutenção do equilíbrio contratual.”

GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin. Contrato e sua conservação: lesão e cláusula de hardship.

Curitiba: Juruá, 2008. p. 44-45.

Para que se possa responder às referidas indagações, uma primeira anotação direciona-se às profundas modificações do modo de ser da sociedade do século XXI, exposta, como nunca antes, a todo tipo de riscos e lesões contra as quais a resposta repressiva do sistema jurídico não se revela minimamente apropriada ou mesmo razoável. Tal constatação é ainda mais evidente quando se lançam os olhos à tentativa de proteção dos direitos fundamentais.

Assim, contra a insatisfatoriedade da sistemática repressiva dos danos acarretados aos direitos, parece claro que o Ordenamento Jurídico deve responder adequadamente, mediante a criação de novos mecanismos capazes de induzir a prevenção de danos (mediante a antecipação de possíveis riscos e lesões a direitos) e a dissuadir a sua repetição.

Sob o ponto de vista constitucional, a adequada e integral proteção dos direitos, sobretudo daqueles considerados fundamentais, implica a reconsideração das formas de tutela ofertadas pelo Ordenamento Jurídico, sendo para tanto imprescindível a atuação legislativa e jurisdicional precisamente, mais uma vez, no campo da responsabilidade civil.

Não parece correto, nessa perspectiva, compreender que a atuação protetiva dos direitos, sob o viés preventivo, fosse única e exclusivamente atrelada à tutela jurisdicional, por via do direito de ação. Antes e por excelência, o próprio direito material deve propiciar tal tutela preventiva, por via de uma especial disciplina a respeito, ordenada instrumentalmente por via do instituto da responsabilidade civil.

Aí reside, também, a justificativa pragmática para a internalização institucional da prevenção no Direito da responsabilidade civil: a reformulação dos mecanismos protetivos materiais, adiante mencionados, com vistas à prevenção da ocorrência da ilicitude e dos prováveis danos dela derivados ou de sua dissuasão.

Todas as razões acima expostas, justificadoras da pretendida internalização da prevenção lato senso na responsabilidade civil, direcionam-se no sentido da demonstração de que é precisamente dela que passa a depender a readequação institucional não apenas do Direito de responsabilidade civil, mas, por decorrência, do próprio direito privado, que se pretende constitucionalizado e, portanto, comprometido com a concretização dos valores constitucionais fundamentais.

Pretende-se que mediante essa nova racionalidade sejam viabilizadas

condições para o redimensionamento conceitual, institucional e funcional da

responsabilidade civil, agora repensada sob um viés preventivo que, sem abandonar

o paradigma do ressarcimento das vítimas, revela-se mais consentâneo com as necessidades de proteção dos direitos.

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Da mesma forma como o surgimento de novas racionalidades implicaram, historicamente, a transposição do fundamento da culpa para o risco, da responsabilidade individual para a coletiva e o deslocamento do eixo central da responsabilidade, diga-se, do ato agressor para a pessoa da vítima e seu direito à plena indenização pelos danos sofridos, parece claro que agora também se vive o momento de, por via de uma nova racionalidade, deslocar-se mais uma vez o eixo central do Direito de responsabilidade civil, da repressão dos danos para a sua prevenção.

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Sustenta-se, pois, que a responsabilidade preventiva passe a ser considerada não apenas uma expressão voltada a explicar eventuais efeitos reflexos derivados das regras de responsabilidade civil, mas sim, verdadeiro fundamento, um novo paradigma por via do qual os próprios instrumentos do Direito da responsabilidade civil possam vir a ser repensados, reconstruídos ou ao menos adaptados, legislativa ou judicialmente, no intuito de uma maior e melhor eficiência do instituto para dar respostas mais ajustadas à realidade social contemporânea.

465 Conforme Thomas S. KUHN, “a transição para um novo paradigma é uma revolução científica, justificada, necessariamente, pela insatisfatoriedade do paradigma anterior. (...). As revoluções políticas iniciam-se com um sentimento crescente, com freqüência restrita a um segmento da comunidade política, de que as instituições existentes deixaram de responder adequadamente aos problemas postos por um meio que ajudaram em parte a criar. De forma muito semelhante, as revoluções científicas iniciam-se com um sentimento crescente, também seguidamente restrito a uma pequena subdivisão da comunidade científica, de que o paradigma existente deixou de funcionar adequadamente na exploração de um aspecto da Natureza, cuja exploração fora anteriormente dirigida pelo paradigma. Tanto no desenvolvimento político como no científico, o sentimento de funcionamento defeituoso, que pode levar à crise, é um pré-requisito para a revolução”. A estrutura das revoluções científicas. 9 ed., São Paulo: Respectiva, 2005, p. 122-126.

466 Não é outro o pensamento de Teresa Ancona LOPES, que sustenta expressamente a existência de uma “responsabilidade preventiva”, assentada na incidência dos princípios da prevenção e da precaução no sistema da responsabilidade civil: “O princípio da precaução, que tem como fundamento ético a prudência e jurídico a obrigação geral de segurança, deverá, doravante, fazer parte da responsabilidade civil, e esse ramo do direito passa a ter três funções: a função compensatória (reparação integral); a função dissuasória (deterrance), que aparece através das indenizações pesadas contra o autor do dano (essa função é chamada de preventiva ainda hoje); a função preventiva, em sentido lato, englobando os princípios da precaução e da prevenção, pela qual haverá a antecipação de riscos e danos. (...) Com isso nasce a responsabilidade preventiva, que funcionará ao lado da responsabilidade reparadora ou clássica. Uma não exclui a outra. Ambas são necessárias, pois, caso o dano não consiga ser evitado, deverá ser reparado integralmente por seu autor ou pelo seguro. Portanto, diante da sociedade de risco, teve a responsabilidade civil que evoluir acrescentando os princípios da precaução e da prevenção ao seu rol já tradicional de princípios.

Houve apenas acréscimo sem recuo ou perda de importância, seja da culpa, seja do risco. Essa transformação que vivemos na sociedade atual é semelhante àquela que levou à introdução da responsabilidade objetiva e coletiva em um sistema todo fundamentado na responsabilidade individual e na culpa”. Princípio da precaução e evolução da responsabilidade civil. São Paulo, Quartier Latin, 2010, p. 17.

4.2.2 A responsabilidade civil preventiva no campo das relações obrigacionais

No documento CURITIBA 2012 (páginas 176-181)