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A confusão entre ilicitude e dano

No documento CURITIBA 2012 (páginas 168-172)

4. A REFUNDAMENTAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELA

4.1.2. A confusão entre responsabilidade, ilicitude, dano e dever de reparação

4.1.2.2 A confusão entre ilicitude e dano

A confusão conceitual que obstaculiza a evolução da responsabilidade civil preventiva, contudo, não se restringe à pressuposição de que todo o ato, para ser considerado ilícito, deve ser compreendido na perspectiva da culpabilidade do agente.

Para além dessa confusão, ainda se deve anotar a inadequada correlação proposta usualmente entre os significados de ilicitude e dano, compreendidos geralmente como imprescindíveis para a configuração da responsabilidade civil, vale dizer, para a atuação da tutela jurisdicional.

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Isso foi percebido pela doutrina, tanto civilista como processualista, ao voltar seus olhos para o combate à ilicitude puramente considerada, por via da chamada tutela inibitória (adiante analisada), compreendida como técnica preventiva por excelência que se volta contra a prática, permanência ou reiteração da ilicitude, antecipando-se, assim, ao eventual dano concreto, que não é nem deve ser considerado pressuposto de atuação de referida técnica inibitória.

Foi precisamente a partir da desconexão dos conceitos de ilicitude, culpabilidade e dano que a doutrina italiana

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, precursora dos estudos sobre a tutela inibitória, galgou uma apurada construção de uma técnica processual

439 Conforme Flavia Portela PÜSCHEL, “A ilicitude é a qualidade da conduta contrária ao direito. A norma jurídica pode em certos casos exigir outros requisitos para que a conduta ilícita seja imputada, isto é, atribuída à responsabilidade de alguém. Mas, do fato de que a ilicitude não seja elemento suficiente para a imputação de responsabilidade não decorre que a ilicitude em si dependa da culpabilidade do agente”. PÜSCHEL, Flavia Portella. Responsabilidade civil objetiva: correção de trocas ineficientes ou repressão ao ilícito? Artigos (working papers) DIREITO GV. São Paulo:

DIREITO GV, n. 46, mar. 2010, p. 09.

440 O dano sempre foi concebido como um elemento constitutivo do ilícito civil, entendimento que prevaleceu na concepção de Orlando GOMES para quem a ideia de se ater a conceitos puros, no caso de ilícito civil desassociado de dano, seria fazer com que o Direito “perca seu sentido prático”, GOMES, Orlando, Responsabilidade Civil. Texto revisado, atualizado e ampliado por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 63.

441 RAPISARDA, Cristina. Profili della tutela civile inibitória. Padova: Cedam, 1987, p. 33 e segs.

verdadeiramente preventiva, hábil a proteger os direitos antes mesmo da violação geradora de eventuais danos.

Tal como no Brasil, o Direito civil italiano estatui o dever de indenizar decorrente da ilicitude em dispositivo ambíguo, objeto de intensos debates e críticas doutrinárias.

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É que tanto na Itália como no Brasil, como adiante se demonstra, as noções de ilicitude, dano e de responsabilidade civil comumente são apresentadas de forma unificada, conduzindo à ideia de que toda lesão a direitos pode ser estimada pecuniariamente. Nesse sentido, o ilícito não só estaria ligado à ideia de indenização pecuniária, como também ao fato danoso.

A associação do ilícito ao dano deriva do raciocínio de que a violação ao Direito exige uma proteção contra o dano, seja de modo específico, isto é, quando for possível a recomposição in natura, ou através do equivalente em dinheiro.

Percebe-se, então, que a tutela somente poderia ser dirigida para a hipótese de ocorrência do dano, mas não teria sentido ou não seria ao menos justificável para a inibição ou a remoção do ilícito, quando ausente o evento danoso.

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Assim, a racionalidade do Direito da responsabilidade civil acabou sendo formatada, ao longo da história, sob o domínio da necessária correlação entre a ilicitude e o dano, na medida em que a única razão de instituir-se um regime de responsabilização residiria no dever de reparar prejuízos concretamente sofridos pelas vítimas.

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Como parece evidente, contudo, o dano deve ser compreendido como consequência empiricamente sentida no campo patrimonial ou extrapatrimonial de

442 Trata-se do art. 2043 do código civil italiano, que estabelece o “Risarcimento per fatto illecito: Qualunque fatto doloso o colposo, che cagiona ad altri un danno ingiusto, obbliga colui che ha commesso il fatto a risarcire il danno”. Tradução livre: “Ressarcimento por fato ilícito: Qualquer fato doloso ou culposo que acarreta a outrem um dano injusto, obriga aquele que cometeu o fato a ressarcir o dano”.

443 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2 ed. São Paulo:

Revsita dos Tribunais, 2008, p. 158.

444 Conforme bem descreve Judith MARTINS-COSTA, “Vivendo a ‘lógica proprietária’ e o patrimônio constituindo a categoria central do direito civil clássico, a doutrina elaborou a Teoria dos Atos Ilícitos em obediência à tradicional distinção entre responsabilidade contratual e extracontratual:

assim se estabeleceu a distinção entre o ilícito contratual, ou relativo, e o ilícito extracontratual (absoluto), sintetizado, este último, na expressão neminem laedere – ambas as noções sendo construídas a partir da noção de dano e de responsabilidade (contratual e extracontratual) patrimonial”. Breves anotações acerca do conceito de ilicitude no novo Código Civil. Estruturas e rupturas em torno do art. 187. Disponível em http://jus.com.br/revista/texto/4229/breves-anotacoes-acerca-do-conceito-de-ilicitude-no-novo-codigo-civil – Acesso em 10/09/2011.

alguém, sendo, portanto, eventual e independente da ilicitude. Como bem descreve ARENHART,

O dano corresponde a alguma conseqüência prejudicial, sentida no mundo concreto, que pode resultar de uma conduta (positiva ou negativa, ação ou omissão) praticada. Como tal, é possível perfeitamente encontrar hipóteses de danos lícitos, como aquele decorrente da expropriação, independentemente de indenização, de imóveis particulares, pela União, em que se encontre cultivo ilegal de plantaspsicotrópicas (art. 243 da CF).

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De fato, a noção tradicional da ilicitude foi construída no Direito civil clássico a partir da perspectiva patrimonial, concebendo-se o ato ilícito puramente pela sua consequência, isto é, o dever de indenizar oriundo de dano ao patrimônio.

É importante observar que, na medida em que se associa necessariamente o ilícito ao fato danoso, ignora-se que a conduta ilícita, por si só, independentemente de produzir danos, representa a violação ao Direito que igual e autonomamente merece tutela, sobretudo nos sensíveis campos dos direitos extrapatrimoniais e fundamentais. Trata-se de compreender que inibir a conduta ilícita não é o mesmo que inibir o evento danoso.

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Há, todavia, notáveis exemplos de regulações legislativas que, percebendo a necessidade de separar os conceitos de ilicitude e dano, acabam implementando técnicas muito mais apropriadas para a tutela dos direitos. É o que ocorre, exemplificativamente, com a disciplina que o direito italiano confere à concorrência desleal e aos direitos autorais.

O Codice Civile italiano, ao regular o tema da concorrência desleal, aponta expressamente três formas de tutelas diferenciadas, quais sejam, a inibitória, a de remoção do ilícito e a ressarcitória. Segundo o art. 2.599 do Código Civil italiano, “a sentença que declara a existência de atos de concorrência desleal inibe a sua continuação e confere as providências necessárias a fim de que sejam eliminados

445 ARENHART, Sérgio Cruz. Perfis da tutela inibitória coletiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 102-103.

446 “Contudo, o incorreto não é só ligar o ilícito à indenização pecuniária, mas associar o ilícito com o fato danoso, ainda que ele seja suscetível de ressarcimento na forma específica. A associação de ilícito e dano deriva da suposição de que a violação do direito somente pode exigir do processo civil tutela contra o dano – na forma específica ou pelo equivalente monetário-, mas jamais uma tutela voltada a remover o ilícito (independentemente de ele ter provocado dano). Ou ainda: tal associação se funda na falsa premissa de que o processo civil não pode impedir a violação de um direito sem se importar com a probabilidade de dano. Frise-se que inibir a violação não é o mesmo que inibir o dano.

Além disso, do ponto de vista probatório, é muito mais fácil caracterizar o ilícito ou sua ameaça do que precisar o dano ou sua probabilidade”. MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 159.

os seus efeitos”. Nota-se que referido dispositivo não faz qualquer menção ao dano, à culpa ou ao dolo do agente que transgride o direito, aludindo apenas à tutela inibitória e à remoção dos efeitos do ato ilícito.

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Da mesma forma, a Lei italiana sobre Direito do Autor (Lei n.º 633, de 22.04.41) estabelece evidente proteção inibitória no artigo 156,

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independentemente da alusão a qualquer dano efetivo, aludindo à proteção do interessado que tema a violação do direito ou que pretenda impedir a sua continuação ou repetição.

Restando evidente a dissociação entre a ilicitude e sua eventual consequência (dano), torna-se mais fácil admitir que a responsabilidade civil não apenas pode como deve reger-se tanto pela perspectiva repressiva (combatendo os danos já produzidos) como, igualmente, pela perspectiva preventiva (combatendo a ameaça de dano por via da tutela inibitória, que se volta contra a ilicitude).

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447 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2ª ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2008, p. 159. Conforme preconiza o art. 2.600 do Codice Civile, todavia, a obrigação de ressarcimento por eventuais danos passa a existir se os atos de concorrência desleal forem praticados com dolo ou culpa, isto é, no âmbito da tutela ressarcitória, tal como já estabelecido pelo art. 2.043 do mesmo diploma (“qualquer fato doloso ou culposo, que ocasione a outrem dano injusto, obriga ao ressarcimento do dano”).

448 “Chi ha ragione di temere la violazione di un diritto di utilizzazione economica a lui spettante in virtù di questa legge, oppure intende impedire la continuazione o la repetizione di una violazione già avvenuta, può agire in giudizio per ottenere che il suo diritto sia accertato e sia interdetta la violazione.” Tradução livre: “Quem tem razão de temer a violação de um direito de utilidade econômica pertencente a ele em virtude desta lei, ou pretende impedir a continuação ou a repetição de uma violação já ocorrida, pode agir em juízo para obter que o seu direito seja protegido e seja evitada a violação.” Sobre a proteção dos direitos autorais no Brasil, vide STAUT Jr., Sérgio Said. Direitos autorais: entre as relações sociais e as relações jurídicas. Curitiba: Moinho do Verbo, 2006.

449 “Bonasi Benucci, um dos juristas que melhor trataram do tema no direito italiano, afirma que o art. 2043 do CC limita-se a mencionar os requisitos que obrigam alguém a ressarcir o dano consequente ao ilícito, mas não descreve o ilícito nem exaure a especificação dos meios de tutela que o ordenamento oferece àquele que venha a ser por ele atingido. Para evidenciar que o dano não é elemento constitutivo do ilícito, argumenta que, quando se diz que não há ilícito sem dano, identifica-se o ato contra ius com aquela que é a sua normal consequência e isso ocorre apenas porque o dano é o sintoma sensível da violação da norma. A confusão entre ilícito e dano seria o reflexo do fato de que o dano é a prova da violação e, ainda, do aspecto de que entre o ato ilícito e o dano subsiste frequentemente uma contextualidade cronológica que torna difícil a distinção dos fenômenos, ainda que no plano lógico”. MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 160.

No documento CURITIBA 2012 (páginas 168-172)