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A ilicitude no Direito Civil brasileiro

No documento CURITIBA 2012 (páginas 172-176)

4. A REFUNDAMENTAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELA

4.1.2. A confusão entre responsabilidade, ilicitude, dano e dever de reparação

4.1.2.3 A ilicitude no Direito Civil brasileiro

No ordenamento brasileiro, o Código Civil reserva, em sua chamada “Parte Geral”, três dispositivos (artigos 186 a 188) para tratar especificamente dos chamados atos ilícitos. Para além disso, também na “Parte Especial” do Código, os atos ilícitos são tratados, dentro do Direito das Obrigações.

O artigo 186 do Código Civil, conforme acima adiantado, utiliza-se de um conceito stricto sensu de ato ilícito, aparente e equivocadamente misturando as noções de ilicitude, culpabilidade e dano.

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Justamente por isso, a redação de referido dispositivo vem sendo alvo de pertinentes críticas em razão da notória confusão conceitual que cria, sobretudo quanto à pretensa necessária ligação entre ilicitude, dano e o dever de reparação.

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De fato, para além de ligar a noção de ilicitude à de culpabilidade do agente, o artigo 186 também parece cogitar de uma necessária ligação entre a ilicitude e o dano, como se este fosse pressuposto daquela.

Diferentemente da redação do art. 159 do revogado Código Civil de 1916 (que abria o Título II, do Livro III, referente aos “atos ilícitos”), segundo o qual “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, ou causa prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano” (grifos nossos), a redação do art. 186 do novo Código Civil brasileiro parece incluir o dano como elemento

450 Conforme se depreende da leitura art. 186: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Ainda, o artigo 187 do Código Civil incluiu o abuso de direito como ato ilícito:

“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

451 Explicando a subversão derivada da tentativa de construção do conceito de ilicitude a partir da verificação do dano e do dever de indenizar, Judith MARTINS-COSTA assevera, “Ora, as conseqüências dessa conexão, por assim dizer, automática foram grandes: em primeiro lugar, a ilicitude civil era vista, tradicionalmente, de forma amarrada à culpa, ao dano e à conseqüência indenizatória. Não era um conceito que valesse por si, que tivesse um campo operativo próprio, era mera "condição" da responsabilidade. Tanto assim é que, não apenas a letra do art. 159 do Código de 1916 assim dispunha, quanto o exame doutrinário da ilicitude era feito, modo geral, a partir do seu efeito "natural", qual seja, o nascimento do dever de indenizar. Por esse viés, não apenas confundia-se a ilicitude com o elemento subjetivo (culpa) quanto a própria idéia de ilicitude restava limitada às hipóteses de "ilicitude de fins", seja na violação aos direitos do parceiro contratual, seja na violação a direitos absolutos, pouco espaço restando para a chamada "ilicitude de meios". Em segundo lugar, essa concepção não deixava espaço à percepção dos variados casos em que ocorre o nascimento do dever de indenizar independentemente da prática de um ato ilícito”. Breves anotações acerca do conceito de ilicitude no novo Código Civil. Estruturas e rupturas em torno do art. 187. Disponível em:

http://jus.com.br/revista/texto/4229/breves-anotacoes-acerca-do-conceito-de-ilicitude-no-novo-codigo-civil – Acessado em 10 de setembro de 2011.

constitutivo do ato ilícito, por meio da conjunção aditiva “e”, ao invés da anterior conjunção alternativa “ou”.

Com efeito, conforme o referido art. 186, “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (grifos nossos).

Ainda, o novo dispositivo excluiu a antiga expressão “fica obrigado a reparar dano”, constante do revogado artigo 159 do Código Civil de 1916, deslocando o dever de reparação para Título próprio do Código, especificamente no art. 927 da nova codificação.

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Assim sendo, estaria aparentemente excluída a possibilidade de se responsabilizar civilmente alguém, no Brasil, pela mera probabilidade ou eventualidade da violação de direitos por conduta ou da mera assunção de riscos pelo exercício de certas atividades, na medida em que a legislação refere expressamente “o dano” como sendo condição de incidência da responsabilidade civil.

Em síntese, pois, o conceito de ato ilícito preconizado pelo artigo 186 do Código Civil estaria pressupondo não apenas a culpa, mas também a geração de danos.

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Criticando a incoerência da redação do art. 186 do Código Civil, quando ainda constante do anteprojeto encaminhado ao parlamento, asseverou AGUIAR DIAS:

O texto se me afigura realmente decepcionante. Se o que se pretendia era tratar separadamente do ato ilícito e da reparação do dano, ao contrário do art. 159, que tratava da obrigação de reparar baseada na culpa, houve um visível excesso na definição daquele, em cujos elementos integrantes não figura o dano, requisito, sim, da obrigação de reparar. O ato ilícito pode não causar dano. (...) Acontece que o art. 186 incide numa petição de princípio.

Com efeito, dizer, simplesmente, que o agente pratica o ato ilícito será o mesmo que enunciar: aquele que comete ato ilícito comete ato ilícito [...]. O Projeto não enunciou princípio nenhum. Não se diga que o art. 929 [relacionado ao art. 927 do CC] contém a sanção. Se assim se entender,

452 Artigo 927 do Código Civil, “caput”: “Aquele que, por ato ilícito (arts.186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.” Destaque-se que ambos os dispositivos do atual Código (arts. 186 e 927) omitiram uma das modalidades do conceito de culpa em sentido estrito (a imperícia), referindo-se apenas à negligência e à imprudência.

453 “Em sentido estrito, o ato ilicito é o conjunto de pressupostos da responsabilidade civil – ou, se preferirmos, da obrigação de indenizar. (...) Na responsabilidade subjetiva, como veremos, serão necessários, além da conduta ilícita, a culpa, o dano e o nexo causal. Esse é o sentido do art.

186 do Código Civil. A culpa está ali inserida como um dos pressupostos da responsabilidade subjetiva”. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 9 ed., São Paulo: Atlas, 2010, p. 10.

se-á uma imperfeição da técnica legislativa, enunciando o Código um preceito sem consequência, na Parte Geral, e transferindo para a Parte Especial a consequência desse preceito.

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A partir de todas essas incongruências supra-apontadas, a doutrina

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tem afirmado e reafirmado a necessidade de se interpretar sistematicamente a estrutura criada pelo novo Código Civil brasileiro em relação ao tratamento da ilicitude, ignorando-se o sentido puramente literal dos novos textos implementados pelo legislador.

Mediante uma tal interpretação sistemática, pretende-se sustentar que o artigo 186 do Código Civil, que aparentemente disciplina o ato ilícito em sentido estrito, em verdade deve cortar a ligação entre o conceito de ilicitude, de dano e, consequentemente, do dever de indenizar, até porque referida obrigação de indenização passou a ser tratada em Título próprio (art. 927 do CC vigente).

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Com efeito, a incoerência e insatisfatoriedade da metodologia empregada na redação do art. 186 do Código Civil brasileiro, ao tentar conceituar a ilicitude apenas aos atos antijurídicos praticados culposamente, tem sido fortemente atacadas pela doutrina, sobretudo porque, como parece claro, não se pode deixar de lado outras formas de atos contrários ao direito, imputáveis a alguém, mas que não se enquadram na violação de deveres genéricos praticados em razão da culpa do agente, causando o dano e gerando o dever de indenizar.

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454 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 38-39.

455 Conforme assevera Fernando NORONHA, “O art. 159 do Código de 1916 referia a necessidade de ocorrência de um dano, mas evidentemente este não entra na noção de ato ilícito, como dito no texto. No entanto, nesse Código a referência era compreensível, porque o dispositivo, ao mesmo tempo em que definia o ato Ilícito, estatuía a obrigação de reparar o dano que resultasse dele. Já no art. 186 do Código de 2002, que se limita a dar uma noção de ato Ilícito, sem cuidar de suas conseqüências jurídicas, que passaram a ser estabelecidas noutro lugar (o art. 927, caput), a referência ao dano é injustificável”, Direito das obrigações. 2 ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p. 365.

No mesmo sentido, Rui STOCCO afirma: “Significa, portanto, que o art. 186 caracteriza apenas uma cláusula geral de ilicitude. Se a conduta do agente a ela se subsume ter-se-á apenas a ocorrência de um ato Ilícito. Para que ocorra a responsabilidade civil e surja o dever de indenizar há se aderir à ilicitude do ato um dano”, Tratado de Responsabilidade civil. 8ª ed. revista e atualizada. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2011, p. 142-143.

456 Nesse sentido, MARTINS COSTA, Judith. Breves anotações acerca do conceito de ilicitude no novo Código Civil. Estruturas e rupturas em torno do art. 187. Disponível em http://jus.com.br/revista/texto/4229/breves-anotacoes-acerca-do-conceito-de-ilicitude-no-novo-codigo-civil – Acessado em 10 de setembro de 2011. Ainda, BRAGA NETO, Felipe Peixoto. Teoria dos Ilícitos Civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, e STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade civil. 8ª ed.

revista e atualizada. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2011, p. 142-143.

457 Nesse sentido, dentre outros, consulte-se PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, t. II, Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, p. 207 e Marcos Bernardes de MELLO, que sustenta, “De tal forma seria possível conceituar o ato ilícito em sentido amplo como “toda ação ou omissão voluntária, culposa ou não, conforme a espécie, praticada por pessoa imputável que, implicando

Percebe-se, portanto, que apenas mediante a adoção de um conceito amplo de ilicitude torna-se possível a adequada e necessária compreensão de diversos desdobramentos, tais como: a) a imputação vinculada ou não à culpa do agente; b) a infração de dever absoluto ou relativo (responsabilidade contratual e extracontratual); c) a violação a direito desvinculando-se da ideia de que todo ilícito é danoso e passível de indenização.

Para além disso, a compreensão do sentido lato da ilicitude abre as portas também para a sustentação da responsabilidade civil preventiva, uma vez que se passa a preconizar a necessidade de uma proteção efetiva e necessariamente preventiva em relação a direitos fundamentais que não suportam solução indenizatória adequada.

Nesse sentido, já salientou MARTINS-COSTA que

Para viabilizar uma adequada tutela à pessoa e aos direitos da Personalidade, aos direitos difusos, coletivos e às obrigações duradouras, será importante perceber que o novo Código opera a separação (metodológica) entre ilicitude e dever de indenizar, não aludindo diretamente nem ao elemento subjetivo (culpa), nem ao dano, nem à responsabilidade civil, o que abre ensejo: a) à sua maior inserção no campo do direito da Personalidade, possibilitando visualizar novas formas de tutela, para além, da obrigação de indenizar, e, b) à compreensão de que pode haver ilicitude sem dano e dano reparável sem ilicitude”.

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Como parece notório, o legislador brasileiro, ao tratar da sistemática da responsabilidade civil, preocupou-se exclusiva e excessivamente com a ideia de reparação do dano, reduzindo a própria razão de ser do instituto ao seu tradicional objetivo reparatório.

Assim, o legislador parece ter ignorado uma das próprias razões de ser da responsabilidade civil, como se sustenta ao longo do presente trabalho, relativamente à prevenção de danos. Vale dizer, ignorou a necessidade de se funcionalizar o instituto da responsabilidade civil, ligando-o não apenas à função de reparação, mas, antes, também à função de prevenção.

infração de dever absoluto ou relativo, viole direito ou cause prejuízo a outrem”. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 13 ed. São Paulo: Saraiva, p. 242 e 243.

458 MARTINS-COSTA, Judith. Breves anotações acerca do conceito de ilicitude no novo Código Civil. Estruturas e rupturas em torno do art. 187. Disponível em http://jus.com.br/revista/texto/4229/breves-anotacoes-acerca-do-conceito-de-ilicitude-no-novo-codigo-civil – Acesso em 10 de setembro de 2011.

Portanto, somente mediante a releitura do conceito de ilicitude torna-se viável o surgimento de novas construções, mormente no campo do direito da responsabilidade civil, hábeis a preconizar uma proteção verdadeiramente preventiva aos direitos fundamentais, tais como os direitos da personalidade e os direitos difusos e coletivos.

4.2 A INTERNALIZAÇÃO DA PREVENÇÃO NO DIREITO DA RESPONSABILIDADE

No documento CURITIBA 2012 (páginas 172-176)