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O instituto da fluid recovery (art. 100 do CDC) e o enriquecimento ilícito do

No documento CURITIBA 2012 (páginas 105-109)

2. A TUTELA DOS DIREITOS E A RESPONSABILIDADE CIVIL PREVENTIVA

2.3.1 O instituto da fluid recovery (art. 100 do CDC) e o enriquecimento ilícito do

Diante da notória insuficiência e insatisfatoriedade do modelo processual individual para viabilizar a reparação dos danos individuais, foi introduzida no Código de Defesa do Consumidor brasileiro (Lei n.º 8078/90), ao complementar o sistema de tutela jurisdicional coletiva já criado por obra da Lei da Ação Civil Pública (Lei n.º 7347/85), a possibilidade da defesa coletiva dos chamados direitos individuais homogêneos, conceituados como sendo aqueles “decorrentes de origem comum”

(art. 81, parágrafo único, III do CDC).

No âmbito dessa relevante espécie de ação coletiva, foi prevista pelo legislador a possibilidade de o juiz, sob certas condições, em vista do não comparecimento dos indivíduos em juízo para o fim de se habilitar para receber eventual indenização a que teriam direito, estimar um valor especificamente destinado a Fundos de Direitos Difusos, tendo como finalidade justamente a punição do ofensor já condenado na ação coletiva, evitando que retire vantagem indevida do ilícito pelo qual foi responsabilizado, em virtude dos óbices relacionados ao acesso à justiça por parte de vítimas e sucessoras.

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Parece inegável que a grande justificativa para a fixação da chamada fluid recovery

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nas ações coletivas brasileiras reside justamente na tentativa de se evitar ou punir o locupletamento ilícito daquele que viola direitos individuais homogêneos.

Trata-se de critério há muito reclamado pela doutrina nacional para balizar a quantificação da condenação em ações de responsabilidade civil, e que agora apresenta-se como fundamento verdadeiramente autônomo para tal objetivo nas demandas coletivas.

Não obstante a disseminada utilização forense da alusão ao instituto do

285 Segundo determina o art. 100 do CDC, “Decorrido o prazo de um ano sem a habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução da indenização devida. Parágrafo único. O produto da indenização devida reverterá para o Fundo criado pela Lei nº 7.347/85, de 24 de julho de 1985”.

286 A expressão fluid recovery é derivada do sistema norte-americano das class actions, de onde foi importada para o sistema de tutela coletiva brasileiro, justamente por via do art. 100 e par.

único do Código de Defesa do Consumidor, querendo significar o montante pecuniário que, não buscado individualmente pelas próprias vítimas ou sucessoras, deve ser contabilizado e destinado para finalidades sociais adequadas, relacionadas à recomposição dos danos individuais homogêneos lesados.

enriquecimento ilícito como um dos critérios para a fixação de indenização por danos (sobretudo os extrapatrimoniais), inclusive como motivação para a aplicação de uma forma de punição ao infrator,

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sempre houve um inescondível preconceito em tal manejo, por conta das tradicionais limitações legislativas à quantificação da responsabilidade civil.

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No campo dos danos metaindividuais e individuais homogêneos, em que o enriquecimento ilicitamente experimentado pelo infrator por vezes supera em muito os prejuízos acarretados aos titulares dos direitos lesados, a punição pelo locupletamento sempre foi considerada indispensável quando se pensa em uma tutela jurisdicional efetivamente adequada, tanto em sentido preventivo como repressivo.

Sobre o tema, sustenta VENTURI:

De outro lado, pelo microssistema de tutela dos direitos transindividuais, pretende-se que a

fluid recovery, muito mais do que se prestar a uma

questionável recomposição do dano provocado pelo ato irresponsável do agente condenado, sirva como forma de prevenção geral e especial à reiteração de comportamentos lesivos aos direitos supraindividuais, acarretados, no mais das vezes, em benefício de pessoas ou grupos interessados apenas em aumentar sua margem de lucro. Ressalta-se, nesta hipótese, a atuação incisiva do juiz que deverá, dentro de uma esfera de poderes certamente ampliada, proceder a uma avaliação do

quantum dos

danos provocados pelo condenado, a ser destinado ao Fundo, tarefa para a qual deve lançar mão de sua defining function. Assim sendo, respeitadas as posições em contrário, entendemos não se resumir a

fluid recovery do

sistema brasileiro à soma das indenizações individuais não cobradas pelas vítimas ou seus sucessores, possuindo escopo autônomo; há que se mensurar, no âmbito da liquidação coletiva da sentença condenatória genérica, valor estimativo seja do dano metaindividual ocasionado, seja do ganho indevido que obteve o agente responsabilizado pelo decreto condenatório, para ser destinado ao Fundo da LACP.

Tal conclusão coincide com ao menos uma das finalidades das ações de classe, conforme Antônio Herman V. Benjamin, no sentido de ‘funcionar como complemento indireto ao Direito Penal e ao Direito Administrativo, no sentido de desestimular ou deter condutas sociais indesejáveis. O violador potencial,

287 Consulte-se, v.g., os seguintes julgamentos da 2ª Turma do STJ, relatados pela Min.

Eliana Calmon: RESP 474786/RS, DJ 07.06.2004, p. 185, RESP 696.850/RO, DJ 19.12.2005, p. 349, RESP 575023/RS, DJ 21.06.2004, p. 204 e RESP 487749/RS, DJ 12.05.2003, p. 298. No mesmo sentido, os julgados da 4ª Turma do STJ, relatados pelo Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira: RESP 183508/RJ, DJ de 10.06.2002, p. 212; RESP 389879/MG, DJ 02.09.2002 p. 196 e RESP 173366/SP, DJ 03.05.1999, p. 152.

288 Lembre-se, nesse sentido, que o Código Civil brasileiro enuncia em seu art. 944 que “a indenização mede-se pela extensão do dano”. Apesar de expressamente ser previsto que “aquele que, sem justa causa, se enriquecer ilicitamente à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido” (art. 884), o referido diploma legal acaba por determinar que “não caberá a restituição por enriquecimento, se a lei conferir ao lesado outros meios para se ressarcir do prejuízo sofrido” (art. 886).

antes de lançar mão de suas atividades e métodos socialmente nefastos, pensará duas vezes, intimidado que estará com a possibilidade de, por força de uma ação coletiva dessa natureza, vir a perder ou até ultrapassar os ganhos ilícitos que por acaso tenha auferido com sua conduta repreensível.’

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A mensuração do enriquecimento ilícito para fins de fixação da fluid recovery, para além de constituir apelo doutrinário, acabou sendo incorporada pelo Projeto de Lei n.º 5139/2009, em tramitação na Câmara dos Deputados, e que objetiva a criação de uma espécie de “Código de Processos Coletivos”.

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Segundo a redação proposta para o art. 44 de referido Projeto, as expressões

“locupletamento indevido” e “enriquecimento ilícito” são utilizadas seguidamente, no intuito de deixar bem claro que constituiriam fundamentos suficientes e autônomos para a fixação da chamada fluid recovery no modelo brasileiro de processos coletivos.

Com efeito, ainda que se considere ter havido, em determinada ação coletiva, a distribuição individual de valores que denotem o ressarcimento integral dos danos morais e materiais a um número de vítimas e sucessores “compatível com a gravidade do dano”, ainda assim seria possível pleitear-se condenação pecuniária apartada, a título de implementação fluid recovery, na medida em que se puder demonstrar que, para além dos prejuízos causados, o infrator aproveitou considerável e ilícito enriquecimento com sua conduta reprovável.

Isso porque, ao contrário do que se poderia apressadamente imaginar, no mais das vezes a nominal lesão individualmente causada (o “empobrecimento” da vítimas) não equivale exatamente ao proveito patrimonial auferido pelo agente (o seu enriquecimento), levando-se em consideração todas as variáveis macroeconômicas envolvidas.

Assim pode ocorrer, v.g., no campo das relações de consumo, do mercado de valores mobiliários, das relações trabalhistas, das relações tributárias, enfim, em praticamente todas as hipóteses de danos individuais homogêneos.

289 VENTURI, Elton. Execução da tutela coletiva. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 146.

290 Conforme redação dada ao art. 44 do PL n.º 5139/2009, “Em caso de sentença condenatória genérica de danos sofridos por sujeitos indeterminados, decorrido o prazo de 1 (um) ano contado do trânsito em julgado da sentença coletiva, poderão os legitimados coletivos, em função da não habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano ou do locupletamento indevido do réu, promover a liquidação e o cumprimento da sentença coletiva quanto à indenização pelos danos globalmente sofridos pelos membros do grupo, sem prejuízo do correspondente ao enriquecimento ilícito do réu.”

Ao adotar o duplo critério para a quantificação da fluid recovery (reparação integral às vítimas e sucessores e devolução do enriquecimento ilícito), o referido Projeto de Lei n.º 5.139/2009 consagraria legislativamente enorme avanço científico e pragmático, tanto no campo da responsabilidade civil como do enriquecimento ilícito, inclusive sob o ponto de vista da análise econômica do direito, conciliando ao menos duas das finalidades da responsabilidade, referidas pela doutrina norte- americana como “restoration interest” e “disgorgement”.

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Neste sentido, calcular o quantum referente ao enriquecimento ilícito e condenar-se o infrator à sua devolução integral na forma de fluid recovery destinável aos Fundos Reparatórios implicaria, de certo modo, importante aprimoramento da responsabilidade civil no Brasil, consagrando-se em definitivo a função punitivo-pedagógica que deve orientar as decisões judiciais, sobretudo no campo das lesões causadas a direitos ou interesses metaindividuais e individuais homogêneos.

Por fim, destaque-se que a distribuição global (fluída) do proveito patrimonial ilicitamente auferido pelo demandado tem a grande vantagem de afastar, mais uma vez, o corrente argumento de que, ao se computá-lo nas indenizações individualmente devidas às vítimas e sucessoras, estas estariam enriquecendo sem causa.

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291 Conforme Fernando ARAÚJO, “É relativamente recente o interesse da análise econômica pela <restituição>, facto a que não é alheio o incipiente desonvolvimento que a figura teve até agora na ordem jurídica norte-americana. De facto, foi só com o Restatement (Second) of Contracts, de 1981, que se reconheceu a possibilidade de articulação dos princípios da <restituição> contratual com os princípios do enriquecimento sem causa, só então se retirando o corolário da possibilidade de um <disgorgement> capaz de abranger todos os ganhos do inadimplente, não se limitando pois à reposição do <status quo ante>, à tutela do mero <restoration interest> do credor frustrado, a única que tradicionalmente se admitia”.Teoria econômica do contrato. Coimbra: Almedina, 2007, p. 825-826.

292 Sobre o assunto, consulte-se Maria Cândida do Amaral KROETZ e Thaís G. Pascoaloto VENTURI. O papel do Superior Tribunal de Justiça na revisão do montante das indenizações por danos extrapatrimoniais e a aplicabilidade da Súmula 07. Apontamentos críticos para o Direito Civil brasileiro contemporâneo. CORTIANO JUNIOR, MEIRELLES, FACHIN e NALIN (coords.). Curitiba:

Editora Juruá, 2008, p. 73 e segs.

3. ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO E A RESPONSABILIDADE CIVIL

No documento CURITIBA 2012 (páginas 105-109)