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Os limites do poder de controlo

CAPÍTULO II – O PODER DE CONTROLO DO EMPREGADOR

2. O poder de controlo

2.3. Os limites do poder de controlo

O contrato de trabalho, vincado pela assimetria da posição das partes, implica, como vimos, o reconhecimento de determinados poderes ao empregador. A relação laboral é marcada pelo poder de controlo atribuído à entidade empregadora, caraterizado pelo grande potencial de lesão dos direitos fundamentais. Na verdade, há quem destaque que o controlo cria uma certa pressão ao trabalhador que, não raras vezes, considera determinadas práticas de monitorização humilhantes346, ameaçadoras da dignidade humana. O trabalhador experiencia tensão e ansiedade, o que pode resultar numa diminuição da produtividade e da motivação. O controlo pode também provocar stress,

343 Em sede de Direito do Trabalho português, podemos destacar duas aceções do termo lealdade: em sentido amplo, significa o

conjunto de deveres acessórios do trabalhador, por exigência expressa da lei ou através da concretização de conceitos indeterminados, como a boa fé; em sentido restrito, relaciona-se com um dos deveres acessórios tipificados no artigo 128º nº 1 f). TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, A Privacidade (…), cit. p. 392, nota 1396

344 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, A Privacidade (…), cit. pp. 393-394 345 Neste sentido FABRICE FEVRIER, op. cit., p. 76

produto dos sentimentos que o trabalhador pode percecionar como falta de confiança e de injustiça por parte da entidade empregadora ao implementar técnicas de vigilância347.

Destacamos que, nestes casos, a problemática resulta não do controlo da performance do trabalhador, mas da forma como este é realizado348, sendo também, por isso, essencial estabelecer barreiras ao exercício do poder de controlo. A organização empresarial não deve, pois, orientar-se de forma arbitrária, devendo atribuir uma especial consideração à pessoa e à dignidade do trabalhador349.

Ao ingressar na relação contratual, o trabalhador limita o alcance dos seus direitos, cuja consagração resulta na modulação dos poderes empresariais, particularmente o poder de controlo, que deve ser exercido em equilíbrio com estes direitos350 e adaptar-se à sua efetivação. Torna-se então claro que a relação laboral em si gera um complexo de direitos e de obrigações, que condicionam o exercício de liberdades e de direitos351.

O trabalhador não é apenas um ser produtivo, dedicado a cumprir as estipulações contratuais e orientado para vender as suas energias laborais. Mais do que um trabalhador, define-se como uma pessoa e um cidadão352. Nesta decorrência, podemos falar dos direitos laborais inespecíficos, nos quais se inclui o direito à privacidade353. Estes direitos, não possuindo uma dimensão laboral direta, são inerentes a todas as pessoas, tendo relevância para os seus titulares enquanto cidadão e também enquanto trabalhador354. Representam, assim, uma peculiar forma de cidadania no seio da

empresa355. São direitos que sofrem uma impregnação laboral, de tal forma que há quem

defenda que chegam a converter-se em autênticos direitos laborais, tendo em conta os

347 LARRY O. NATT GANT II, “An affront to human dignity: electronic mail monitoring in the private sector workplace”, in Harvard Journal of Law & Technology, vol. 8, nº 2, 1995, http://jolt.law.harvard.edu/articles/pdf/v08/08HarvJLTech345.pdf, p. 421 e JAY P.

KESAN, “Cyber-working or cyber- shrinking?: a first principles examination of electronic privacy in the workplace”, in Florida Law

Review, vol. 54, 2002, in https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=289780, pp. 319-320 348 MICHAEL J. SMITH; BENJAMIN C. AMICK III, op. cit. p. 285

349 VIVIANA MARIEL DOBARRO, “El control empresarial del uso del correo electrónico en el ámbito laboral. Derechos

fundamentales involucrados. Alcances de las facultades del empleador”, in Colección Temas de Derecho Laboral, nº 4, Errepar, 2009, in http://derecho1.sociales.uba.ar/files/2015/04/El-control-empresarial-del-uso-del-correo-electr%C3%B3nico2.pdf, p. 223

350 J. A, FERNÁNDEZ AVILÉS; V. RODRÍGUEZ-RICO ROLDÁN, op. cit. p. 54

351 Neste sentido ANGEL BLASCO PELLICER, “El deber empresarial de vigilância de la salud y el derecho a la intimidad del

trabajador”, in Trabajo y Libertades Publicas (dir. BORRAJO DACRUZ, Efrén), La Ley-Actualidad, 1999, p. 253

352 JOÃO LEAL AMADO, op. cit. p. 228

353 Como refere ESTHER CARRIZOSA PRIETO, “El control empresarial sobre el uso de los equipos informáticos y la protección

del derecho a la intimidad de los trabajadores”, in Temas Laborales, n. 116, 2012, in https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4075792.pdf, p. 254

354 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, “Interrogações (…)”, cit. p. 60 355 J. A, FERNÁNDEZ AVILÉS; V. RODRÍGUEZ-RICO ROLDÁN, op. cit. p. 52

seus titulares e a relação jurídica em que surgem356. Exatamente por serem exercidos no

contexto laboral, são direitos que se encontram submetidos a determinados limites, justificados pelo poder do empregador, e a certas obrigações decorrentes do contrato de trabalho357.

A prestação laboral exercida pelo trabalhador tem um caráter pessoalíssimo, uma vez que a sua realização implica uma integração total do ser físico e psíquico do trabalhador, levando a que o poder de controlo atue sobre a esfera pessoal do trabalhador e dos direitos deste358. Embora os direitos fundamentais do trabalhador devam ser salvaguardados, funcionando como barreira a possíveis ingerências perpetuadas pelo exercício do poder de controlo, a verdade é que estes direitos podem sofrer uma certa modalização359, para que possam ser compatibilizados com a própria relação de trabalho. A este propósito, LEAL AMADO360 fala numa dialética aplicação/modulação, em que a tutela da situação pessoal do trabalhador e a sua consideração enquanto cidadão na empresa implicam a aplicação dos direitos fundamentais na relação de trabalho e os interesses do empregador e a sua posição de supremacia pressupõem uma certa modulação dos ditos direitos.

Alertamos para o facto de que esta compressão de direitos deve ser sempre ponderada, indispensável, proporcional, justificada e postulada pela natureza da relação de trabalho361, tendo como finalidade o correto desenvolvimento da atividade laboral. Os

direitos fundamentais, funcionando como limite na relação laboral, devem, pois, prevalecer perante um conflito com interesses do empregador, sendo que o poder de controlo não pode atingir direitos como a dignidade e a privacidade dos trabalhadores362. Por outro lado, configurando o contrato de trabalho como um limite ao poder de controlo, tal significa que este deve ater-se a aspetos que tenham uma relação direta com o trabalho363. Assim, o controlo do empregador não pode exercer-se sobre a conduta

356 ÁNGEL ARIAS DOMÍNGUEZ; FRANCISCO RUBIO SÁNCHEZ, El Derecho de los Trabajadores a la Intimidad, Thomson

Aranzadi, Navarra, 2006, in https://magnogua.files.wordpress.com/2009/02/derecho-trabajadores-a-intimidad.doc+&cd=3&hl=pt- PT&ct=clnk&gl=pt, p. 13

357 J. A, FERNÁNDEZ AVILÉS; V. RODRÍGUEZ-RICO ROLDÁN, op. cit. p. 52 358 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, A Privacidade (…), cit. pp. 404-405 359 JOSÉ LUIS UGARTE CATALDO, op. cit. pp. 144-148

360 JOÃO LEAL AMADO, op. cit. p. 231

361 JÚLIO MANUEL VIEIRA GOMES, op. cit. p. 321

362 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, A Privacidade (…), cit. pp. 408-409

363 Como refere FABRICE FEVRIER, op. cit. p. 40, assim que o poder do empregador recai sobre o domínio da vida privada, constitui-

extralaboral dos seus trabalhadores, a não ser quando esta possa ter implicações negativas sobre o cumprimento correto da prestação laboral ou possa prejudicar os interesses legítimos empresariais. Ainda assim, o controlo deve apenas incidir sobre a repercussão e não sobre o comportamento em si mesmo do trabalhador. Isto é, a vida privada do trabalhador não tem um destaque autónomo na relação laboral, pelo que, desde que aquela não afete a correta realização da prestação de trabalho, não deve relevar. Mesmo que o trabalhador tenha comportamentos desregrados na sua vida privada e estes causem incómodos no seio laboral, o que deve ser objeto de apreciação não é a vida privada em si, mas estas consequências negativas produzidas no contexto de trabalho. Desta forma, defendemos que o empregador pode apenas controlar a execução da prestação de trabalho e aplicar sanções disciplinares quanto a condutas ocorridas durante o tempo e no local de trabalho364, devendo o poder de controlo ser, assim, limitado.

Tendo em mente estas considerações, pensamos que deve ser defendida não uma simples posição negativa da proteção dos direitos fundamentais, mas a sua promoção no trabalho, que deve ser um contexto favorável à plena realização dos direitos, permitindo que o desenvolvimento da relação jurídica contribua para a realização da personalidade humana365. Consequência do contexto informático em que vivemos é, pois, a necessidade de repensar e estudar os direitos fundamentais tendo em conta a cortina de fundo tecnológica, reveladora de ameaças a estes direitos366.

Por outro lado, acreditamos que, perante os referidos efeitos nocivos que podem advir da utilização das NTIC, devemos questionar até que ponto é realmente necessária a utilização de tecnologias tão intrusivas e avançadas para efetuar o controlo laboral e se o seu uso não será meramente conveniente para atingir outros fins367.

364 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, A Privacidade (…), cit. pp. 410-412 365 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit. p. 412

366 Neste sentido ANTONIO-ENRIQUE PÉREZ LUÑO, “Internet y los derechos humanos”, in Derecho y conocimiento”, vol. 2, in

http://rabida.uhu.es/dspace/bitstream/handle/10272/2550/b15616630.pdf?sequence=1, p. 102

367 Neste sentido MARK JEFFERY, Information technology and workers' privacy: introduction, FUOC, 2003, in