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A tutela civil da privacidade

CAPÍTULO I – A PRIVACIDADE

4. A tutela da privacidade no ordenamento jurídico português

4.2. A tutela civil da privacidade

Como destaca OLIVEIRA DE ASCENSÃO94, a personalidade jurídica é a suscetibilidade de se ser titular de direitos e obrigações. De facto, todas as pessoas podem ser titulares de relações jurídicas, sendo que é nisto em que consiste a personalidade em termos jurídicos. Por seu turno, a dignidade humana leva a que sejam atribuídos direitos às pessoas, que lhes permitam usufruir dessa mesma dignidade. Estes direitos, os direitos de personalidade, devem configurar um mínimo, o espaço em que cada indivíduo possa desenvolver a sua personalidade, e um máximo, tendo em conta a intensidade da tutela a que se encontram sujeitos. Neste contexto, entende o autor que os direitos de personalidade são uma categoria histórica, na medida em que a sua existência só pode ser recortada a partir da descoberta da pessoa, surgida com o pensamento greco-cristão, sendo que este último representou um grande contributo95. Por outro lado, o facto de os direitos de personalidade variarem no tempo e no espaço reforça mais a sua historicidade.

90 Neste sentido TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., p. 295 91 DAVID DE OLIVEIRA FESTAS, op. cit., p. 5

92 JOÃO CAUPERS, Os direitos fundamentais dos trabalhadores e a constituição, Almedina, Coimbra, 1985, p. 108 93 JOSÉ JOÃO ABRANTES, op. cit., p. 48

94 Última op. cit., pp. 63-65. Neste sentido CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição,

Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 100

95 Como refere DIOGO LEITE DE CAMPOS, “O direito e os direitos de personalidade”, in Revista da Ordem dos Advogados, vol. 2,

Abril/Junho 1993 – ano LIII, in http://www.oa.pt/upl/%7B7f3725e2-d544-4142-8f45-d3b6ff311355%7D.pdf, p. 203, criaram-se as bases da personalidade humana individual.

Os direitos de personalidade atendem às emanações da personalidade humana96,

sem os quais esta estaria completamente irrealizada97, dizendo respeito, por isso, a um

conjunto de direitos necessários98. Como menciona PAULO MOTA PINTO99, são

direitos essenciais, uma vez que, se a proteção que conferem não fosse reconhecida pela ordem jurídica, a personalidade humana ficaria descaraterizada. São direitos gerais, dos quais todos os seres humanos são titulares, e direitos absolutos, porque se lhes contrapõe uma obrigação universal. São direitos pessoais, por contraposição aos direitos patrimoniais, mas principalmente por estarem estreita, direta e incindivelmente aos seus titulares.

Caraterizam-se, ainda, por serem direitos indisponíveis, na medida em que não são alienáveis ou renunciáveis. Contudo, o titular destes direitos pode consentir na sua limitação. A este propósito, falamos do consentimento do lesado. A limitação voluntária dos direitos deve reger-se pela disciplina do artigo 81º do CC e para que o consentimento seja válido deve ser legal, consciente, sendo resultado de uma vontade esclarecida e de uma ponderação de todas as consequências da limitação consentida, e prestado, no geral, de forma expressa, sem poder ser deduzido de um comportamento anteriormente autorizado100. A limitação voluntária deve também obedecer aos requisitos previstos no artigo 280º do CC, condicionantes da validade do negócio jurídico. Assim, a limitação deve ser balizada no que toca aos seus termos, tempo e finalidade e não deve ser contrária aos bons costumes, respeitantes à dimensão moral, sexual e familiar101.

96 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, última op. cit., p. 67. O autor relembra que a própria categoria dos direitos de personalidade

continua a ser contestada por alguma doutrina, representada, em Portugal, por CABRAL DE MONCADA, pp. 74-75.

97 ADRIANO DE CUPIS, Os Direitos da Personalidade (tradução de Afonso Celso Furtado Rezende), Quorum Editora, São Paulo,

2008, p. 24

98 CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, op. cit., p. 101 99 Última op. cit., pp. 482-483

100 HEINRICH HORSTER, A Parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 2013, p. 272

Em Portugal102, a proteção civil103 dos direitos de personalidade realiza-se através

de um regime de tutela geral da personalidade, previsto no artigo 70º do CC, e da inclusão de direitos de personalidade em especial, nos artigos 72º a 80º do mesmo diploma.

O artigo 70º da lei civil, tendo como epígrafe “tutela geral da personalidade”104

institui no nº 1 que “a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral” e no nº 2 que “independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida”.

O nº 1 encerra em si uma cláusula aberta, proclamando em termos muito genéricos e sucintos a ilicitude das ofensas e das ameaças à personalidade física ou moral das pessoas105. De acordo com GUILHERME DRAY106, a tutela civil dos direitos de personalidade, estatuída no nº 2, é concretizada em três vetores. A tutela repressiva, através da responsabilidade civil, perante uma ofensa já concretiza. A tutela preventiva, por sua vez, pretende evitar a consumação de uma ameaça efetiva e violação eminente de

102 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Os direitos de personalidade na civilística portuguesa”, in Revista da Ordem dos Advogados,

edição comemorativa, ano 61, Dezembro 2001, III, Lisboa, pp. 1229-1256, in http://portal.oa.pt/upl/%7Be1ee299b-5174-4e50-9b0b- c8d97c0c6d3b%7D.pd refere que o Direito Civil português despertou tarde para a problemática dos direitos de personalidade. De facto, percorreu-se um longo caminho, passando pela inclusão dos chamados direitos originários no Código de Seabra, de 1867, até que os direitos de personalidade fossem consagrados no Código Civil de 1966. Para tal, terão contribuído os estudos constitucionais posteriores a 1970 e, sobretudo, a 1976, com destaque para a Revolução de Abril e para a Constituição surgida nesse contexto, que levaram a que a defesa da pessoa fosse assegurada de forma mais eficaz através do Direito Constitucional e dos direitos fundamentais. Sobre a distinção entre direitos de personalidade, direitos originários e direitos fundamentais ver GUILHERME DRAY, O Princípio (…), cit., pp. 169-170

103 A este propósito, RITA AMARAL CABRAL, op. cit., p. 9 entende que a tutela civil se reveste de caráter fundamental, uma vez

que a proteção constitucional e a proteção administrativa não permitem uma defesa específica para as relações interindividuais, para além de terem uma eficácia algo limitada no que toca aos atos do Estado e dos outros entes públicos, ao que acresce a morosidade e complexidade dos mecanismos de fiscalização da inconstitucionalidade e da ilegalidade. Quanto ao Direito Penal, devido ao seu objeto e à tipificação do seu ilícito, a sua tutela deixa indefesos alguns dos mais importantes afloramentos dos bens salvaguardados pelos direitos fundamentais.

104 GUILHERME DRAY, Direitos de (…), cit., p. 34 realça que a tutela geral da personalidade não se deve confundir com um direito

geral de personalidade. Os direitos de personalidade têm a natureza de direitos subjetivos e assentam em permissões normativas que se dirigem aos seus titulares. Assim, para o autor, não se justifica aludir a um pretenso direito geral de personalidade. Também assim entendem ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado (…), cit., pp. 86-87, PAULO MOTA PINTO, última op. cit., pp. 495-498 e JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, última op. cit., pp. 78-80. Este último autor considera que a figura do direito geral de personalidade implicaria que o homem aparecesse objeto de si mesmo, o que seria uma impossibilidade lógica. Por seu turno, RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, pp. 513 e ss e JANUÁRIO DA COSTA GOMES, op. cit., p. 28 defendem a existência de um direito geral de personalidade.

105 Neste sentido FERNANDO ANDRANDE PIRES DE LIMA; JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado,

vol. 1, Coimbra Editora, 1987, p. 104 e GUILHERME DRAY, última op. cit., p. 34

um dever de personalidade, podendo levar à imposição de deveres de omissão da conduta em causa. Por fim, a tutela atenuante, com vista a amenizar os efeitos de uma ofensa já materializada ou que já se iniciou, através da cessação de determinadas atividades em curso ou da aplicação de sanções pecuniárias compulsórias.

O artigo 70º, ao estabelecer um princípio geral, é depois concretizado nos direitos especiais de personalidade107, entre os quais nos importa particularmente o artigo 80º, que consagra o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, proclamando que “todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem” e que “a extensão da reserva é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas”.

O preceito em causa não é preciso quanto ao conteúdo do direito, cabendo à doutrina e à jurisprudência essa tarefa108. Secundando JANUÁRIO GOMES109, entendemos que se revela até preferível que o julgador não esteja vinculado a uma norma muito rígida, podendo definir-se o conteúdo e os limites do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada conforme o caso em apreço. Ainda assim o juiz poderá servir- se de dois critérios previstos no nº 2 do artigo do CC, como aponta RITA AMARAL CABRAL110, isto é, da natureza do caso e da condição das pessoas. Começando pela condição das pessoas, o que está em causa é a posição social do titular do direito, tal significando que o diâmetro da vida particular a ser protegido depende da forma como a pessoa se integra na sociedade e do seu modo de ser. Significa isto que a área protegida pelo direito à reserva sobre a intimidade da vida privada de uma figura pública é mais reduzida do que a dimensão relativa a uma pessoa dita comum. As pessoas célebres são aquelas que, de forma consciente ou inconsciente, se expõem à publicidade e, como tal, existe um interesse público em ter acesso a determinadas informações suas que revestem um caráter mais privado111. Este interesse público poderá dar-se por breves períodos, por

107 Neste sentido JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, última op. cit., 73, nota 77, refere que JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA

entende que o artigo 70º não abrange todos os direitos de personalidade, nomeadamente, o direito à intimidade da vida privada. No que aos direitos de personalidade especiais diz respeito, RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, op. cit., p. 557 referem que estes possuem caráter de legis speciales, uma vez que identificam certas áreas da personalidade, por vezes regulam direções dessas mesmas áreas em determinados condicionalismos e instituem, em certas situações, formas específicas de garantia jurídica, sem prejuízo da aplicação de regras gerais.

108 GUILHERME DRAY, última op. cit., p. 54

109 Op. cit., p. 30. A este propósito FERNANDO ANDRANDE PIRES DE LIMA; JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, op.

cit., p. 110 referem que a aplicação prática do artigo 80º fica dependente do critério do juiz.

110 Op. cit., pp. 25-30

111 A este propósito FRANÇOIS RIGAUX, op. Cit., pp. 548-549 refere que as pessoas célebres (notables) exprimem uma categoria

bastante heterogénea, uma vez que poderão enquadrar-se na mesma pessoas que exercem um cargo público, personalidades da vida religiosa, membros de famílias reais, entre outras.

exemplo, recaindo sob vítimas de um grande acidente. Em qualquer caso, embora a esfera da intimidade se encontre reduzida nos cenários referidos anteriormente, nunca estará suprimida112. Quanto à natureza do caso, este critério apoia-se em elementos objetivos,

que identificam determinada situação e não dependem do sujeito em causa. Neste sentido, poderemos falar da natureza histórica do acontecimento que, sendo exterior ao sujeito, o ultrapassa, e da localização no espaço em que ocorra.

Uma vez que o direito em causa varia de acordo com a natureza do caso e a condição das pessoas, GUILHERME DRAY113 fala, a este propósito, do facto de o artigo 80º do CC fazer apelo, assim, a um sistema móvel. Se o artigo não nos fornece linhas precisas quanto ao direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, torna-se importante responder a três questões, que o autor elenca.

Assim, primeiramente, temos que concluir o que se entende por vida privada, depurando este conceito do de vida pública. Entendemos que a vida privada cessa onde começa a vida pública. Na vida privada caberão a vida doméstica, familiar, sexual e afetiva, bem como informações respeitantes ao estado de saúde. Enfim, estaremos perante factos cujo titular pretende partilhar com aqueles que lhe são mais próximos e resguardar dos olhares públicos. À semelhança do que alertámos a propósito da tutela constitucional da privacidade, também em locais públicos poderão dar-se acontecimentos integrantes da vida privada e, nesse sentido, encontrar-se-ão, de igual forma, protegidos pela lei civil114.

Em segundo lugar, o autor levanta a questão de saber se toda a vida privada é reservada, procurando saber qual o âmbito da vida privada que pode ser objeto de intromissão e divulgação não autorizadas e como traçar a linha que separa a esfera da vida privada e familiar que goza de reserva de intimidade e a que se mostra aberta à

112 WILLIAM L. PROSSER, op. cit., p. 411 entende que as figuras públicas perderam, pelo menos com alguma extensão, o seu direito

à privacidade, por três razões: uma vez que procuram publicidade e nela consentiram, não podem reclamar sobre tal situação; as suas vidas tornaram-se públicas, pelo que o que nelas se inclui não pode mais estar cometido ao âmbito privado; a imprensa tem o privilégio, garantido pela Constituição, de informar o público sobre aqueles que se tornaram assuntos legítimos de interesse público.

113 “Justa causa (…)”, cit., pp. 47-51. Como refere o “Parecer nº 121/80 de 23 de Julho de 1981 da Procuradoria Geral da República.

Segredo de justiça – liberdade de informação e proteção da vida privada (algumas questões)”, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 309, 1981, p. 142 os critérios da natureza do caso e da condição da pessoa afirmam o caráter relativo do direito em apreço. Buscando uma definição do mesmo, o Parecer estabeleceu que “tem-se entendido que a intimidade da vida privada de cada um, que a lei protege, compreende aqueles atos que, não sendo secretos em si mesmos, devem subtrair-se à curiosidade pública por naturais razões de resguardo e melindre, como os sentimentos e afetos familiares, os costumes da vida e as vulgares práticas quotidianas, a vergonha da pobreza e as renúncias que ela impõe e, até, por vezes o amor da simplicidade, a parecer desconforme com a grandeza dos cargos e a elevação das posições sociais; em suma, tudo: sentimentos, ações e abstenções, que podem ser altamente meritórios do ponto de vista da pessoa a que se referem mas que, vistos do exterior, tendem a apoucar a ideia que delas faz o público em geral”.

intromissão e publicidade alheias, respondendo com a distinção operada pela doutrina no que diz respeito a diferentes esferas115. Assim, a esfera íntima ou secreta abarca os factos

que objetivamente devem ser inacessíveis a terceiros, como aspetos da vida familiar, comportamentos sexuais, convicções religiosas e estado de saúde, encontrando-se estas informações, em princípio, absolutamente protegidas. Por seu turno, a esfera privada abrange aqueles factos que o titular, subjetivamente, tem interesse em ver guardados para si, como aspetos relativos à sua vida profissional, ao seu domicílio e aos seus hábitos. Esta esfera é relativamente protegida, pelo que pode ceder em caso de confronto com direitos ou interesses públicos. Por fim, a esfera pública é atinente a situações do conhecimento público e que, nesse sentido, podem ser conhecidos e divulgados.

Para se determinar o círculo de reserva da intimidade da vida privada116, podemos: ou partir da ideia de que é permitido aceder à intimidade da vida privada e familiar de outra pessoa e, nessa decorrência, destacar esferas pessoais absoluta ou relativamente protegidas ou, seguir outro caminho e assumir que todas as ingerências na intimidade são inadmissíveis, sendo apenas lícitas algumas intromissões que sejam justificáveis tendo em conta determinados interesses superiores. Sendo mais sensato defender que a reserva da privacidade deve ser entendida como a regra e não como a exceção, é de preferir a segunda via. Devemos ser intransigentes quando esteja em causa a esfera íntima e menos exigentes quando se elevem factos relativos à esfera privada.

Impõe-se, em terceiro lugar, a questão de saber se o direito à reserva da intimidade da vida privada abrange apenas a divulgação de informação ou abarca também na sua tutela o acesso de estranhos à mesma. Devemos entender que o preceito normativo civil abarca quer o acesso, quer a divulgação117. Poderão estar em causa factos cujo conhecimento foi autorizado pelo titular, sendo nestes casos o acesso lícito e a respetiva divulgação ilícita. Se o conhecimento nunca foi autorizado, então tal significa que o próprio acesso deve ser salvaguardado, condenando-se, naturalmente, a divulgação de informação relativa à intimidade da vida privada.

115 A este respeito MARIA RAQUEL GUIMARÃES; MARIA REGINA REDINHA, “O uso (…)”, cit., p. 655 referem que

ORLANDO DE CARVALHO autonomizava dentro da reserva da vida privada três esferas: a esfera privada, incluindo aspetos de caráter não público, mas ainda não pessoais, englobando dados relativos ao lar e à vida doméstica; a esfera pessoal, muito mais restrita e estando ligada com o domínio ligado à pessoa em si, aos seus gostos e preferências, a esfera de segredo, relativa a factos secretos e a elementos secretos apenas por determinação da pessoa em causa.

116 GUILHERME DRAY, Direitos de (…), cit., pp. 57-58

Uma vez que o contrato de trabalho pressupõe que ao trabalhador seja reconhecida a sua dignidade, os próprios direitos de personalidade penetram na relação laboral, funcionando como uma barreira aos poderes do empregador118.