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PARTE I – REVISÃO DOS CONTRATOS

1 EVOLUÇÃO: DA CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS À TEORIA DA

3.1 O CDC e a teoria da base do negócio

3.1.1 Comentários à teoria da quebra da base do negócio jurídico e sua previsão no

3.1.1.2 Código de Defesa do Consumidor

3.1.1.2.1 A proteção contratual do consumidor no direito comparado

Além de seus códigos de proteção e defesa do consumidor – que aqui não serão examinados de modo aprofundado dada à extensão da matéria – boa parte dos países destina uma proteção ao consumidor específica para os contratos.

Portugal aborda a defesa do consumidor na Lei 29, de 22 de agosto de 1981, sendo que é no artigo 7°588 desta lei que está disposta a proteção contratual e a busca pela isonomia, mais especificamente quanto às cláusulas abusivas.

nacional: SCHMITT, Cristiano Heineck. Cláusulas abusivas nas relações de consumo, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

585 “art.40. O fornecedor de serviço será obrigado a entregar ao consumidor orçamento prévio discriminando o valor da mão-de-obra, dos materiais e equipamentos a serem empregados, as condições de pagamento, bem como as datas de início e termino dos serviços. [...] § 2°. Uma vez aprovado pelo consumidor, o orçamento obriga os contratantes e somente pode ser alterado mediante livre negociação entre as partes. § 3°. O consumidor não responde por quaisquer ônus ou acréscimos decorrentes da contratação de serviços de terceiros, não previstos no orçamento prévio.”

586 SAAD, Eduardo Gabriel. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor: lei n. 8.078, de 11.9.90. 4. ed. São Paulo: LTr, 1999. p. 371-373 e p. 375.

587 DONNINI, Rogério Ferraz. A revisão dos contratos no código civil e no código de defesa do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 155-165.

588 “O consumidor tem direito à igualdade e à lealdade na contratação, traduzidas, nomeadamente:

a) Na protecção contra os abusos resultantes da adopção de contratos tipo e de métodos agressivos de promoção de vendas que prejudiquem a avaliação consciente das cláusulas contratuais e a formação livre da decisão de contratar.

b) Na redacção de forma clara e precisa, e em caracteres facilmente legíveis, sob pena de se considerarem como não escritas, das cláusulas de contratos que tenham por objecto o fornecimento de bens ou serviços.”

A Espanha conta com a Lei 26/1984, editada em 19 de julho, intitulada Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuários. Neste país, este é um direito constitucional previsto na Carta Magna de 1978, em seu artigo 51°.

Na Itália, não havia uma lei especial com a finalidade de defender o consumidor até o Decreto Legislativo nº 206 de 6 de setembro de 2005 que, nos termos do artigo 7 º da Lei n º 229, de 29 de julho de 2003, criou o Código de Defesa do Consumidor italiano589, suprindo uma falha grave, pois, apesar da matéria contratual estar bem servida com os muitos artigos do Código Civil italiano, estes não se aplicam a uma relação de consumo em virtude da desigualdade abismal que há entre as partes, clamando por uma hermenêutica mais favorável ao consumidor, parte fraca da relação. Ainda assim, mesmo antes do CDC, o Código Civil relativamente supria a falta de uma lei especial ao dispor no artigo 1370 que, na dúvida, os contratos são interpretados a favor do contratante que não teve a iniciativa da sua redação, assim como o artigo 1341, que trata das cláusulas abusivas, embora haja uma extrema dificuldade de aplicação deste último artigo devido à falta de normas que possibilitem ao juiz aplicá-las, nem um órgão governamental que fiscalize os contratos desta natureza. Hoje este controle é feito pelo CDC italiano, notadamente na sua Parte III.

A Alemanha, desde 2002, possui um microssistema que regula o direito do consumidor dentro do BGB590, e ainda protege o comprador nos contratos de compra e venda com os §§ 463 e 480 do mesmo código que determina que o comprador pode requerer o ressarcimento dos prejuízos causados pelo inadimplemento quando a coisa vendida não possui as qualidades prometidas pelo vendedor. Em função da proibição expressa pelo direito alemão, no caso de dolo na ocultação dos vícios que se apresentaram, o vendedor se torna responsável perante o comprador. Além disso, a Alemanha valoriza muito a boa-fé nas relações contratuais (entgegen den Geboten von Treu und Glauben unangemessen benachteiligen), que somado ao controle judicial rigoroso possibilita a proteção dos vulneráveis. Quanto às cláusulas abusivas em contratos de adesão, há uma lei, desde 09 de dezembro de 1976, conhecida por ser pioneira na proteção dos consumidores frente às

589 A lei n° 229 de 2003 foi uma legge delega, ou seja, uma lei que atribui ao governo a realização de um ato legislativo (o decreto legislativo). Desta forma, não foi o parlamento que criou o CDC, mas o governo através de um decreto legislativo (n° 206 de 2005) e nos limites do poder conferido por delegação do parlamento. Portanto, oficialmente, quando se fala do CDC italiano se refere ao Decreto Legislativo de 2005, que entrou em vigor em 2006.

590 CORDEIRO, António Menezes. Da modernização do Direito Civil. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2004. p. 117-127.

empresas, chamada de AGBG – Gesetz zur Regelung des Rechts des Allgemeinen Geschäftsbedingungen, para a Regulação do direito das Condições Gerais dos Negócios. Essa lei dispõe, portanto, sobre as condições gerais de contratação. A AGBG foi alterada em 19 de julho de 1996 por uma diretiva da União Europeia sobre cláusulas abusivas em contratos de consumo denominada EG-Richtlinie über Miβbräuchliche Klauseln in Verbraucherverträgen- RiL, de 5 de abril de 1993, que definiu que não mais é necessário que o contrato seja elaborado para um grande número de pessoas, característica dos contratos de massa, bastando que haja desigualdade entre os pactuantes591. A fim de proteger o consumidor das cláusulas abusivas, essa lei restringe a liberdade de formar contratos, chamada de Vertragsgestaltungsfreiheit, de que gozam os estipulantes (Verwender). Compõe-se de trinta parágrafos, sendo que, no § 24, está definido o contrato de consumo.592 Além dessa lei, a VerbrKrG e a HausTWG protegem contratualmente o consumidor. A primeira é a lei de crédito ao consumo (Verbraucherkreditgesetz). Publicada em 17 de dezembro de 1990 regula os contratos de agenciamento de crédito (Vermittlungsverträge) em seus dezoito parágrafos. A segunda é a lei sobre a revogação de negócios realizados na porta de casa e negócios semelhantes (Gesetz über den Widerruf von Haustürgeschäften und ähnlichen Geschäften). Publicada em 16 de janeiro de 1986 e alterada pela VerbrKrG de 1990, em seus sete parágrafos visa liberar o consumidor do contrato firmado nestas condições, já que nestes casos a anuência se dá em decorrência da agressividade das técnicas de oferta baseadas na surpresa que conduzem o consumidor a uma aquisição que, após um melhor raciocínio se mostra desnecessária. Extracontratualmente, a proteção do consumidor se dá através da ProdHaftG, assim como a ProdSG. Aquela aborda a responsabilidade por produtos defeituosos (Gesetz über die Haftung für fehlerhafte Produkte – Produkthaftungsgesetz). Publicada em 15 de dezembro de 1989, entrou em vigor em 1° de janeiro de 1990 e foi alterada em 25 de outubro de 1994. Atende a Diretiva da União Europeia sobre Responsabilidade sobre os produtos de 25 de julho de 1985. De acordo com o § 1° dessa lei

591 No entanto, fica expresso no §23, I, a sua não aplicação aos contratos de trabalho, de direito de família e de direito das sociedades.

592 “Nos contratos entre uma pessoa, que negocia no exercício de sua atividade profissional, industrial ou comercial (Unternehmer – empresário) e uma pessoa física, que celebra um contrato com uma finalidade, que não seja relacionada à atividade industrial ou profissional própria (Verbraucher – consumidor), são as disposições dessa lei, com as diretrizes seguintes a serem aplicadas: 1. condições gerais dos negócios consideram-se estipuladas pelo empresário se elas não são colocadas no contrato pelo consumidor; 2. os §§ 5° e 6° e 8° a 12 são também aplicáveis às condições contratuais pré-formuladas,quando essas somente forem determinadas para uma aplicação certa e enquanto o consumidor, com base na pré-formulação, não influenciou no seu conteúdo; 3. na determinação do prejuízo desmedido com fundamento no §9°, são também analisadas as circunstâncias do momento da celebração do contrato” (ZITSCHER, Harriet Christine.

caso alguém for lesionado, morto ou tiver sua integridade física ou econômica prejudicada, o fabricante (Hersteller) deve indenizar o usuário (Benutzer) lesado. Já a ProdSG é a lei sobre exigências de segurança de produtos e para a proteção do símbolo “CE” (Gesetz zur Regelung der Sicherheitsanforderungen an Produkte und Schutz der CE-Kennzeichnung- Produktsicherheitsgesetz). Publicada em 2 de abril de 1997, só entrou em vigor em 1° de fevereiro de 1998. Sua finalidade encontra-se no §1° do texto legal: garantir que somente produtos seguros para utilização sejam comercializados, aplicando a marca “CE” naqueles que estiverem em conformidade com esta lei. Ainda assim, com esta gama de leis espalhadas pelo ordenamento jurídico germânico, o BGB, que preenchia as eventuais lacunas na proteção ao consumidor, juntamente com a doutrina e a jurisprudência daquele país593, hoje regula todo o direito do consumo, desde a reforma de 2002.

A proteção contratual francesa veio principalmente com o advento da Lei n° 78-23, de 10 de janeiro de 1978 que serve como um sistema de controle administrativo das cláusulas abusivas, mediante uma Comissão de Cláusulas Abusivas com a função de examinar os modelos de contratos de adesão criados pelas empresas, fiscalizando se há alguma lesão a um direito do consumidor. O Decreto n°78.444, de março de 1978, proibiu cláusulas que prevejam a adesão a estipulações que não figurem no documento que assina; que tenha por objeto reduzir o direito à indenização por descumprimento da obrigação pelo fornecedor, em contratos de compra e venda; que reservem somente ao fornecedor o direito de alterar, unilateralmente as características da coisa a entregar ou serviço a prestar; e finalmente cláusulas que concedam garantias contratuais sem mencionar de forma clara que não afetam nenhuma das demais garantias previstas em lei. Mesmo que não tenha sido vedada pelo decreto, pode uma cláusula ser suprimida através de um requerimento de uma associação de consumidores. Além, é claro, da proteção contratual prevista no CDC francês, o Code de la Consommation.

Noruega, Suécia, Finlândia e Dinamarca possuem legislações específicas com a função de amparar o consumidor e ainda contam com o chamado ombudsman, um órgão especial para atender aos reclamos dos consumidores.

593 ZITSCHER, Harriet Christine. Introdução ao direito civil alemão e inglês. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 211-232.

Saindo da Europa, vale comentar a legislação argentina, que com a Lei n° 24.240 de 1993 regulou a proteção do consumidor, inclusive contratual. Como veremos mais adiante, nesta lei estão definidos consumidor, no seu artigo 1°, e fornecedor (proveedor de cosas o servicios), no artigo 2°.

No Japão, há lei prevendo a proteção contratual do consumidor desde 12.05.2000594, contudo desde 1968 há o “Ato Fundamental da Proteção ao Consumidor”. Criada em 1969, a União dos Consumidores do Japão, que representa os consumidores, publica a cada dez dias um “Relatório do Consumidor”, que traz informações importantes. Esta entidade privada também realiza campanhas em favor dos direitos do consumidor.

Passando aos países mais importantes do common law, nos Estados Unidos o Uniform Commercial Code definiu diferenças entre as vendas ao consumidor e aquelas realizadas entre comerciantes, assim como na Inglaterra, que seguiu a fórmula do Uniform Commmercial Code, ao adotar o Supply of Goods Act. Os ingleses contam, ainda, com uma estrutura para a proteção do consumidor, baseando-se, principalmente na Secretaria de Estado para o Comércio e Indústria (Secretary of State for Trade and Industry), que veio a receber grandes poderes com a Consumer Safety Act (CSA) de 1978.

Tradicionalmente, o direito inglês é fundamentalmente apoiado no princípio do freedom of contract, que corresponde à autonomia privada para o direito continental. Conhecida pela força das correntes liberais, a Inglaterra do século XIX adotou um livre comércio quase que desligado do Estado. Tanto assim o é que entre 1760 e 1850 uma gama de figuras jurídicas, algumas medievais, como é o caso da cláusula rebus sic stantibus, desapareceu daquele país. Nessa época, a relação de consumo era tida como “entre iguais”, entendendo que ambos possuíam o mesmo poder de barganha. Somente em 1893, com a edição do Sale of Goods Act (SGA) que se iniciou a proteger o contratante mais fraco. A ideia de perda da finalidade do contrato aparece com a doutrina da fundamental breach of contract que obrigava a aquele que descumpriu o contrato, a ponto de não haver mais utilidade para a outra parte, que deveria indenizá-la e o contrato ser extinto. O SGA foi modificado pelo supramencionado Supply of Goods (implied terms) Act (SuGA), de 1973. Em 1979, houve ainda a implementação do Sale of Goods Act 1979 (SGA 1979), no entanto, esses dispositivos

594 JAPÃO, Lei de Contratos de Consumo, de 12.05.2000. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, n. 43, jul./set. 2002.

abrangiam somente a parte mais fraca nos contratos de compra e venda. Somente em 1977, com o Unfair Contract Terms Act (UCTA), é que se estendeu a todas as espécies de contratos. O UCTA regulou as cláusulas de limitação e exclusão de responsabilidade. A Diretiva n° 93/13/EEC - Diretiva sobre Cláusulas Contratuais Injustas em Contratos de Consumo, aprovada pelo Parlamento inglês em 14 de dezembro de 1994, entrou em vigor em 1° de julho de 1995, foi implementada pelo Unfair Terms in Consumer Contracts Regulations (UTCCR), como consequência o direito inglês passou a contar com dois diplomas, muitas vezes divergentes, para proteger o consumidor, causando diversos embates entre o texto do UCTA e do UTCCR. Extracontratualmente, o consumidor, até o Século XVIII, não tinha qualquer proteção, já que todo problema referente à responsabilidade era resolvido no âmbito contratual, dada a relação pessoal entre fornecedor e consumidor em uma sociedade que ainda não conhecia a produção em massa, apenas produtos manufaturados. A partir da Revolução Industrial, passou-se a repensar o princípio da privity of contract - relatividade dos contratos – o que fez evoluir dos casos específicos (nominated torts) até a ideia de negligence595, que se tornou um princípio aplicável a todas as hipóteses de circunstâncias.

Por fim, cabe salientar que um grande passo no direito consumerista inglês se deu com o Consumer Protection Act 1987 (CPA) que introduziu o sistema de strict liability. Em suma, o CPA fixou uma ação de ressarcimento de dano causado por produto defeituoso e ampliou as sanções penais aos fornecedores596. As ideias liberais e individualistas vêm sendo substituídas através do chamado Welfare Law, forma de aplicar o direito que relativizou as ideias anteriores a fim de respeitar e amparar os consumidores.597

595 Reconhecida principalmente no caso McAlister (Donoghue) v. Stevenson [1932] – A C 562, onde a senhora Donoghe, depois de ter consumido um drinque conhecido como ginger-beer, encontrou uma lesma em decomposição ao fundo da garrafa de vidro opaco. Percebe-se que não é possível incidir as regras de responsabilidade contratual, pois o proprietário do bar, chamado Minchela, que contratou com a demandante, não era o mesmo que produzira a bebida. Frente ao ocorrido, a House of Lords sentenciou no sentido de que sempre que um produto possua um vício que não é possível de ser identificado pelo intermediário da relação (no caso o dono do café, já que o vidro era opaco), o fabricante terá infringido o seu dever de diligência razoável (duty of reasonable care), acarretando assim a negligência (negligence). (ZITSCHER, Harriet Christine. Introdução ao direito civil alemão e inglês. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 251).

596 Releva-se aqui que o CPA não se aplica aos gêneros alimentícios, os medicamentos, os veículos e o tabaco que possuem norma específica: o Health and safety at Work Act de 1974.

597 ZITSCHER, Harriet Christine. Introdução ao direito civil alemão e inglês. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 233-257.