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PARTE I – REVISÃO DOS CONTRATOS

1 EVOLUÇÃO: DA CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS À TEORIA DA

1.1 Autonomia da vontade, conceito clássico de contrato e sua interpretação, e o dirigismo

1.1.5 Crise na teoria do negócio jurídico

Repensar a importância da vontade nos contratos acabou por causar uma crise na Teoria do Negócio Jurídico. Esta crise101 surgiu da dificuldade de enfrentar os modelos modernos de contrato, muito mais massificados, com uma teoria criada para comportar contratos nos moldes liberais.102 Hoje, os contratos de consumo e de adesão, nos quais a vontade é violentamente mitigada, são cada vez mais frequentes.

A mudança no comportamento social provoca a mudança da teoria contratual desta sociedade, pois, segundo Roppo, o contrato consiste “em um conjunto historicamente mutável de regras e princípios.”103

Os chamados contratos de adesão são amplamente utilizados diante da padronização de comportamentos na sociedade de consumo em massa, chamada de mass consumption society nos Estados Unidos e de Konsumgesellschaft na Alemanha104. No Direito do Consumidor chega a ser a regra, “transformando a autonomia privada em exceção”.105 Vale frisar que a simples liberdade de aceitar os termos de um contrato não é suficiente para se afirmar que há liberdade contratual, já que esta somente está presente quando se verificam dois elementos, segundo Ruy Rosado de Aguiar Jr.,: “(a) pela decisão de celebrar ou não o contrato; e (b) pela configuração interna que se quer dar à avença, com a escolha de suas cláusulas”106.

Os próprios contratos cotidianos, fruto das sociedades massificadas, demonstram a falha na teoria clássica que trata do assunto. Sob muitas denominações, os chamados “atos

101 Chamada de nova crise do contrato. MARQUES, Cláudia Lima. A chamada nova crise do contrato e o modelo de direito privado brasileiro: crise de confiança ou de crescimento do contrato? In MARQUES, Cláudia Lima. A Nova Crise do Contrato: Estudos sobre a nova teoria contratual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 18.

102 COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A obrigação como processo. São Paulo: Bushatasky, 1976. p. 22 a 27. 103 VANZELLA, Rafael. O contrato, de Enzo a Vincenzo. Revista Direito GV 2. v. 1, n. 2, jun./dez. 2005. p.

222.

104 SANTOS, Fernando Gherardini. Direito do marketing: uma abordagem jurídica do marketing empresarial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 113.

105 LEONI, Guilherme Loria. Aspectos legais do contrato de adesão. Revista jurídica da Universidade de

Franca. Franca: Universidade de Franca. V. 6, n. 11, 2003. p. 87.

106 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. O Poder Judiciário e a concretização das cláusulas gerais. Revista de

existenciais”107, “atos de tipicidade trafica”108, “relações contratuais de fato”109 (faktische Vertragsverhältnisse)110 ou “conduta social típica”111, nada mais são do que aqueles pactos firmados diariamente para atender as necessidades básicas sem maiores formalismos. Exemplo comum é a compra realizada por incapazes, e não apenas de sorvetes (o que também serviria de exemplo), mas mesmo as compras com valores mais expressivos realizadas na internet.112 Ainda que contem com o consentimento dos pais, isso não resta expresso nos contratos, mas nem por isso se anulam tais acordos celebrados no comércio eletrônico. Tais comportamentos são comuns nas relações jurídicas de consumo e não levam em conta somente a vontade das parte, o que se torna ainda mais evidente nos contratos que têm como objeto um bem essencial, pois não há como falar em vontade (querer ou não) quando se trata de luz, água, etc.

Assim, embora o tráfico de massas e os contratos padronizados que trazem acordos, onde não se considera que a vontade seja a parte mais importante do pacto, sejam cada vez mais frequentes, a teoria clássica insiste em reafirmar o voluntarismo contratual. Ora, não se pode manter a visão de que o negócio jurídico é instrumento da autonomia privada quando o volume e o modelo das transações fazem com que não se leve em conta somente a vontade das partes.

107 denominação de Clóvis do Couto e Silva traduzindo o termo alemão Daseinsvorsorge (COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A obrigação como processo. São Paulo: Bushatasky, 1976. p. 91 e 92.)

108 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984. v. 38. p. 30.

109 Ou ainda “comportamentos sociais típicos” que conteria o “contato social” e as “relações obrigacionais duradouras”. VIEIRA, Iacyr de Aguilar. A autonomia privada no código civil brasileiro e no código de defesa do consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 791, set. 2001. p. 46.

110 HAUPT, Günter. Über Faktische Vertragsverhältnisse. In Festschrift für Siber, Leipzig, 1943, p. 1-35. Apud FRADERA, Vera Maria Jacob de. Superposição de contratos. Palestra proferida na FGV de São Paulo, s/d. No Prelo. p. 14. Nota 27. e FRADERA, Vera Maria Jacob de. O valor do silêncio no novo Código Civil. Aspectos controvertidos do Novo Código Civil: Escritos em homenagem ao Ministro José Carlos Moreira Alves. Revista dos Tribunais, 2003. p. 579. Nota 58. Pontes de Miranda cita a edição de 1941 em MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984. v. 38. p. 30 com bibliografia completa na p. 397.

111 como denominou Karl Larenz com a expressão sozialtypisches Verhalten (“ […] las obligaciones pueden nacer: de los negocios jurídicos de la conducta social típica de hechos legalmente reglamentados y, finalmente y por excepción, de un acto de soberanía estatal con efectos constitutivos en materia de Derecho privado […]” LARENZ, Karl. Derecho de Obligaciones. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1958, v. 1. p. 55.) ou “comportamento social típico” como traduzem Cesar Santolim em SANTOLIM, César Viterbo Matos. Os princípios de proteção do consumidor e o comércio eletrônico no direito brasileiro. Revista de direito do

consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais. n. 55, jul./set.. 2005. p. 59. e Vera Fradera em FRADERA,

Vera Maria Jacob de. O valor do silêncio no novo Código Civil. Aspectos controvertidos do Novo Código

Civil: Escritos em homenagem ao Ministro José Carlos Moreira Alves. Revista dos Tribunais, 2003. p. 580. e

FRADERA, Vera Maria Jacob de. Superposição de contratos. Palestra proferida na FGV de São Paulo, s/d. No Prelo. p. 14.

112 SANTOLIM, César Viterbo Matos. Os princípios de proteção do consumidor e o comércio eletrônico no direito brasileiro. Revista de direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais. n. 55, jul/set. 2005.

Neste diapasão, o CC de 2002 traz maior valoração à confiança das partes ao fundar suas noções básicas na função social dos contratos, na boa-fé, nos bons costumes, etc.113, “sempre visando atingir o equilíbrio e a equidade contratual (Vertragsgerechtgkeit), por meio do combate [...] à onerosidade excessiva ( arts. 4°, I, III, 6°, 51, IV e § 1°, do CDC e 156, 157, 317, 478, 479 e 480 do CC/2002) [...].”114

No que toca à nova visão do adimplemento contratual, interessantes as ponderações de Rafael Vanzella:

[...] a sociedade e a economia globalizadas exigem um contrato cuja flexibilidade superponha-se aos valores de certeza e estabilidade [Il conttrato del duemila, 7]. Reaparece, revigorada pela análise econômica do direito, a teoria da efficient breach: o contrato não mais constitui obrigação de adimplir, senão um poder (formativo) de escolha entre adimplir e não-adimplir/ ressarcir; respeitar ou violar deveres (relativos) contratuais torna-se indiferente do ponto de vista axiológico, mas relevante se se aprecia sua conveniência econômica, pois neste caso é privilegiada a opção que garanta a melhor alocação de recursos [Il conttrato del duemila, 7]. Seria o fim do corolário do direito dos contratos pacta sunt servanda, em que o aspecto moral se sobressai? Enzo não chegou a enveredar sua análise nessa direção; deteve-se no significado ideológico – e nas alterações – dos temas da liberdade de contratar, da igualdade jurídica dos contratantes, da autonomia da vontade, da teoria da vontade. Não deixou de afirmar, porém, que a descoberta do sentido oculto em tais dogmas do direito contratual liberal levava à admissão de que o contrato (e os dogmas do direito dos contratos) não passava de mecanismo objetivamente essencial ao funcionamento de todo o sistema econômico [O contrato, 25]. A própria noção de autonomia privada, sucedânea à noção de autonomia da vontade, já indicava que a supremacia da vontade individual cedera lugar à legitimação da liberdade econômica, da liberdade de prosseguir no lucro ou de atuar segundo as conveniências de mercado. As transformações no direito dos contratos caminhavam, pois, menos na linha de uma adaptação ética do que naquela da necessidade de torná-lo mais funcional às novas condições do capitalismo [O contrato, 310-311]. Todavia o corolário pacta sunt servanda não era relativizado, senão reforçado, porquanto revelava que o respeito aos compromissos assumidos seria pressuposto para que as operações econômicas se desenvolvessem conforme uma lógica própria, de modo a viabilizar e não frustrar os cálculos dos agentes econômicos [O contrato 24-25].

Para Vincenzo, porém, não precisamente o fim, mas sim a relativização do pacta sunt servanda é o cerne do “novo paradigma contratual”. Como Enzo, também em tema de proteção do contratante mais fraco, assume esta como um dado normativo imposto não somente por questões de eqüidade e justiça, mas sobretudo pela tutela do próprio funcionamento do mercado: empresários eficientes devem prevalecer não pelo abuso de posição dominante, e sim pelo melhoramento da qualidade e diminuição do preço dos produtos, pela inovação tecnológica, pela redução dos

113 MARQUES, Cláudia Lima. A chamada nova crise do contrato e o modelo de direito privado brasileiro: crise de confiança ou de crescimento do contrato? In MARQUES, Cláudia Lima. A Nova Crise do Contrato: Estudos sobre a nova teoria contratual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 21.

114 MARQUES, Cláudia Lima. A chamada nova crise do contrato e o modelo de direito privado brasileiro: crise de confiança ou de crescimento do contrato? In MARQUES, Cláudia Lima. A Nova Crise do Contrato: Estudos sobre a nova teoria contratual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 29.

custos internos e pela racionalização dos processos produtivos e distributivos [Il contratto, 904].115

Deste modo, a relativização da obrigatoriedade dos pactos pode se relacionar tanto com a redução da importância da autonomia privada quanto com a visão econômica do inadimplemento que o vê como uma opção. A obrigatoriedade inflexível é um dogma da economia liberal. Se ao contratante parece vantajoso deixar de cumprir o contrato e bancar os custos do inadimplemento, é assim que deve agir. Esta forma não se aplica ao tema em estudo, pois aqui se trata de quem gostaria, mas não consegue cumprir o contrato. Parece importante, no entanto, registrar esta posição, pois ela demonstra o quanto o pacta sunt servanda vem perdendo força nestes novos paradigmas contratuais.