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PARTE I – REVISÃO DOS CONTRATOS

1 EVOLUÇÃO: DA CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS À TEORIA DA

3.2 O Código Civil de 2002

3.2.1 Análise dos artigos 478, 479 e 480 do CC/2002

3.2.1.1 Requisitos controversos adotados pelo CC/2002

3.2.1.1.1 Imprevisibilidade

A maioria dos autores concede grande importância a esta exigência por dar nome à teoria da imprevisão.599 Constituindo requisito de maior peso para boa parte dos julgadores quando determinam a possibilidade ou impossibilidade de aplicação da cláusula rebus sic stantibus600, o que comprova a força do pensamento voluntarista. Este requisito acompanha a ideia da probabilidade de acontecimento daquele fato estranho às partes, capaz de desequilibrar o vínculo de acordo com as circunstâncias conhecidas, considerando as condições pessoais dos contratantes.601 Supõe-se que, caso o acontecimento fosse previsível ou já tivesse afluído, as partes jamais contratariam.602

Entretanto, apesar de exigido pela imensa maioria das legislações alienígenas603, há quem sustente, com razão, que basta que a alteração das circunstâncias seja superveniente, cause uma grave onerosidade e tenha sido imprevista, ainda que não imprevisível, para que seja possível a revisão, tornando objetivo este elemento. O que deve haver é um fato que, se tivesse sido previsto, não levaria as partes à realização do contrato.

Este requisito liga-se com a ideia de diligência do “homem-médio”, da “pessoa racional” e do “bom pai de família” que seriam pessoas responsáveis e sensatas que se precaveriam de determinados riscos. Não há como ser mais subjetivo. Ou seja, qual o limite de racionalidade e previdência que se pode exigir deste homem médio? Quem é o parâmetro para este bom pai? Já em 1836 se questionavam estes padrões preconcebidos de ser diligente:

Speaking for the drafting committee, Bigot-Préameneu denounced the old view as useless and overly subtle. Accordingly, article 1137, paragraph 1 declared that when a person is charged with looking after an object, there would be one standard of care, that of a bon père de famille, what we would call a ‘reasonable person’.604

599 DONNINI, Rogério Ferraz. A revisão dos contratos no código civil e no código de defesa do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 65. GOMES, Orlando. Contratos. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 40. 600 MORAES, Renato José de. Cláusula “rebus sic stantibus”. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 182-183.

601 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: Aide, 2004. p. 155.

602 SANTOS, Regina Beatriz da Silva Papa dos. Cláusula “Rebus sic stantibus” ou Teoria da imprevisão:

Revisão contratual. Belém: Cejup, 1989. p. 37.

603 GRYNBAUM, Luc. Le contrat contingent. L’adaptation du contrat par le juge sur habilitation du législateur. Paris: LGDJ, 2004. (Bibliothèque de droit privé. Tome 389) p. 31-34.

604 “Falando em nome do comitê de redação, Bigot-Préameneu denunciou a antiga visão como sendo inútil e extremamente misterioso. Deste modo, o artigo 1137, parágrafo 1, declarou que quando uma pessoa é acusada de cuidar de um objeto, não haveria um padrão de cuidado, de um bon père de famille, o que poderíamos

Em vez de adotar simplesmente a excessiva onerosidade, o art. 478 do CC de 2002, no mesmo sentido do CC italiano, optou pela teoria da imprevisão de difícil aplicação. O próprio BGB (Código Civil Alemão), ao que parecia, não havia tomado este rumo, pois, como é sabido, sua jurisprudência sempre teve como fundamento a teoria da base objetiva. Ocorre que, em 11 de outubro de 2001, foi aprovado um diploma chamado de “Lei para a modernização do Direito das obrigações” ou Gesetz zur Modernisierung des Schuldrechts”. Esta lei alterou diversos artigos do Código Civil alemão, notadamente no direito das obrigações, sendo considerada por Menezes Cordeiro, “a maior reforma, neste sector, desde a própria publicação do BGB, em 1896”605 e esta reforma, vigente desde 1º de Janeiro de 2002, o seu §313606 passou a prever:

havendo mudanças graves nas circunstâncias que integram a base do contrato, depois de sua celebração, em razão das quais os contratantes não o celebrariam ou o fariam com outro conteúdo, se tivessem podido prever as mudanças” (exigência da previsibilidade), “pode-se requerer a adaptação do contrato, desde que uma das partes considere as circunstâncias do caso concretos, principalmente sobre a divisão de riscos contratuais ou legais, não se podendo exigir a manutenção do contrato celebrado.

Ora, se as partes devem não ter a possibilidade de prever as alterações fáticas, se estas forem previsíveis, não se poderá aplicar o dispositivo supra607. Isso faz com que reflitamos a respeito da teoria da base objetiva, no sentido de que é possível que esta também exija a imprevisibilidade para sua aplicação, como visto em item anterior.

Quando se fala em previsibilidade, há que se distinguir possibilidade de previsão da ideia do dever de previsão608, pois não interessa averiguar tudo aquilo que é previsível, mas sim tudo aquilo que a parte tem a obrigação de prever, e prever significa ver antecipadamente, antever ou profetizar. O latim concebe a capacidade de profetizar, a providentia, como um

chamar de uma ‘pessoa razoável’” (tradução livre) GORDLEY, James. Foundations of private law: property, tort, contract, unjust enrichment. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 339.

605 CORDEIRO, António Menezes. Da modernização do Direito Civil. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2004. p. 69. 606 Sobre a previsão da alteração das circunstâncias no BGB, Menezes Cordeiro faz bela análise inclusive trazendo a tradução de todo o texto do § 313. CORDEIRO, António Menezes. Da modernização do Direito

Civil. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2004. p. 114-116.

607 AZEVEDO, Álvaro Villaça. O novo código civil brasileiro: tramitação; função social do contrato; boa-fé objetiva; teoria da imprevisão e; onerosidade excessiva. Revista Jurídica, São Paulo, v. 51, n. 308, p. 7-25, jun. 2003. p. 19-20.

608 SANTOS, Antonio de Almeida. A Teoria da Imprevisão ou da superveniência contratual e o novo código

dom da deusa Providência. O que se pode exigir é cautela, precaução, prudência, pois, obrigar a prever o futuro é o mesmo que impor aos contratantes características divinas.609

Por outro lado, Luis Renato Ferreira da Silva faz uma brilhante observação quanto aos recursos modernos de previsão:

No mundo moderno, a carga de informações que se tem é capaz de antecipar até mesmo eventos da natureza, com uma precisão incrível, o que acabaria por excluir, caso se quisesse levar a tese ao extremo, até mesmo os terremotos ou tufões ou erupções vulcânicas que muitas vezes, mais do que onerar, impossibilitam o cumprimento.610

Além disso, há uma gama de situações passíveis de previsão que podem acarretar terrível desproporção ou onerosidade das obrigações, quer seja para uma, quer seja para ambas as partes. Um exemplo recente disso são os surtos inflacionários sofridos pela economia brasileira. Ao considerá-los como fatos previsíveis, os Tribunais brasileiros vedaram a aplicação da revisão ou resolução por fato superveniente onerador, deixando, assim, de salvar inúmeros contratantes da ruína.611 O que se percebe é que o CC de 2002 ainda se curva para alguns preceitos liberais oitocentistas como o dogma do voluntarismo jurídico. A excessiva vinculação à vontade impede a aplicação da cláusula rebus sic stantibus no direito moderno. Só se discute se as partes queriam ou não algo, e se não era passível de previsão também não era possível que as partes manifestassem sua vontade quanto ao fato superveniente. Olvidam-se, contudo, das demais figuras do direito como alternativa à vontade.612

Pode-se afirmar que quase sempre o fato imprevisível altera a própria relação contratual ao majorar excessivamente a prestação. Contudo, há quem entenda que podem ocorrer alterações nas condições pessoais de um dos contratantes que tornem excessivamente oneroso o seu cumprimento, conforme o inicialmente pactuado, como o desemprego ou o congelamento do salário, e esses podem ser motivos para a aplicação da cláusula rebus sic

609 RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Revisão judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão. São Paulo: Atlas, 2002. p. 117-123, p. 155-156.

610 SILVA, Luis Renato Ferreira da. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 111.

611 DONNINI, Rogério Ferraz. A revisão dos contratos no código civil e no código de defesa do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 65-67, p. 78-79.

612 SILVA, Luis Renato Ferreira da. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 120-121.

stantibus apesar de nada ter a ver com o contrato objeto do litígio, sem que se atinja a vontade das partes613.

Outra crítica que se pode fazer à exigência da imprevisibilidade da alteração fática ou do dever de previsão é sua difícil definição e apuração no caso concreto. Varia de acordo com a condição do contratante, pois, o que é previsível para um especialista ou um sábio, não o é para o homem comum, varia ainda quanto ao tempo, visto que o que é previsível hoje não o era ontem, ou ainda quanto ao espaço, ou seja, o que é exigível que tivesse previsto para um gaúcho, não necessariamente é para um paulista, e assim por diante614, além de ser um termo “sempre aberto a reinterpretações e modificações”615.

António de Almeida Santos traz os termos utilizados por diversos países como: “imprevisíveis”, pela legislação italiana, em artigo 1467 do Código Civil; “que as partes poderiam razoavelmente prever”, segundo o Projeto de CC Húngaro; “acontecimentos que os contratantes não poderiam prever”, diz o Código das Obrigações Polonês; e “excepcionais e imprevisíveis”, expressão adotada pelo Código Egípcio.616 Correta a terminologia aplicada pelo legislador português: “situação anormal”. Assim como, de certa forma, dispensa a imprevisibilidade617, exige que não se trate de fato habitual, trivial. Amplia-se o campo de aplicação com responsabilidade e querência, e não adotando a ultrapassada ideia de que as partes aceitaram que, tudo o que não constou no texto do contrato não pode influenciá-lo. Acertada também a opção adotada pelo Código de Defesa do Consumidor, que exclui a exigência do evento imprevisível.618

Apesar de muitos julgadores entenderem que, conforme Ripert, “contratar é prever”, e que, de acordo com Bonnecase, há que se colocar “acima das vontades particulares ou das representações psíquicas, os princípios superiores da segurança social”, a jurisprudência

613 MORAES, Renato José de. Cláusula “rebus sic stantibus”. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 183-184.

614 SANTOS, Antonio de Almeida. A Teoria da Imprevisão ou da superveniência contratual e o novo código

civil. Lourenço Marques: Minerva Central, 1972. p. 79.

615 MORAES, Renato José de. Cláusula “rebus sic stantibus”. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 192.

616 SANTOS, Antonio de Almeida. A Teoria da Imprevisão ou da superveniência contratual e o novo código

civil. Lourenço Marques: Minerva Central, 1972. p. 78-79.

617 Apesar do conceito carregar “uma certa carga de imprevisibilidade”, pois, “Os homens determinam-se segundo juízos de normalidade.”, ainda assim “não pode presumir-se como querida uma alteração anormal.” (SANTOS, Antonio de Almeida. A Teoria da Imprevisão ou da superveniência contratual e o novo código

civil. Lourenço Marques: Minerva Central, 1972. p. 82).

618 SILVA, Luis Renato Ferreira da. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 142-143.

aceitou alguns fatos históricos como imprevisíveis ao longo dos anos, a saber: a Primeira Guerra Mundial, a Revolução de outubro de 1930 que culminou com a tomada do poder por Getúlio Vargas, a Segunda Guerra Mundial e, por uma pequena parte dos julgadores, o fenômeno da inflação, conforme abordado quando tratamos do histórico da cláusula rebus sic stantibus no Brasil619. Não se está querendo dizer que não seja possível que a cláusula estudada não possa ser alegada despropositadamente como defesa para o descumprimento infundado de um acordo, visando esquivar-se do cumprimento, mas sim que este requisito, por sua indeterminação e redução do âmbito de aplicação das teorias revisionistas, praticamente inviabiliza seu emprego ao caso concreto. Mais importante do que desvendar-se a vontade das partes atingida por fato imprevisível é atentar-se para o equilíbrio das prestações620 e a viabilidade econômica de seu adimplemento.