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A relação entre os profissionais da biomedicina e a família

3 Utilizarei os termos de acordo com PELEGRJNI (1998), que adotou em sua dissertação de mestrado a palavra doença para se referir à sensação, experiência (illness) e distúrbio para classificações anátomo-

2.3 A relação entre os profissionais da biomedicina e a família

KLEINMAN (1980), ao apresentar o sistema de saúde como um sistema cultural de cuidado, deteve-se nas relações entre os sub-setores do seu modelo. Vou deter-me aqui apenas na relação da biomedicina com a família como agência de cuidado.

Este autor refere que há necessidade de uma tradução do modelo explicativo do profissional da biomedicina para o indivíduo/família e vice-versa. Isto vai levar a uma negociação quanto à compreensão da etiologia e do tratamento, o que reafirma a base teórica do autor, que é a tradição interpretativa da antropologia, e utiliza o conceito de cultura de GEERTZ (1989), como um sistema de símbolos dentro do qual o homem pensa e age de forma dinâmica. Isto está de acordo com LANGDON (1994), este sistema simbólico é público e centrado no ator, que o utiliza para interpretar seu mundo e para agir. As interações sociais são baseadas em uma realidade simbólica, sendo que os atores comunicam e negociam significados. Assim, dentro desta visão, os agentes da biomedicina e da família, quando entram em contato, poderiam agir desta maneira.

Levando em consideração estas premissas, no sistema de saúde brasileiro, no que se refere à biomedicina, as relações dos agentes envolvidos dependem diretamente do contexto mais amplo. Assim, a equipe de enfermagem de um hospital comunica significados para o paciente ou família de diferentes formas, ora impondo, ora tendo que

Aqui, irei apoiar-me na análise de PAPPAS (1990), um antropólogo que se insere na linha da antropologia médica crítica. Ele, na sua análise, refere que Kleinman, ao propor seu modelo, centrou-se com muita ênfase nas relações entre os agentes envolvidos, mas pouco se deteve na estrutura em que os mesmos estão inseridos. Kleinman enfatizou a análise da ação, particularmente a comunicação. No seu modelo, Kleinman faz referências a possíveis choques na comunicação clínica, ou seja, pode não haver concordância do modelo explicativo da doença entre o médico e o paciente. Porém, o autor não explicitou abertamente a diferença de poder, ou seja, a assimetria entre médico e paciente não é vista como problema. Apresenta, assim, a visão de um profissional imparcial, para ele, o poder está fora da relação, embora refira-se a possíveis choques na comunicação clínica, desta forma, o poder está implícito. Este seu conceito restrito de poder inibiu uma efetiva conexão do seu modelo com a estrutura.

Deixou, também, descoberta a questão do poder do médico sobre o corpo do paciente, através de exames. Especificamente na enfermagem, pode -s e destacar que existe um poder sobre o corpo do paciente, que precisa ser limpo no momento e da maneira que as técnicas preconizam. Desta forma, PAPPAS (1990) argumenta que, no choque entre médico-paciente, ou seja, entre o sistema profissional e o paciente, a diferença não está só na visão de saúde e doença e sim na própria consciência elementar sobre o corpo humano. Ao nos reportarmos a GOOD (1995), e pensarmos como os integrantes da biomedicina constroem o corpo, vendo-o na forma de ossos, músculos e vísceras e não de pessoas, pode inferir-se que o profissional vê e manipula este corpo e não a pessoa. PAPPAS (1990), propõe o conceito de poder e os conceitos de exploração e dominação para corrigir esta lacuna no modelo de Kleinman.

PAPPAS (1990), apresenta um conceito de poder, que ele denomina abordagem holística, isto é, além das teorias estruturalistas e teorias compreensivas que se dirigem com mais ênfase para a ação. Neste conceito, o poder tem os dois lados da mesma moeda. Deste modo, ele salienta que o poder não é nem um tipo de ação nem um recurso em si mesmo, poder significa um aspecto nas relações, manifestado no desenvolvimento dos recursos que é levado para as mesmas. Neste sentido, PAPPAS (1990), aproxima-se do ponto de vista de Foucault, chamado de microfisica do poder. De acordo com MACHADO (1999, p. 12), para Foucault, o poder atinge a realidade mais concreta dos indivíduos, o seu corpo, e que se situa ao nível do próprio corpo social e não acima dele, penetrando na vida

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cotidiana e, por isto, podendo ser caracterizado como micro-poder. Ainda segundo este autor, para Foucault, o poder não é algo que se possui como uma propriedade, não existe, de um lado, os que têm poder e, do outro, os que não têm, rigorosamente falando, o poder não existe, existem práticas ou relações de poder.

Conforme PAPPAS (1990), como em outros sistemas sociais, na saúde, as relações de poder podem ser vinculadas à autonomia e à dependência. Há um desnível de poder, que geralmente é mais positivo para os profissionais, porém, os atores, em posições subordinadas, nunca são totalmente dependentes. Os pacientes são capazes de converter recursos em algum grau de controle sobre suas condições, sendo dependentes das habilidades dos profissionais que, por outro lado, dependem do paciente para obter cooperação, resultados e boa reputação. Dito isto, a noção de poder não poderia ser somente política. O poder está envolvido em tudo o que é repressivo e destrutivo, bem como está ligado à liberdade e ao comportamento humano criativo.

Este argumento de PAPPAS (1990), também se aproxima das idéias de Foucault. De acordo com MACHADO (1999, p. 15), para Foucault, as relações de poder não se passam fundamentalmente pela esfera de direito ou de violência, nem são contratuais e unicamente repressivas. É falso definir o poder como algo que sempre nega, impõe limites e castiga. Foucault pretende, aliado à visão do poder, que se dá na forma de violência, com coerção e opressão, dar ao poder uma concepção positiva que pretende dissociar os termos dominação e repressão. Suas análises visam mostrar que a dominação capitalista não conseguiria se manter caso fosse exclusivamente baseada na repressão. Portanto, o poder possui positividades, uma eficácia produtiva, é por este lado positivo do poder que há uma diminuição do contra-poder, da resistência. Voltando a PAPAS (1990), com relação à interação, poder possui dois sentidos: o poder, envolvido com a organização institucional; e o poder utilizado para aproximar as relações, parte das estratégias de ação, em ambos restringe e possibilita.

Dominação, segundo PAPAS (1990), é a assimetria estrutural dos recursos que são levados para a relação. Para reconhecer a dominação, é preciso estar consciente da autonomia e dependência na relação médico-paciente, a balança do poder favorece o médico. Isto, no entanto, não pode ser considerado automaticamente um valor positivo ou negativo na assimetria.

No hospital, de acordo com FOUCAULT (1999), foi a introdução dos mecanismos disciplinares, no seu espaço antes confuso, que permitiu o nascimento da clínica, a grande ruptura que iria construir o fazer e o saber sobre o corpo individual. Esta disciplina se constitui na técnica de poder, se faz não só na organização de espaços que permitem a vigilância constante, mas também na hierarquia e no sistema de registros. Na relação família e equipe de enfermagem, a disciplina permeia as relações.