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7.1 “A vivência” é a maneira como se aprende a lidar com a família na unidade

7.2.2 Quem é daqui e quem vem do interior

O HC é um hospital especializado na área da criança, constituindo-se como um hospital de referência no nível terciário de assistência e atendendo pelo Sistema Único de Saúde. Estas qualificações o colocam como um hospital no qual 35,63% dos pacientes são procedentes do interior do Estado, 29,87% do próprio município e 40,68 % das imediações no qual está situado o HC.

Na unidade, embora não haja dados específicos, pode-se inferir que é proporcionalmente semelhante, pelo fato desta ter como uma das especialidades a nefrologia, somente desta área, a grande parte dos pacientes são procedentes do interior do estado. A equipe de enfermagem distingue características entre as famílias que são procedentes do município em que está situado o hospital e municípios vizinhos, daquelas famílias que procedem do interior do estado.

O s

do interior

"Há, sem dúvida, grandes diferenças se os familiares são daqui ou se são do interior. Os do interior são muito mais desconfiados, tímidos e retraídos, têm muita ignorância e então entram com muitas superstições e crenças” (Enfermeira).

Nas palavras desta enfermeira, seriam famílias com mais dificuldades para a equipe enfrentar, pois a diferença de seu mundo com o mundo do hospital é maior. A forma de olhar os familiares, no que se refere à procedência, está intrinsicamente ligada com a trajetória pessoal e profissional da equipe. Enquanto entre as enfermeiras há quem venha de centros urbanos desenvolvidos, as auxiliares são, em parte, do interior do estado ou de outros estados, algumas de origem humilde com histórias de sacrifícios para alcançar a atual condição de vida. Assim, há uma certa identificação com a situação das famílias procedentes do interior.

"Do interior são humildes, não perguntam, não têm experiência com este tipo de hospital. Eu já trabalhei em hospital lá em ..., eu sei que lá é bem simples, não é nada disto que tem aqui. Eles, quando chegam aqui, devem se assustar com tudo que vêem(Auxiliar de Enfermagem).

A diferença é entendida pela equipe, em função destas famílias estarem deslocadas de seu ambiente, às vezes mais pobre, mais simples. Assim, integrantes da equipe que também tenham origem no interior compreendem melhor a situação e se vêem dentro deste ambiente que inspira poder para quem chega e está deslocado. A equipe de enfermagem observa, assim, comportamentos próprios daqueles que vêm do interior, como o retraimento, estar perdido e não fazer perguntas.

Observam ainda que, diante das trajetórias da doença, enfrentada pelos que vêm do interior, o HC é algo grandioso, representa o grande recurso e, desta forma, agradecem por qualquer coisa.

"Para quem vem do interior, está tudo bem, eles te agradecem por qualquer coisa, porque, para eles, aqui é o céu, qualquer coisa é melhor.

Vou te contar um exemplo, há pouco fu i lá fora fum ar um cigarrinho. Tinham duas mulheres conversando, uma contava para a outra que estava internada em ... (interior do estado), lá ela tinha que ficar dia e noite sentada numa cadeira dura, se ela se levantasse de perto do filho

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para fazer qualquer outra coisa, a freira vinha e brigava com ela. A í é para ver porque aqui eles agradecem por tudo " (Enfermeira).

Além da percepção de que estes que vêm do interior pouco se manifestam, são agradecidos, o que traz implícito o valor do hospital e da equipe de enfermagem, conferindo lhe poder, está a percepção de que este familiar, frente à situação tão diferente e complexa, tem menos condições de realizar cuidados à criança dentro do hospital.

"Quando vêm de fora, mesmo que sejam de ... (município litorâneo), o que não é tão longe, eles já chegam aqui bem perdidos" (Enfermeira).

Uma auxiliar de enfermagem completou a fala desta enfermeira:

E pior ainda quando vêm da agricultura, eles não entendem, têm dificuldade de cuidar do soro, observar eliminações. A gente diz: "cuida mãe, ele arrancou o soro de novo, temos de picá-lo novamente e assim vai" (Auxiliar de Enfermagem que entrou na sala para tomar um cafezinho e ouviu a nossa conversa, e dizendo isto com certo cansaço, trabalha mais de 10 anos no hospital).

Ainda, para quem vem do interior, muitas vezes transferido de outro hospital, com transporte de ambulância, sem nunca ter vindo para a região litorânea ou para qualquer cidade mais populosa, sente-se totalmente deslocado. No meu convívio na unidade, percebi que nas situações de doenças agudas, ocorrem circunstâncias em que estar neste hospital é estar amparado com o melhor dos recursos. Geralmente, quem vem do interior, já esteve internado em um hospital de sua própria região, já passou por experiências que não deram certo, sendo depois transferidos para um local com mais recursos, o HC. É muito comum o fato de os familiares nunca terem saído de sua região.

Cíntia e sua filha Graça, de sete anos, eram procedentes do Oeste do estado, nunca tinham vindo à cidade sede do HC. Graça já esteve internada num hospital da região com diagnóstico de derrame pleural, após quinze dias com dreno pleural sem melhora, foi transferida para o HC. Vieram sozinhas na ambulância, durante toda a internação, que se prolongou por três semanas, não receberam visitas, pois o esposo permaneceu no Oeste trabalhando e cuidado dos outros três filhos menores, de cinco, de três e de dois anos. O único contato era, eventualmente, por telefone. No momento da alta, Cíntia disse:

"Disseram para nós irmos de ônibus, pois eles não vão mandar a ambulância. Só que eu não sei nem como ir até a rodoviária, não sei nada aqui" (Notas de Observação).

Os familiares das crianças procedentes do interior dependem, assim, mais diretamente da equipe de enfermagem e da estrutura de apoio do hospital, uma vez que têm poucas possibilidades de fazer troca de acompanhante e, quando isto ocorre, o hospital precisa fornecer refeições, vaga no albergue, providenciar transporte para retomo e outros. De acordo com uma enfermeira, a própria estrutura da unidade precisa ser colocada mais à disposição daqueles que vêm do interior. É para os familiares do interior que há necessidade de armários para guardar malas, cobertores e roupas, já que muitas vezes eles vêm sem previsão de volta. É para estes familiares que há necessidade de fornecer todas as refeições e, em certas ocasiões, para mais de uma pessoa. A equipe então avalia que há necessidade de estabelecer outro tipo de relação:

"Para eles, nós precisamos nos 'achegar' mais, eles dependem de nós em tudo, precisamos garantir as refeições, já para os daqui, que têm maior possibilidade de fazer a troca de acompanhante, nem sempre o hospital fornece as refeições. Quando há um número pequeno de tickets-refeição, o Serviço Social opta em fornecê-los para quem é do interior do estado " (Enfermeira).

A situação, é diferente para os familiares de doenças crônicas que vêm do interior do estado. Com as constantes reintemações, eles começam a ter maior controle da situação, se adaptam e passam a se manifestar aos poucos.

A equipe reconhece que, com as famílias do interior, precisa se “achegar mais”, “tem que observar mais”, pois estes não observam ou não falam, tem que “orientar mais” e “fazer mais”. Também, reconhece que estes familiares podem ser mais “mandados”, porque não reclamam e não sabem se defender.

Os daqui

Constituem-se aqueles familiares procedentes do próprio município ou dos municípios vizinhos. São diferenciados daqueles do interior por apresentarem comportamento mais desembaraçado. Observa-se que, mesmo quando eram procedentes do interior do município ou dos municípios vizinhos ou procedentes de regiões periféricas pobres, seu comportamento era mais seguro, mais exigente do que aqueles que vinham do interior.

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“Os daqui se sentem mais em casa" (Enfermeira).

Pelo fato de sentirem-se mais em casa, faz também com que, segundo eles, sejam mais exigentes: “os daqui reclamam mais”. Além do fato de “os daqui” não dependerem tanto do hospital, eles também estão mais familiarizados com o tipo de procedimento realizado. Conforme a equipe:

"Eles geralmente já fazem nebulização ou em casa ou no posto de saúde, ou já tiveram experiência de internação de algum filho ou outro parente em algum hospital daqui, aí o soro e tudo mais não são novidades" (Auxiliar de Enfermagem).

7.2.3 Os ricos / classe média / os pobres /