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3 Utilizarei os termos de acordo com PELEGRJNI (1998), que adotou em sua dissertação de mestrado a palavra doença para se referir à sensação, experiência (illness) e distúrbio para classificações anátomo-

2.2.2 Sistema familiar de cuidado

Para situar e compreender o sistema familiar de cuidado nos dias atuais, é importante lançar um olhar ao passado não tão distante. ARIES (1981), que fez um estudo da história da família através de pinturas, principalmente na França, datam do início do século XVIII as iconografias onde se pode acompanhar o nascimento de um sentimento de família. Segundo ele, o sentimento era novo, mas não a família. Anteriormente, o que se considerava nas famílias eram laços de sangue, a linhagem, a herança, depois, o sentimento de família passa a se formar com os pais e filhos.

E interessante observar que o sentimento de família passou a se formar junto com a história do cuidado a seus membros. Este sentimento foi sendo forjado, sobretudo, pela necessidade de diminuir a mortalidade infantil e produzir indivíduos úteis e necessários à sociedade. A preocupação dos governos com a sociedade fez com que a família abastada, desta época, fosse o primeiro e mais importante agente do poder da medicina oficial. Na França, de acordo com DONZELOT (1986), a medicina se centrou, especialmente, sobre a mulher com posses, que foi incentivada a amamentar seus próprios filhos em vez de entregá-los às nutrizes fora da cidade, como era o costume até esta época. O médico, com sua prática higienista, começou a acompanhar de perto esta mulher, principalmente no período grávido puerperal, tirando-a da esfera da medicina popular praticada por mulheres experientes. A mulher burguesa passa a ser uma espécie de enfermeira da família, seus cuidados eram orientados pelo médico, ela executava e orientava, por sua vez, a mulher mais pobre, que não tinha direito a esta assistência médica. A mulher rica ganhou uma nova posição na família, de cuidadora e responsável pelo cuidado e educação dos filhos. Os filhos, merecedores de cuidado direto da própria mãe, ganharam aos poucos uma posição mais centralizada. Assim, o poder, que antes era exclusivamente do homem, foi se diluindo um pouco, a mulher, aliada ao médico ganhou novas funções e mais poder na

família. O médico ganhou uma nova clientela, e a medicina popular foi sendo enfraquecida, na medida em que se destinava somente para os pobres.

N a classe popular, o dever da mulher era trazer o homem para dentro de casa, tirando-o da promiscuidade, e cuidar de seus filhos para evitar o abandono de crianças. Com tudo isto, a família tom a - se uma instituição de cuidado a seus membros, formando indivíduos úteis e saudáveis para o estado, que precisava de braços para o trabalho. Esta é a história da família na França, que, de forma semelhante, se reproduziu no Brasil.

Segundo COSTA (1983), no Brasil colônia, o filho tinha uma posição periférica na família burguesa, o pai era o centro. A mortalidade infantil, mesmo nestas famílias mais abastadas, era alta. Isto era ocasionado porque as mães entregavam seus filhos para as escravas amamentarem e cuidarem.

No século XIX, o discurso dos médicos higienistas se voltou contra a prática das mães que não amamentavam seus filhos e da escrava cujo filho era colocado na roda dos expostos para que estivesse disponível a amamentar os filhos das brancas. Havia a prática de alugar a escrava nutriz para as crianças brancas serem amamentadas, sendo que o dinheiro deste aluguel revertia para o dono da escrava.

Os médicos higienistas passaram a emitir ordens médicas para a mulher burguesa amamentar e cuidar de seus próprios filhos e ser iniciadora da educação infantil. Alegavam que o leite da escrava se tomava rançoso pelo rancor da perda de seu próprio filho, e isto prejudicava a nutrição e a saúde do filho da mulher burguesa. Os higienistas foram, aos poucos, difundindo a idéia de que os filhos estavam no mundo para amar e servir a humanidade e não só para servir à família. A apropriação médica dos filhos foi sendo feita à revelia dos próprios pais.

Desta forma, os higienistas, usando de seu poder, realizaram um movimento que atingiu principalmente a família abastada, alterando as posições de poder dos seus membros no interior da mesma. A mãe passou a cuidar auxiliada pelo médico, ganhou força na família, enquanto o homem passou a ser responsável pelo sustento material. Os filhos conquistaram um lugar mais central, na medida em que as preocupações do cuidado começaram a dirigir-se para eles e não somente para o patriarca, como era antes. Com estas mudanças, os higienistas tiveram êxito, conseguindo diminuir a mortalidade infantil entre as famílias abastadas no Brasil.

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Enquanto isto, a família da classe popular, e aqui se inclui o legado da escravatura, excetuando a intervenção higienista mais coletiva, esporádica, continuou sem amparo de uma assistência à saúde mais direta, pois, apesar do discurso higienista, a preocupação não estava na diminuição da mortalidade infantil das famílias pobres, que atravessaram o século XX morrendo em altas proporções. Estas famílias continuam até os dias atuais usando seus próprios recursos, formando seus próprios modelos explicativos para manter e restaurar a saúde.

A deficiência da assistência profissional de saúde e a deficiência de educação formal têm colocado as famílias das camadas mais pobres de nosso país diante da necessidade de produzir seu próprio cuidado. Cuidado este, fruto de uma tradição oral passada de mãe para filha, baseada na experiência de cuidado de filha mais velha para com seus irmãos que vão nascendo. Há então a existência de uma cultura do sistema familiar de cuidado por benzedeiras, balconistas de farmácia e outros, além do escasso atendimento do sistema profissional de cuidado. O atendimento médico a este segmento da população, quando ocorre, se faz, muitas vezes, em condições precárias, de forma rápida, na qual há um fosso entre o profissional de saúde com seus conhecimentos e linguagem própria. Deste modo, este segmento da população tem dificuldade de entender o que ocorre. Assim, estas famílias são assistidas com relação ao corpo físico (disease), sem haver tempo de trocar palavras sobre a experiência da doença (illness).

KLEINMAN (1980), argumenta que, embora os estudos de sociólogos como LITMANN (1974) e outros tenham abordado a família como agência central de cuidado, seus estudos são limitados às famílias nos Estados Unidos. Ressalta que estudos em outras culturas têm recebido menos atenção, o que é irônico, visto que o tratamento é iniciado e conduzido na família. No Brasil, após passados vinte anos deste comentário de Kleinman, pode-se afirmar que temos vários estudos preenchendo esta lacuna. O trabalho de ELSEN (1984) foi pioneiro e tem influenciado, no Brasil, uma mudança de visão sobre o foco da assistência na enfermagem: a família como uma unidade de cuidado.

Apesar e com este movimento no qual o estado e o poder médico impõem normas e regras à família, a literatura internacional e nacional continua apontando que a família é a agência central de cuidado à saúde a seus membros. KLEINMAN (1980), afirma que o sistema familiar faz a interação com os outros sistemas e, portanto, é uma importante área da saúde. LITMANN (1974), participa destes pensamentos quando refere que a família é

uma unidade básica de saúde, fazendo uma revisão de vários autores que também defenderam esta idéia desde a década de 40. BERMANN et al (1994), introduzem um referencial denominado “domicílio produtor de saúde”, isto é, um processo comportamental dinâmico no qual a família combina seus recursos internos (conhecimentos, recursos, padrões), com os recursos externos (informações, serviços) para manter ou restaurar sua saúde.

ELSEN (1984), enfermeira, realizou uma pesquisa tendo por base o modelo do Interacionismo Simbólico, com famílias de origem açoriana, de estrato médio baixo, com filhos em idade escolar em uma região pesqueira. Verificou que é na família que se tomam as decisões sobre cuidados, tratamentos e serviços a serem buscados. A família, para tomar estas decisões, tem concepções próprias sobre reconhecimento de sintomas e busca de cuidados, que são muitas vezes diferentes dos profissionais de saúde. Os achados desta autora mostram que, poucas vezes, os problemas de saúde identificados pela família precisavam ser levados aos serviços de saúde para sua resolução. Verificou, ainda, que os cuidados prestados envolviam ações de promoção, de prevenção e de tratamento de doenças, incluindo reabilitação, baseados em conhecimentos de sua cultura, bem como de profissionais de saúde. A autora constatou que a família desenvolvia um verdadeiro processo de cuidar.

Achados semelhantes podem ser encontrados nos trabalhos de CARTANA (1988), que realizou a pesquisa em uma comunidade de descendentes de açorianos, e o trabalho de BUDÓ (1994) com descendentes de italianos no Rio Grande do Sul. Estes trabalhos feitos no Brasil, de certa forma, estão em consonância com a pesquisa de LANGDON (1994) entre o povo Siona na Colômbia, que corrobora com a idéia da família como matriz de cuidado, na medida em que apresenta dados nos quais esta negocia a identificação de sintomas, os tratamentos e a avaliação dos tratamentos e cuidados. Outros trabalhos mais específicos com famílias de crianças lactentes apontam para o fato de que elas têm suas próprias explicações para a identificação de sintomas e cuidados (BOEHS; MONTICELLI; ELSEN, 1989,1991; BOEHS, 1990; ALONSO & REZENDE, 1995; MONTICELLI, 1997; CASTANHEL & BOEHS, 1993). Ainda, a pesquisa de RIBEIRO (1999) concentra-se na família que vivência o risco de vida de seu filho. Esta família vivência fases, tais como: percebendo algo que não “está bem”, passando a mobilizar-se, concentrando a atenção no

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filho, vivenciando intensamente a hospitalização, para, finalmente, reconstruir seu cotidiano, reorganizando-se após a alta.

N a situação brasileira atual, a família, em todos os estratos sociais, continua sendo mais e mais influenciada pelos profissionais da biomedicina. A política do Programa de Assistência à Família pelo Ministério da Saúde brasileiro é uma tentativa de alcançar aqueles segmentos da população até hoje marginalizados pelas políticas públicas e da biomedicina.

Independentemente deste avanço, que devemos reconhecer como positivo, a família é o local no qual é gestada uma visão própria da doença, influenciada pela biomedicina, mas ainda assim rodeada no contexto da experiência pessoal, familiar e fortemente vinculada às emoções e representações do meio.