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Os pobres / baixa renda

7.3 A equipe de enfermagem olha os tipos de familiares

7.3.5 As descuidadas, as que somem

Eram dezoito horas e cinqüenta minutos no posto de enfermagem, a auxiliar de quarto estava no balcão arrumando o material de nebulização, uma das auxiliares do plantão noturno estava sentada na cadeira ao lado do telefone. Como acontece no final de plantão, informalmente existe uma conversa entre “as do dia” e “as da noite”, relatando-se os acontecimentos relevantes. A auxiliar do dia falou:

“Foram duas da A embora, e as duas que ficaram estão sozinhas. A mãe do Ricardo (um bebê de cinco meses) sumiu hoje de manhã e até agora não deu mais as caras. Ela estava aqui cedo, mas quando fu i levar a mamadeira às onze horas, ela já tinha sumido, não falou para ninguém. Quando fu i trocar, ele estava de cocô até as orelhas, sinal de que deu banho e depois nem trocou mais. Mas deixa ela chegar amanhã, ela não perde por esperar, vou falar com ela (falando de forma enfática). Paulo (outro bebê sem a mãe, de dois meses) já está sozinho fa z dias, mas dele já sei, me programo porque sei que preciso fazer tudo, mas sair e não

avisar? "(Auxiliar de Enfermagem).

“Mãe que some”, mãe descuidada, mãe desleixada, mãe relapsa, mãe mal educada são, principalmente, aquelas mães que não assumem suas tarefas de cuidado: de estar no quarto ao lado da criança, fazer a higiene, trocar a fralda, dar o banho, a mamadeira,

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acalmar o filho, observar seus sintomas. Não fazer estes cuidados, são atributos negativos designados para as mães, para os pais que estão presentes e não fazem os cuidados, há outras formas de reprovação não explicitadas tão abertamente.

“Mães que somem” é designado para aquelas que saem, não avisam, saem e vão embora ou saem do quarto e perambulam por outros quartos da unidade ou outras dependências do hospital, deixando os bebês ou pré-escolares sozinhos nos quartos. Quando levam os filhos, não se preocupam com horário de medicação ou outros procedimentos.

“Descuidadas quando são relapsas, vão embora dizendo que têm outros filhos, que nem sempre é o caso, e se ficam, não param no quarto”

(Auxiliar de Enfermagem).

‘‘Outras somem, dizem que vão tomar banho e nem voltam mais. Tem uma criança grande aí que a mãe a internou no domingo e até agora ela nem telefonou para saber se está viva ” (Auxiliar de Enfermagem).

Uma forma mais grave é a mãe relaxada, que implica negligência e está sujeita à notificação do Conselho Tutelar.

Tem uma mãe relaxada, a mãe do ... (bebê de sete meses), ela me passa uma impressão ruim. A mãe do lado estava contando que ela tirou o oxigênio. Tenho, para mim, que ela está vendo que ele está melhorando e ela não quer que ele vá para casa. Ele, quando fo i para casa, não ficou nem quinze dias e voltou todo sujo, do catéter da traqueostomia voltava uma secreção horrível, sinal de que não cuidava em casa. (Auxiliar de Enfermagem).

As desleixadas estão enquadradas naquelas mães que fazem, mas não fazem dentro de um padrão estabelecido.

“As desleixadas são mais no sentido de que deixam suas próprias coisas desorganizadas, mas isto também está ligado à própria unidade que não tem estrutura para receber os familiares. Desleixadas também, porque dão banho e deixam a orelha suja, não escovam o dente da criança, é mais ligada à higiene mesmo ” (Enfermeira).

Quanto às situações comuns das mães que não cumprem com seus papéis, a equipe precisa “dar em cima”.

“Dar em cima é quando a gente tem que pedir par cuidar da veia, porque algumas não estão nem aí para ficar perto da criança” (Auxiliar

de Enfermagem).

Ou ainda “correr atrás”:

“Quando é hora da medicação, saem da unidade com a criança e a gente tem que correr atrás ” (Auxiliar de Enfermagem).

A forma mais comum é a tentativa de conversar, explicar, a fim de que a mãe assuma seus papéis. Uma auxiliar de enfermagem, explicando sua conduta para com a mãe ausente:

“Eu converso, pergunto porque ela está assim, porque a criança precisa da mãe, do carinho, quando eu tenho oportunidade, eu converso, porque ã noite é muito difícil” (Auxiliar de Enfermagem da noite).

Há as diferenças de posições:

“Eu digo brincando para elas: mãe, vou te dar uma surra, porque tu não pára na sala e elas começam a rir. Tu não pára na sala, o médico passa e tu não estás, tu sai toda hora, vou ser obrigada a te amarrar aqui. Eu brinco, mas digo: tal horário você tem que estar aqui, se tu sair, me avisa, mas tem outras que dão bronca” (Auxiliar de Enfermagem).

Como em outras situações já relatadas, quando o auxiliar dos quartos ou da medicação não consegue resolver com o “correr atrás”, “dar em cima”, conversar, explicar, utiliza-se a hierarquia chamando-se a enfermeira chefe ou a enfermeira supervisora. Tentar resolver a situação, sem apelar para esta hierarquia, pode ser desastroso, pois as atividades técnicas consomem tempo e concentração.

“Os conflitos entre os familiares e os funcionários ocorrem mais à noite e nos fins de semanas, porque a unidade fica sem enfermeira fixa. Então eles mesmos precisam resolver as situações, ficam sobrecarregados e perdem a paciência ” (Enfermeira).

Estes familiares não se enquadram dentro da visão de doença e cuidado da equipe, e desta forma, a relação está sujeita a atritos. A enfermeira é um recurso para contornar estas situações eminentes de atrito, revelando, assim, os recursos hierárquicos disponíveis. Na ausência desta, com as atividades técnicas que se sobrepõem, os auxiliares e técnicos têm dificuldade de conciliar situações.

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"Em situações extremas, recorre-se a recursos fora da instituição. Conforme uma informante, nas situações de negligência, comunica-se ao Serviço Social, que, por sua vez, notifica o Conselho Tutelar. Mas às vezes, nós mesmos ligamos direto aqui da unidade, às vezes não dá para esperar muito, a gente liga e logo eles estão aqui ” (Escriturária).

Há, assim, diferentes graus de mães que não cumprem o papel esperado, que é o de cuidar bem da criança. Nas situações de não cuidado, há desde as mães que são apenas desleixadas, até aquelas em que colocam a vida da criança em perigo, sendo o Conselho Tutelar comunicado com urgência, sem mesmo passar pelas instâncias hierárquicas.

7.3.6 Os estressados

A condição da família da criança internada é, na grande parte dos casos, enquadrada pela equipe de enfermagem em um perfil psicológico frágil. As mães, os pais, a família, são nervosos, revoltados diante de certas doenças, carentes de atenção, moles frente a determinadas situações.

Mais comumente, leva-se em conta que os familiares em geral, pelo fato de estarem atravessando uma situação de internação de um filho, estão estressados ou, o que pode ser quase um sinônimo, estão ansiosos ou nervosos, pode ser considerado como doença. A equipe, então, enquadra a experiência, ou seja, o sofrimento da doença (illness) do familiar, com a denominação de stress. O familiar está em uma situação anormal, está estressado.

"Umas são estressadas, são mais doentes que os filhos" (Auxiliar de Enfermagem).

O estresse ou a ansiedade do familiar é temido pela equipe de enfermagem, possuem causas e devem ser prevenidos, contornados, pois se sabe que são geradores de conflitos. Há diversas avaliações da situação, existem as mães que entram e saem do hospital estressadas. No entanto, entende-se que há causas específicas do estresse na unidade relacionadas ao tipo de distúrbio da criança que a família enfrenta, à fase da internação e ainda à situação que a família vivência em função de suas próprias dificuldades agravadas com a internação.

A situação de famílias que vivem no limite para enfrentar questões financeiras, de cuidado a outros membros, é apontada por uma auxiliar de enfermagem como situação de estresse que repercute na unidade.

"As mães estressadas, quando estão cheias de filho, casa para sustentar, porque não tem marido, com três a quatro filhos e ainda um doente. Aí

ela fica aqui, pensando nos outros em casa." (Auxiliar de Enfermagem).

Os familiares, no entendimento da equipe, podem estar muito estressados no momento da internação ou nos primeiros dias, no caso das situações de doenças agudas e, sobretudo, quando a criança ainda está com o diagnóstico a esclarecer.

"Quando a internação acontece à noite, quando eles não esperavam por isto, eles vêm bem agitados" (Auxiliar de Enfermagem).

"Quando é uma doença a esclarecer, aí elas ficam mais ansiosas, porque os médicos estão investigando o diagnóstico" (Auxiliar de Enfermagem).

No entanto, o stress pode surgir ou acentuar-se no decorrer da internação, a falta de perspectiva de melhora do quadro, aliada ao cansaço do familiar, são apontados pela equipe como causa.

‘‘Outro tipo de estressada é quando estão muito tempo aqui, e não vêem solução para a criança, aí ficam estressadas. Como é o caso da mãe de Pedrinho (caso de uma criança com insuficiência renal, internada há um mês, com grave peritonite, com piora do caso), ela está cada dia mais estressada. Primeiro ela falava com todos, agora ela já “correu com um estudante de . medicina ” e qualquer coisinha ela está questionando "(Auxiliar de Enfermagem).

Nestas circunstâncias, a enfermagem acompanha a experiência do familiar com a doença da criança, compreendendo que existe uma situação subjetiva, de sofrimento. A equipe vivência e acompanha esta experiência de sofrimento da doença, esta vivência lhe

confere um conhecimento de que há fases deste sofrimento. Este sofrimento pode

aumentar quando há dificuldade de comunicação entre a família e a equipe profissional que tem diferentes visões da doença.

A internação pode se prolongar com um diagnóstico a esclarecer, ou mesmo com um diagnóstico estabelecido, ocorrer a dificuldade de diálogo entre a equipe médica e a família, o que invariavelmente reverte em um comportamento que a equipe de enfermagem entende como estresse, ansiedade e que tem repercussão sobre as suas atividades, pois diante do que eles denominam de familiar estressado, há dificuldade de cooperação nos cuidados.

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Uma enfermeira, reportando-se às suas experiências tanto nas unidades de internação como na UTI e emergência, destacou:

"Depende muito do entendimento que os pais têm sobre a doença. Se eles estiverem bem cientes do que está acontecendo, eles entendem os motivos de certos cuidados, dos medicamentos que a criança está tomando, ficam calmos e assim colaboram mais nos cuidados " (Enfermeira).

Como já citado anteriormente, isto muitas vezes se constitui em uma grande dificuldade, os familiares que não compreendem a linguagem estranha, em um mundo já estranho, em uma situação de perigo, de doença, o que é observado e mencionado pela equipe de enfermagem.

Em uma segunda-feira, acompanhei uma situação que pode ser exemplo. No quarto E, deparei com o pai de Cláudio com dez anos de idade, que parecia estar muito bem, tinha um olhar meigo e sorriso fácil, andando entre o quarto e a copa dos pacientes onde se distraía vendo TV. Tinha internado no dia anterior, num domingo, através de um atendimento na emergência externa. O pai tinha uma aparência que destoava muito dos outros pais que transitam na unidade. Vestia roupas menores do que seu tamanho, roupas que pareciam terem sido doadas, com barba comprida e dentes precários, falando muito. Depois de apresentar-me a ele, logo disse:

"Não sei o que estamos fazendo aqui, ele veio para cá com uma dor no lado (tórax esquerdo), a dor passou, mas daí disseram que a traquéia está torta e por isso vão fazer exames para descobrir o que é. Só que eu acho que se ele cresceu assim, e se viveu até agora, pode continuar vivendo assim. Não quero que fique picando ele" (Pai).

Perguntei-lhe sobre a mãe do menino e ele disse:

"Nós moramos ... (um município vizinho) e temos mais duas meninas, uma de oito e outra de cinco anos e ela está cuidando delas. Eu já fiquei aqui durante esta noite, mas espero não ficar hoje. Mas se precisar ficar, eu mesmo fico, porque ela (a esposa) não sabe perguntar as coisas" (Mãe).

Durante todo o tempo que permaneci no quarto, observei que ele procurava inteirar- se do que ocorria com o filho, questionou a medicação que a auxiliar trouxe, perguntou o resultado dos sinais vitais após a verificação. Depois de algum tempo, quando eu estava na sala de curativos, todos foram surpreendidos pelos brados do médico no corredor:

"Vai para a direção, entenda-se com eles, você está atrapalhando" (Médico).

Criou-se um "zum-zum" na unidade, me informaram que o médico, durante a visita, pediu um teste de HIV e de tuberculose, no que o pai recusou, pedindo a alta do filho. Segundo a equipe:

"Deste ontem, ele está nervoso e questiona as coisa’’ (Auxiliar de Enfermagem).

A enfermeira da unidade acompanhou-o na direção, mais tarde, voltei ao quarto em

tom o do meio dia, perguntando-lhe: "Bom! E o que fo i resolvido com a direção?"

"Lá na direção disseram que 'não te entendemos, tem tantos pais que pedem pelo amor de Deus uma vaga, e seu filho tem esta vaga e você se recusa a fazer os exames?' Eles disseram que se eu não deixar fazer os exames, comunicam o juiz. Só que aí me ferro, o juiz não sustenta meu filho, não cuida, e numa hora destas, é ele que manda? Será que dá para ver nestes exames o que ele tem? Eu só queria livrar ele destes exames" (Pai).

As estudantes de medicina garantiram que foi explicado a ele a finalidade do exame, e que, na verdade, ele não quis que fosse feito o teste de HIV e de tuberculose, sem saber, no entanto, a causa da recusa. A situação foi sendo resolvida aos poucos, a equipe de enfermagem, temerosa com o comportamento do pai, não avançava sem sua permissão, foi tentar colher o sangue, ele pediu tempo para pensar, foi lhe dado o tempo e, no meio da tarde, ele permitiu. O médico deu alta em seguida para evitar mais conflitos de acordo com a vontade do pai, com retomo para o ambulatório. Assim, o entendimento dos pais sobre a doença, sobre a necessidade de cuidados específicos tem um importante papel.

Nesta situação apresentada, duas questões se sobrepõem diretamente, a primeira, relacionada ao entendimento de saúde e doença trazido pelo pai, diferente da equipe profissional. A segunda questão está relacionada com o próprio papel do pai como chefe de família, que decide por todos os membros, diante da internação, perde seu poder e controle sobre seu filho e toda a situação. Contudo, ele resiste, questiona, contesta, assim, toma-se estressado, alguém que está atrapalhando que apresenta uma aparência estranha, diferente , que suscita pré julgamentos e influi na relação da equipe .

Há as situações nas quais a família, após longo período de doença, domina e compartilha o conhecimento dos profissionais sobre o distúrbio. Assim, esta consegue

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discernir e exigir providências na unidade. No entanto, nestas situações, o questionar também é enquadrado como ansiedade, um relato efetuado no livro de ocorrência demonstra a posição de membros da equipe.

"Internou paciente da oncologia com 770 de leucócitos. A mãe estava muito ansiosa, veio ao posto de enfermagem e disse que estava preocupada, pois o filho deveria estar no isolamento. Depois de algum tempo, voltou novamente, dizendo que seu filho teria que ser removido, pois tinham muitos pacientes de BPN (broncopneumonia). Tentamos acalmá-la mostrando que todos estes pacientes tinham ABT (antibioticoterapia). A mãe, então, sem nos comunicar, fo i na E.E. (Emergência Externa) e depois voltou dizendo que falou com a Dra ... e que esta disse que seria muito perigoso a criança permanecer na nossa unidade. Expliquei-lhe que ela não deveria ter feito isto, que a norma é primeiro se dirigir aos funcionários da unidade. Comuniquei então o fato à enfermeira, que chegou e levou mãe e a criança para o isolamento. E a segunda vez este mês que acontece dos pais irem diretamente na Emergência, mais uma vez o funcionário fo i desvalorizado, se passou por cima das normas" (Relato assinado por três funcionários auxiliares

de enfermagem da noite no livro de ocorrência).

Mais tarde, a enfermeira que viveu este episódio mencionou que a mãe, uma advogada, cuja filha tinha leucemia, reintemava no hospital com freqüência, estando ciente de que com esta taxa de leucócitos ela precisaria ser isolada, o que ocorria nas internações anteriores.

Estar estressado se constitui assim, uma marca para os pais que têm filhos internados. Uma informante argumenta:

"Os pais sempre ficam muito estressados. Você tem filhos? (Perguntando para mim) Então sabe como é, quando meus filhos ficavam doentes, olhe ... ficava muito mais estressada do que quando eu mesma estava doente" (Enfermeira).