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A representação do nascimento na icção: imagens inculcadas

Deinição de relato de parto

3. As representações do nascimento

3.1. A representação do nascimento na icção: imagens inculcadas

A mídia, em maior ou menor escala, acompanha os indivíduos por toda sua vida e em todos os locais veiculando às massas a ideologia do poder hegemônico. É com o auxílio das experiências represen- tadas na mídia que construímos nossa realidade, bem como o saber individual e coleivo, os quais orientam e interpretam comportamentos sociais. O resultado, em muitos casos, são atos e falas incor- porados e naturalizados.

Ao levantar algumas representações do nascimento em textos midiáicos desinados a diversas faixas etárias, veremos que ao longo de toda nossa biograia somos expostos a imagens e textos com base nos quais construímos ‘nossa própria’ ideia de ‘nascimento’. A mídia, portanto, nos apresenta e rea- presenta ao longo de toda nossa existência ideias que desempenham um papel signiicaivo na cons- trução individual e coleiva do que entendemos por ‘nascer’.

A seguir escolhemos alguns exemplos de obras de icção da grande mídia dirigidos a públicos diferentes para ilustrar a representação do nascimento no Brasil e demonstrar como, desde a mais tenra infância até a vida adulta, inculcam-se ideologias, representações e modelos dominantes de estruturas sociais que reletem as relações de dominação e, consequentemente, os valores e caracterísicas do poder hegemônico: androcêntrico, capitalista, tecnológico, cieníico, medicalizado, insitucional.

Desinada ao público infanil, a revisinha da Turma da Mônica apresenta o que signiica ‘nascer’. A ira abaixo retrata o nascimento hospitalar em que o pai conhece o bebê pelo vidro do berçário. Apesar de o texto airmar que o pai “desde que a gente nasce, tá semple do nosso lado”, a imagem não con- diz com as palavras escritas, pois o pai não está posicionado ao lado do ilho, sequer está no mesmo ambiente que o bebê. Pelo contrário, o pai está distante e impedido de se aproximar. Nesse ambiente, os humanos são controlados pela insituição – maternidade e hospital – representada pela simpáica imagem da enfermeira pedindo (mandando) silêncio à esquerda.

Texto 01. Quadrinho reirado de Souza (2014)

Para o público adolescente, a novela Malhação (Rede Globo, 2010) de classiicação livre, representou um nascimento por parto durante o qual uma adolescente dá à luz em posição deitada, com uma igu- ra masculina que empurra sua barriga e dirige seus puxos. Além disso, durante a ação, a adolescente expressa ‘medo de morrer’.

Ainda na esfera da icção televisiva, para o público adulto, temos as representações do nascimento pelas telenovelas, as quais sistemaicamente transmitem “um conceito, sem base cieníica, de que a cesárea é um procedimento mais seguro que o parto normal, pela condição de ser programado e livrar a mulher do sofrimento imposto pela dor do trabalho de parto.” (Pereira et al, 2011, p. 5). Nesse cená- rio, devido ao alcance e a penetração do gênero e com o objeivo de mostrar como a “mídia inluencia na formação de opinião da massa e a necessidade de mudança dessa forma errônea de apresentar o ato de parir e sua relação cultural e emocional”, Garbulho (2012) reuniu duas coletâneas de cenas de nascimentos em telenovelas e seriados brasileiros.

As cenas reunidas por Garbulho (2012) foram descritas por Rios (2013):

Casa das 7 mulheres (2003) – Parto normal: Anita Garibaldi está em trabalho de parto junto com seu marido, em um local sem recursos, onde não há outra opção a não ser ter seu ilho por parto normal com ajuda da arqui-inimiga. Muito suada, respiração de “cachorrinho”, discute com a parteira entre um gemido e outro, puxos dirigidos – “faça força, faça força, isso, isso, força, tá coroando” – pai é irado da cena e tem seu ilho deitada, com a ajuda de um kristeler (empurrão na barriga) tão bem aplicado como só uma inimiga pode fazer. Frase de efeito: “meu ilho não quer nascer! estou morrendo de dor! vou morrer com nosso ilho na barriga!”.

Pantanal (1990) – Parto normal: Maria Marruá é uma mulher pantaneira que decide ter o ilho sozinha em uma canoa lutuando no rio, posição deitada, empurrando a barriga com as mãos. Frase de efeito: “Nasce que eu não vou te carregar comigo pro resto da vida. Deus, me livra desse parto que eu não pedi e não quero, eu não quero, eu não quero – grito de horror que acorda toda a selva – eu não quero, eu não quero, ahhhhh, ahhhhh ”

História de Amor (1995) – Cesariana: Protagonista cai da escada e entra em trabalho de parto

prematuro, muito medo de a ilha nascer pelo caminho, muita dor, respiração cachor- rinho, “temos que correr, depois que rompe a bolsa o bebê não demora a nascer”,

pega umas roupinhas e a carteirinha do plano de saúde e corre para a maternidade, mãe é carregada no colo, chorando e com dor. No hospital:

- Que injeção é essa? (pegando acesso venoso) - É pra você relaxar (diz a enfermeira sorridente)

- Tô com medo, tô com muito medo (gemidos, respiração ofegante)

- Não se preocupe, o médico já examinou, ela está sendo preparada para a cesariana (diz a mãe para o marido)

É levada sozinha para o Centro Cirúrgico, deitada na maca. Começa a cirurgia cesaria- na, ela já está calma, respirando tranquilamente, linda e maquiada. Reiram o bebê segurando pelos pés, de ponta cabeça (que dó, que dó!!), injeção de sedaivo na mãe, ela dorme sem nem ver o bebê.

Por amor (1997) – 2 Cesarianas: Família rica protagonista, Eduarda internada no hospital, rompe a bolsa e o médico já lança a pérola:

- “Nós vamos ter que antecipar sua cesariana, Eduarda, para hoje, não podemos mais esperar, meu bem, o trabalho de parto está começando e sua bolsa se rompeu, como você sabe o bebê está sentado.

Então a mãe da gestante, que também está grávida diz:

- César, quero antecipar minha cesariana também, algum problema?

- Não, não, já tá com 40 semanas, podemos fazer hoje. Vamos lá Eduarda, em menos de 1 hora você vai estar com seu ilho nos braços, pensa nisso!

Mãe e ilha com suas camisolas de ceim, andam de mãos dadas, pelo corredor do hospital.

- Calma Eduarda, tá tudo bem, o Dr. Morei já foi avisado e tá vindo pra cá - Mas você não disse que era urgente?

- Urgente sim, mas não urgeníssimo, o Dr. Morei dá pra esperar, só não dá pra espe- rar é a volta do Marcelo (o pai).

No vesiário, os médicos se paramentando, conversam: - Ela tá muito nervosa por estar sem o marido…

- Pelo amor de Deus, marido foi necessário há 9 meses atrás, agora não. Nada de ma- rido, agora nós é que temos que estar aqui.”

São feitas as cesarianas ao mesmo tempo, nascem 2 bebês lindos que vão direto para o colo das mães lindas, maquiadas e sorridentes.

Vale notar que, em Por Amor (1997), o nascimento do ilho da protagonista (Gabriela Duarte) e o de sua mãe (Regina Duarte) foi cirúrgico, como relatado acima. Porém, a telenovela representou outro nascimento como parte da trama, o da antagonista (Viviane Pasmanter), que era louca e obsessiva. Esta teve parto normal de gêmeos. Em outras palavras, a mulher invejosa, inconformada, cruel, dese- quilibrada e desaiadora teve um parto, e a mocinha meiga, correta, obediente, sofredora e boazinha, uma cesariana.

Representação similar ocorreu em Pantanal (1990). Além do parto dolorido, indesejado e carregado de casigo divino relatado acima, houve, pelo menos, mais uma representação de parto natural, em que a protagonista, Juma Marruá, tem sua ilha com enorme prazer em um nascimento quase orgásico e

com total controle da situação, sozinha à beira do rio, de cócoras. Porém, a personagem Juma, inter- pretada por Crisiana Oliveira, era, assim como a antagonista Laura de Por Amor (1997), uma jovem não conformista e fora dos padrões. Juma fora criada como selvagem pela mãe e possuía fama de transformar-se em onça.

A parir da consolidação dos elementos das representações do nascimento nas seis cenas de nascimen- to descritas acima é possível airmar que, para as telenovelas e seriados, o parto é necessariamente: algo perigoso que precisa ser controlado ou dirigido muitas vezes por igura masculina; o parto requer intervenções ísicas no corpo da mulher; o parto ocorre na posição deitada e, frequentemente, reque- rer uma cirurgia salvadora.

A representação da gestante, nesse cenário, é de uma mulher vulnerável e descontrolada, que está entre a vida e a morte, teme pela própria vida e a de seu ilho, não sabe o que fazer, volta-se para o mundo exterior em busca de orientação, socorro, salvamento e/ou de alguém que tome decisões por ela, sendo dissociada do seu corpo e não conectada com sua força interior. Por outro lado, se a mulher que está sendo representada tem consciência de sua força interior, toma as rédeas de seu parto e vai parir sozinha, é porque se trata de uma personagem louca ou selvagem.

A parir das imagens acima, vemos como a mídia brasileira, principalmente a televisiva, representa e organiza o saber individual, o imaginário social, bem como transmite, reforça e difunde a ideologia do poder hegemônico.

Não faremos uma análise da representação do nascimento em cada um dos demais países abordados nesta pesquisa, mas a ítulo de exemplo ideniicamos diversas cenas de nascimento sem que, neces- sariamente, o parto venha atrelado à ‘loucura’ ou ao ‘não conformismo’ da personagem ou a ‘evento arriscado’.

É o caso de uma das séries mais populares da história da TV americana, Friends, de David Crane. O parto – pélvico e sem pânico – da personagem principal Rachel (Jennifer Aniston) foi retratado como tendo durado mais de 20 horas (Carne, 2012). Na Austrália, diversas séries de sucesso sobre médicos, retrataram cenas de parto normalmente: The Flying Doctors, GP, A Country Pracice e All Saints. Na mais famosa e longa série britânica3, Neighbours, de Reg Watson, diversas personagens dão à luz via vaginal. Uma que chama atenção é a personagem Daphne Clarke (interpretada por Elaine Smith), a qual, na trama, morre logo após o parto, mas devido a acidente de automóvel. Outra personagem, Libby Kennedy (Kym Valenine) também morre e deixa um bebê novinho. A causa da morte, nesse caso, foi uma queda de cavalo. A série durou de 1987 a 2012 e representou 18 nascimentos, 16 dos quais vaginais. As cesarianas deveram-se a: trabalho de parto prematuro e presença de mecônio com sofrimento fetal. No segundo caso, o risco da cirurgia é ressaltado na cena, pois a mãe sofre hemorra- gia e precisa de nova cirurgia após a cesariana. A escolha do lugar do parto também foi abordada em Neighbours. Uma das personagens, Phoebe Bright (interpretada por Simone Robertson), criou polêmi- ca na Grã-Bretanha em 1993 ao lutar pelo direito de parir em cima da lápide de seu amado.

No Reino Unido, atualmente, a série de maior sucesso chama-se Call the Midwife (Chame a parteira), criada por Heidi Thomas, de inspiração autobiográica. Os episódios vão ao ar em horário nobre na BBC: domingo às 21h. A série, que estreou em 2012 e também passa em Portugal, retrata a vida de um grupo de parteiras na década de 50.

3.2. A representação do nascimento dos ilhos de