• Nenhum resultado encontrado

Deinição de relato de parto

2. A seleção do problema social

Quando uma mulher passa por uma cesárea por ‘falta de dilatação’ sua ilha terá 6 vezes mais chance de dar à luz por cesárea.1 (Odent, 2004, p. 22)

Como vimos no capítulo anterior, dentro da proposta metodológica sugerida por Chouliaraki & Fair- clough (1999, p. 60) e desenvolvida por Fairclough (2003), a primeira etapa de um estudo críico do discurso é a seleção do problema social, tema deste capítulo.

A Análise Críica do Discurso oferece o suporte cieníico necessário para os estudos sobre o papel do discurso na instauração, manutenção e superação dos problemas sociais e, portanto, é a escolha epis- temológica que mais se coaduna com os objeivos deste estudo que se propõe a examinar a represen- tação das idenidades (mulheres, companheiros, doulas, médicos, obstetrizes, parteiras, enfermeiras) no discurso dos relatos de parto e a ideniicar e analisar as marcas ideológicas nos relatos de parto que desestabilizam – ou reforçam – o poder hegemônico.

Um problema social origina-se em fatos sociais2 e possui consequências sociais; porém, determinar o que é um problema social é essencialmente subjeivo, pois o que é considerado um problema em uma sociedade, pode não ser em outra. Para ampliar a compreensão e alcançar uma dimensão maior do problema social selecionado, invesigamos relatos de parto normal após cesárea em duas sociedades que consideram o aumento no número de nascimentos cirúrgicos um problema social: a brasileira e a estadunidense.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma taxa de cesariana superior a 10-15% não se jus- iica do ponto de vista médico, ou seja, não impacta posiivamente as taxas de mortalidade materna e neonatal (Ye et al, 2014).

No Brasil, o índice de nascimentos cirúrgicos cresceu 400% em quarenta anos: de 14,5% em 1970 para 52% em 2010. Atualmente, mais da metade de todos os nascimentos no país acontece por cesariana. Ao todo são cerca de 3 milhões de nascimentos por ano (Ministério da Saúde, 2011). Esima-se que só o Sistema Único de Saúde (SUS) realize, por ano, cerca de 400 mil cesáreas desnecessárias (Biancarelli, 2014, 18 de setembro), isto é, sem indicação clínica.

As consequências do alto número de procedimentos desnecessários são graves. Além dos prejuízos humanos, – quatro vezes mais risco de infecção puerperal, três vezes mais risco de mortalidade e mor- bidade materna, prematuridade iatrogênica, baixo peso, pior resultado na amamentação – , nascimen- tos cirúrgicos em excesso estão associados ao aumento dos custos de inanciamento público da saúde, pois demandam maior tempo de internação (24h no parto e 72h na cesárea) e recuperação, implicam maior índice de readmissões, maior demanda por serviços médicos e de enfermagem, maior consumo

1 When a woman has a caesarean for ‘failure to progress’ her daughter has a risk of giving birth by

caesarean muliplied by 6”

2 Na visão de Durkheim (2003), fatos sociais são modos de agir, pensar e senir que exercem força sobre os indivíduos. São caracterizados pela coerciividade (os fatos são impostos por padrões culturais e obrigam os indivíduos), exterioridade (fatos sociais são preexistentes ao indivíduo) e generalidade (os fatos existem para uma coleividade ou grupo).

de medicamentos etc., recursos esses que poderiam ser redistribuídos a outras áreas do sistema de saúde (Faúndes & Cecai, 1991; Shearer, 1993; Ministério da Saúde, 2012, FIOCRUZ, 2014).

De efeitos complexos e desdobráveis, os impactos e ônus para o sistema de saúde e para a sociedade não se encerram com a conclusão do procedimento, pois dele também decorrem, para a mulher, “al- terações à saúde em longo prazo, como diabetes, hipertensão, obesidade e alterações epigenéicas com impacto transgeracional, com consequências para a vida pessoal e familiar” (Ministério da Saúde, 2012, p. 375) e para a criança “maior ocorrência de síndrome metabólica, asma, diabetes mellitus ipo 2, dislipidemia, hipertensão arterial, doença cardiovascular e obesidade” (Fiocruz, 2014).

Apesar de todos os riscos e prejuízos mencionados acima, houve um aumento progressivo de cirur- gias em quase todos os países, embora não de forma homogênea (Barbosa et al, 2003). “Nos Estados Unidos, por exemplo, cerca de 26% dos bebês nascem por cirurgia. Na maioria dos países do Ocidente e da Europa, tais como Reino Unido, França, Alemanha, Suíça, Hungria e também na Austrália e Nova Zelândia, pelo menos um em cada cinco bebês nasce de cesariana3” (Odent, 2004, p. 6).

Nesse aumento, o Brasil se destacou, e a proporção de cirurgias coninua ascendendo, principalmen- te no setor de Saúde Suplementar (Ministério da Saúde, 2012), isto é, nas maternidades e hospitais conveniados4 com o SUS e nas insituições pariculares. Segundo a pesquisa Nascer no Brasil, no Setor Suplementar – onde são atendidas as mulheres de maior escolaridade e maior renda – a taxa de cesá- reas é de 88% (Fiocruz, 2014).

Entre os fatores associados ao aumento de cesáreas estão “melhor acesso aos sistemas de saúde, maior disponibilidade de tecnologias, melhoria das técnicas cirúrgicas e anestésicas, as ‘preferências’ dos provedores de cuidados e de pacientes por uma ‘abordagem tecnocráica’ e as percepções sobre a segurança de certos procedimentos” (Ministério da Saúde, 2012, pp. 374-5). Segundo o ACOG (Ame- rican Congress of Obstetricians and Gynecologists), o aumento foi impulsionado por uma série de mu- danças no contexto da gestação e parto e resultou de fatores como: a introdução da ultrassonograia e outros ipos de monitoramento fetal eletrônico (Ugwumadu, 2005); a diminuição de partos vaginais de bebês pélvicos e a redução do uso de fórceps (ACOG, 2010). Menacker & Hamilton (2010) relatam que, em 2006, a cesariana foi o procedimento cirúrgico mais realizado nos hospitais americanos e destacam algumas razões para que isso ocorresse: mudanças nas caracterísicas sociodemográicas (e.g. aumento da idade materna), padrões de práica médica, escolha materna (Williams, 2008), orien- tações conservadoras de práica médica e pressões jurídicas (Murthy et al, 2007). Outros fatores que também impulsionaram, em parte, a ascensão das cesáreas, segundo Ugwumadu (2005, p. 837), foram “o aumento do monitoramento eletrônico do feto, pressão feita pelos usuários dos sistemas de saúde para salvar bebês pequenos, mesmo os de baixíssima viabilidade, temor de sofrer ações judiciais, di- minuição do conhecimento sobre como realizar partos vaginais que necessitam de intervenção e, no Ocidente, escolhas baseadas no esilo de vida ocidental5”.

3 In the US, for example, about 26 per cent of babies are born by caesarean. In most Western and coninental

European countries, such as the UK, France, Germany, Switzerland, Hungary, and also in Australia and New Zealand, at least one in ive babies has a caesarean birth.

4 Maternidades e hospitais conveniados são as insituições pariculares que recebem recursos do SUS. 5 The rising rate has been driven at least in part by our reliance on electronic fetal monitoring, pressure from

health consumers to salvage small babies even at the very margins of viability, fear of liigaion, decreasing experise in operaive vaginal deliveries, and, in the West, lifestyle choices.

O problema social selecionado para esta pesquisa está diretamente ligado à alta dos nascimentos ci- rúrgicos, podendo ser considerado causa e/ou consequência dessa alta. No Brasil, em paricular, o aumento do número de cesáreas está relacionado, como detalharemos mais abaixo, com um número expressivo de cesáreas mal indicadas no sistema de saúde suplementar, isto é, nas insituições (hospi- tais e maternidades) pariculares conveniadas (i.e. que recebem recursos públicos) e não conveniadas (i.e. que não recebem recursos públicos) com o SUS (Poter et al.,2001).

O problema social selecionado é a falta de correspondência entre o ipo de nascimento desejado e o ipo de nascimento obido. Ou seja, a dissonância existente entre o desejo de parir com o número de desfechos cirúrgicos. Para invesigar o problema, optamos por estudar o discurso dos relatos de Parto Normal Após Cesárea (PNAC e VBAC, na sigla em inglês, Vaginal Birth Ater C-secion) escritos por mu- lheres, ou seja, buscaremos a compreensão do problema social e as possibilidades de transformação em potencial a parir da voz não mediada das próprias mulheres em seus relatos de VBAC.

A incompaibilidade entre o preferido e o alcançado foi um dos enfoques da pesquisa Nascer no Brasil (Fiocruz, 2014). Foi constatado que a maioria absoluta das primíparas (72%) deseja parto normal logo que engravida, porém, em mais da metade dos casos (52%), os nascimentos são por cesárea (Fiocruz, 2014). A pesquisa revelou ainda que, em média, 28% das mulheres brasileiras preferem cesariana des- de o início da gravidez, percentual maior que em outros países.

Todavia, para compreendermos melhor o problema social é necessário desconstruir a média separan- do a preferência por cesariana nos setores público e privado e por número de ilhos. Abaixo reproduzi- mos dois gráicos da pesquisa Nascer no Brasil que ilustram a preferência no início da gestação, a pre- ferência ao inal da gestação e o percentual de nascimentos cirúrgicos. O primeiro gráico demonstra o processo de decisão em primíparas e o segundo, em mulíparas.

Figura 01. Figura: Gráico reirado de Fiocruz (2014)

Enquanto no setor público, a preferência por cesárea permanece praicamente inalterada ao longo da gravidez (15%), no setor privado (atendimento a mulheres que possuem maior renda e maior escolari-

dade), o percentual de gestantes que no início da gestação airmam preferir cesárea é 36,1% e chega a 67,6% ao inal da gestação. A minoria (32,4%) que coninuava a preferir parto normal e que, por estar no grupo de maior renda e maior escolaridade, supostamente poderia reunir condições de efeivar sua preferência, tampouco teve seu desejo respeitado, sendo que o índice de cesáreas chega a 90% na rede paricular. Os percentuais da preferência por cesárea são mais altos em mulíparas, tanto no setor público como no privado, o que signiica que após a primeira cesárea, a ‘preferência’ por cesárea aumenta.

Figura 02. Figura: Gráico reirado de Fiocruz (2014)

Segundo a literatura médica, as grávidas no Brasil são convencidas, durante a gestação (Fiocruz, 2014), com base em moivos inexistentes ou irreais (Poter et al, 2008), a se submeter à cesárea. Há uma cul- tura insituída de que a cesárea é o melhor meio para se dar à luz (Fiocruz, 2014). Apesar de o Brasil ser recordista absoluto em cirurgias eleivas, a tentaiva de convencer a mulher a se submeter a uma cesárea sem indicação clínica não é exclusividade de proissionais brasileiros.

Em linha com o problema social selecionado, vale destacar a conexão entre a ‘preferência’ pela cesárea e as altas taxas de violência obstétrica (violência comeida contra mulheres pelos proissionais da saú- de em razão de gestação e/ou nascimento), que também desempenharam um papel moivador nessa pesquisa. Os dados atuais de violência obstétrica contra mulheres brasileiras antes, durante e após o parto revelam que uma em cada quatro mulheres brasileiras admite ter sofrido algum ipo de violência obstétrica (Fundação Perseu Abramo & Sesc, 2010). O não atendimento da preferência da mulher com base em ameaças, meniras, engodo não deixa de ser uma forma de violência moral à qual a mulher sucumbe por impossibilidade de resisir à autoridade do médico, dos enfermeiros, das insituições e ao poder dos discursos operados na sociedade (e.g. discurso hegemônico que representa a cesárea como sendo de baixo risco, rápida, conveniente, chique, assépica, tecnológica etc.)

Como já airmado, o problema selecionado ocupa-se da falta de correspondência entre o ipo de nas- cimento desejado e o ipo de nascimento obido, quando o nascimento desejado é vaginal e o obido, cirúrgico. E o que torna esse problema um problema social? São duas as caracterísicas essenciais

atribuídas a um problema qualiicado como social: a capacidade de despertar um senimento de indig- nação e a de representar uma ameaça à coleividade (Vila Nova, 1999).

O problema social escolhido desperta o senimento de indignação por resultar em injusiça. É injusto que em um momento tão transformador as expectaivas e preferências legíimas da mulher não sejam atendidas. É injusto que ela sofra violência moral ou ísica durante o parto. É justo que uma mulher tenha vontade de parir e espere parir, principalmente se essa expectaiva e preferência vão ao encon- tro das recomendações para a atenção obstétrica, entre as quais, as da Organização Mundial da Saúde (OMS), as políicas públicas do Ministério da Saúde (MS) e os achados da Medicina Baseada em Evidên- cias6 (MBE). É justo esperar que a mulher encontre apoio para parir. Portanto, a indignação despertada pela quebra das justas expectaivas das mulheres – tendo em vista o ‘convencimento’ constatado ao longo da gestação –, é uma das forças que impulsionaram a realização deste estudo.

A segunda caracterísica de um problema social é ele representar uma ameaça a um grupo ao deses- tabilizá-lo. O nascimento cirúrgico priva a mulher de um processo corporal essencialmente feminino, comum a todas as mulheres que dão à luz e relevante a todos os membros da sociedade, já que todos passamos pelo nascimento. Ao transformar a preferência da mulher por um parto vaginal em um des- fecho cirúrgico, opera-se uma transformação na biograia daquela mulher e no universo comparilhado por todas as mulheres. Marin (2001, p. 4) destaca como os processos corporais femininos [re]únem as mulheres e, ao mesmo tempo, como as mulheres são afetadas pela visão da ciência sobre seus pro- cessos corporais:

Ainda que as mulheres na nossa sociedade não formem uma comunidade presencial ou verbal, todas as mulheres comparilham algumas experiências: todas são deinidas como ‘mulher’, uma dentre as duas categorias de gênero a que cada indivíduo dentro da sociedade pertence; todas (algumas mais que outras, algumas com mais consciên- cia que outras) ocupam posições de subordinação em relação aos homens, se não no trabalho, na família, e se não na família, então pelo menos no imaginário cultural ge- ral; todas possuem corpo de mulher e experimentam processos corporais comuns, tais como menstruação e parto [...] ; todas são afetadas de uma forma ou de outra pela visão médica e cieníica sobre os processos corporais femininos7. (grifo nosso)

Não ter sua preferência atendida desestabiliza as mulheres de várias formas, podendo levar a seni- mentos de frustração, depressão e incapacidade, à diiculdade de estabelecer vínculo com o bebê, problemas de amamentação, problemas conjugais, como depreendemos da fala abaixo:

6 A Medicina Baseada em Evidências é um movimento dentro da medicina que prega que toda práica médi- ca deva ser orientada pelo método cieníico, ou seja, pela aplicação das descobertas oriundas dos estudos cieníicos sistemáicos. A Obstetrícia, por exemplo, é um dos muitos ramos da medicina em que diversas práicas (e.g. parto em decúbito dorsal, fórceps, cortes, manobras de pressão de útero) foram introduzidas sem base em provas cieníicas.

7 Even though women in our society do not form a face-to-face or word-to-word community, they do share some experiences: all are deined as ‘women’, one of two usually permanent gender categories to which everyone in our society must be assigned; all (some more than others, some more aware than others) occu- py subordinant posiions to men, if not in their jobs, then in their families, and if not in their families, then in general cultural imagery and language; all have female bodies and experience common bodily processes such as menstruaion and childbirth (…); all are afected in one way or another by medical and scieniic views of female bodily processes (Marin, 2001, p. 4).

The story of my younger daughter Sophie’s birth starts really with the birth of my elder daughter Hannah, 3 and a half years ago. It was unfortunately not a great experience. I won’t go in to detail (…) but basically I felt bullied, judged, traumaised and experien- ced the cycle of medical intervenion I have since read much about. I was let feeling deeply shocked, like I had completely lost control and had somehow ‘failed’ as a wo- man to birth my baby successfully.

It took a long ime to get over and I experienced post traumaic stress and depression. My relaionship with my husband sufered and I inally started to get help to process what had happened about a year later.” (The Birth Trauma Associaion, Karen’s Story, 2014)

Afeta também aquilo que a comunidade feminina comparilha, transmite e conhece, reirando o nasci- mento do universo feminino, reirando das mãos das mulheres a faculdade de falar sobre a parturição e de aprender sobre o nascimento com outras mulheres, ações que os relatos de parto objetos deste estudo de certa forma ajudam a recuperar.

Ao buscar examinar como os sujeitos envolvidos no universo do nascimento são representados pela linguagem dos relatos de parto normal após cesárea e ideniicar as marcas ideológicas nesse discur- so, objeiva-se compreender e analisar as relações de poder inscritas nas narraivas de mulheres que alcançaram o parto desejado. ‘O que marca a experiência de cesárea?’, ‘E a experiência do parto nor- mal?’, ‘Como a preferência foi alcançada?’, ‘Quais os sujeitos envolvidos?’, ‘Quais as relações de poder entre eles?’ e ‘Quais as ideologias presentes no discurso?’ foram algumas das perguntas que surgiram ao longo do desenvolvimento desta tese.

Por im, não desconsideramos que o descompasso entre a preferência por um parto normal e o desfe- cho cirúrgico e a posterior busca pelo VBAC relacionam-se com outros problemas sociais (e.g. ausência de visibilidade, objeiicação e passividade da mulher na sociedade) estando a condição da mulher no nascimento releida em um cenário maior de desigualdade de direitos entre gêneros, cenário esse no qual a mulher é sujeita a práicas sociais condicionadas a padrões naturalizados e reforçados por de- terminações culturais, jurídicas, médicas, sendo o nascimento tal como construído hoje um dos muitos preços que a mulher paga por ter nascido mulher. Assim, este estudo insere-se na questão feminista como projeto políico que vai além da busca da compreensão dos mecanismos de opressão e domina- ção, almejando contribuir para o abalo das hegemonias com o objeivo de transformar as relações de gênero e poder.