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Deinição de relato de parto

4. O contexto do nascimento no Brasil e seus paradoxos Para compreender o discurso dos relatos de parto nos termos da análise críica do discurso, é impres-

4.3. O paradoxo do discurso médico: jusiicaivas médicas nada cieníicas

4.3.5. Uma vez cesárea sempre cesárea

“Uma vez cesárea, sempre cesárea9” foi uma sentença proferida, pela primeira vez em 1916, por Ed- win Cragin. Segundo Cragin (1916), mulheres que sobrevivessem a uma primeira cesárea, não seriam candidatas a ter um parto vaginal posterior. Até então, cesáreas eram feitas para salvar a vida da mãe “exausta, desidratada, cetóica, em muitos casos, piréica, delirosa e moribunda10” (Ugwumadu, 2005), pois, segundo o próprio Cragin, tratava-se de uma cirurgia radical (‘a radical obstetric surgery’). Porém, a fala de Cragin ganhou conotação diversa e ainda hoje é usada como uma jusiicaiva poderosa para uma nova cesárea. A airmação impera na cultura popular, além de ser usada pelas áreas da obstetrícia e de atenção ao parto no Brasil (Freitas et al, 2005).

Este úlimo exemplo foi selecionado dentre as jusiicaivas populares para cesárea principalmente por- que a realização de uma cirurgia cesariana anterior ‘foi o segundo moivo da preferência pela cesárea’, segundo Perpétuo et al (1998, p. 113). Ou seja, uma vez operadas, as mulheres estudadas passavam a declarar a ‘preferência pela cesárea’, muito mais no senido de terem incorporado a jusiicaiva médi- ca de que não é possível parir após uma cirurgia do que no senido de realmente preferirem uma cirur- gia (Perpétuo et al, 1998; Barbosa, 2003). Essas mulheres, portanto, não teriam quesionado o discurso médico e o teriam naturalizado. E é isso, de fato, o que ocorre com uma grande parcela das mulheres que acaba indo para a segunda, terceira, quarta cesárea sem exteriorizar seus quesionamentos. Revelar as relexões que podem estar por detrás dessa aceitação aparentemente pacíica, dessa au- sência de quesionamento, está entre os fatores que moivaram esta pesquisa e a eleição do corpus de estudo.

O depoimento abaixo de uma mulher sobre a decisão pela cirurgia, do estudo de Perpétuo et al (1998, p. 115) traz muitas das jusiicaivas médicas apresentadas acima:

De um certo modo, eles [os médicos] passam pra gente que o parto normal, que entrar em trabalho de parto é um pouco como um risco: assim, uma coisa que já começou, se der alguma coisa errada é mais fácil de retomar, não sei, para a gente que é leiga é meio diícil, mas a impressão que me dá é essa... Mas aí então eles passam um pou- quinho este risco de que um parto normal é mais arriscado... então a gente já inha decidido mesmo que ia ser cesariana, aí depois que já estava certo que ia ser cesárea, ele me convenceu... eu não ia convencer ele do contrário e eu não ia mudar de médico por conta disso e outra também que de repente eu ia bater o pé numa coisa que dois não ia ter muito jeito... já que eu não ive dilatação no primeiro inha uma grande chance de não ter no segundo também... né? Se eu ivesse ido um primeiro parto nor- mal, talvez eu ivesse baido o pé, mas eu não ive mesmo... então icamos combina- dos de fazer a cesariana’ Q178 (Grifos nossos)

9 “once a cesarean always a cesarean”

10 “The primary Caesarean secion was undertaken to save the life of an exhausted, dehydrated, ketoic, oten

O depoimento acima chama atenção por duas razões principais. A primeira porque o médico passou a ideia não embasada cieniicamente de que entrar em trabalho de parto é arriscado. Segundo, porque a mulher, mesmo quesionando a decisão em seu ínimo, resignou-se.

A MBE airma o oposto do que jusiicam os médicos nas pesquisas brasileiras. Segundo o A Woman’s Guide to VBAC: Navigaing the NIH Consensus Recommendaions11(2010), a taxa de sucesso dos partos normais após cesárea é, em média, 74%. Mesmo as mulheres que não são consideradas boas candi- datas têm taxa de sucesso acima de 50%. Porém, os médicos, em geral, sequer informam as mulheres sobre as taxas, nem comunicam que há, por exemplo, formas de medir as chances de sucesso de um VBAC.

Apesar dos dados cieníicos demonstrando que 13 bebês em cada 100 000 cesáreas morrem em de- corrência de complicações da cirurgia e que o número respecivo para mulheres que tentaram um VBAC é 4 (NIH, 2010), o discurso médico que perpetua a jusiicaiva ‘uma vez cesárea sempre cesárea’ foi, recentemente, alavancado e respaldado pela autoridade do judiciário brasileiro sendo promovida de mito a dogma (Brum, 2014, 14 de abril) em uma afronta aos direitos humanos.

O caso Adelir Carmen Lemos de Góes, ocorrido em abril de 2014, na zona rural de Torres, no estado do Rio Grande do Sul, chocou o Brasil12 e o mundo13 por envolver a imposição de um procedimento médico a uma gestante que desejava um parto normal após duas cesáreas. Adelir estava em início de trabalho de parto e foi ao Hospital dos Navegantes em Torres. A médica que a atendeu indicou uma cesárea, pois a bebê, Yuja, estava pélvica, a gestação era prolongada e Adelir já possuía duas cesáreas anteriores. Após receber a opinião médica e dela discordar, Adelir assinou um termo de responsabili- dade e deixou o hospital para passar pelo trabalho de parto em casa. A médica, em seguida, acionou o Ministério Público, que, por sua vez, acionou o judiciário. A juíza, em medida liminar, sem ouvir Adelir, determinou que fossem realizados os ‘procedimentos médicos necessários’. Como resultado, um oi- cial de jusiça e nove policiais armados foram à casa de Adelir na madrugada do dia 1º de abril de 2014, e a conduziram ao hospital dentro de uma ambulância. Ela estava em trabalho de parto, acompanhada de seu marido e doula. Lá chegando, foi feita a cirurgia com a qual não consenira (Balogh, 2014, 2 de abril).

Adelir se viu diante de dois discursos: o médico e o jurídico, que combinados são intransponíveis. A vontade de Adelir, seu saber, seus moivos, sua condição de sujeito capaz, sua responsabilidade assu- mida não foram suicientes para fazer valer sua escolha informada, nem garanir direitos humanos. Ainda que ambos os discursos contrariassem seus direitos fundamentais e as evidências cieníicas sobre VBACs, a sentença ‘uma vez cesárea, sempre cesárea’ prevaleceu. A mulher se viu diante do poder do discurso médico – poderoso no senido de selar o desino da gravidez de Adelir e no senido de ter acesso imediato aos caminhos necessários para acionar outro discurso tão poderoso quanto.

11 O guia, disponível online, foi elaborado com base no Consensus Development Conference Statement on

vaginal birth ater cesarean (VBAC), publicado pelo Naional Insitutes of Health (NIH, 2010).

12 O movimento #SomostodasAdelir surgiu nas redes sociais e mobilizou diversos grupos de apoio ao parto aivo, associações de defesa dos direitos das mulheres, associações de direitos humanos.

13 Diversos jornais internacionais deram destaque ao caso, entre eles, The Telegraph que publicou a noícia

‘Kidnapped’ by the authoriies: meet the woman forced to have a caesarean’ (Turner & Hill, 2014, 17 de

Diicilmente Adelir teria condições de agir com a mesma celeridade para garanir seu direito a trabalho de parto após cesárea (TOLAC - Trial Of Labor Ater Cesearean delivery).

O discurso médico aliado ao monopólio da força do Estado mobilizado pelo poder do discurso judicial, por sua vez embasado no discurso médico, forma um círculo herméico e opera em completa descon- sideração do sujeito, forçando-a a se submeter.

As relações hierárquicas de classe social, status e gênero são quesionadas pela par- turiente ao contestar a autoridade do proissional de saúde e valorizar o seu próprio saber sobre seu corpo grávido. Entretanto, essas relações hierárquicas são reiteradas a parir de algumas aitudes do médico. Esse úlimo, não reconhece a paciente como sujeito e assim não se propõe a estabelecer um diálogo com ela a respeito de sua ges- tação. Se ela discute o diagnósico do proissional, ele, ao contrário, nega o saber dela sobre seu corpo e, ao se ver contestado, a submete a maus tratos. (Hoimsky, 2002, pp. 1307-8).

Tendo o discurso médico falhado em exercer seu poder em forma de convencimento, valeu-se do po- der manifesto exercido pela força. A força, no caso de Adelir, foi a força mais poderosa de todas – a do Estado, por meio do discurso judicial (o qual tampouco quesiona o discurso médico). O caso Adelir é um exemplo extremado da dimensão das barreiras diante de toda mulher que busca e alcança um VBAC. Demonstra que não basta ‘desejar um parto normal’, como 75% das mulheres brasileiras, tam- pouco ter também ‘acesso à informação’, como as mulheres de alta escolaridade. É imperaivo saber acessar as estruturas.

Cesáreas forçadas não são privilégio da cultura brasileira. Recentemente, Rinat Dray, americana de 32 anos ,foi submeida a cesariana à força, pois de acordo com o médico que a atendeu, como ela já fora submeida a duas outras cesáreas, um parto normal não seria uma opção. No prontuário, o médico re- gistrou: “A mulher possui capacidade para decidir. Eu resolvi desconsiderar sua recusa em se submeter a uma cesárea14” (Hartocollis, 2014, 16 de maio), não deixando dúvida nenhuma sobre a vontade da mãe. Ao se recusar, Rinat Dray foi ameaçada com a perda da guarda de seu ilho por violência contra criança. Durante o procedimento, Dray sofreu perfuração de sua bexiga e o médico mandou ela parar de reclamar: “Não fale” (Hartocollis, 2014, 16 de maio).

Com Adelir e Rinat, aprende-se que é necessário, além de desejar e se informar, reunir forças e, so- bretudo, meios para ir de encontro com o discurso hegemônico. O ocorrido com elas é corolário da jusiicaiva não baseada em evidências de que ‘uma vez cesárea, sempre cesárea’ bem como de toda e qualquer outra forma de resistência ao discurso médico – às suas jusiicaivas dogmáicas.

Quem já ousou enfrentar um diagnósico médico, seja na rede pública ou na privada, sabe como essa é uma batalha penosa. Pode, inclusive, apalpar o tamanho da cora- gem de Adelir. Os médicos – em geral, mas sem esquecer de uma minoria que luta bravamente por relações mais horizontais e respeitosas – consideram-se os donos dos corpos. Não só do deles, mas do meu e do seu. A medicina como um poder capaz

de normaizar os corpos é uma construção social e histórica, com capítulos fascinan- tes. (Brum, 2014, 14 de abril)

Em nossa análise críica do discurso de mulheres que passaram por uma cesárea e depois por um nas- cimento vaginal, exploraremos a linguagem por elas empregada, buscando ideniicar os elementos que marcam os relatos de parto. O que estaria ligado à suposta resignação primeira materializada na experiência de uma cesárea anterior? O que leva ao posterior quesionamento e à subsequente trans- formação? Perpétuo et al (1998: 117), por exemplo, levantam que os fatores da falta de resistência podem ser, ainda, relacionados à autoridade médica e às questões de gênero.

Ambos os casos demonstram quão árduo é o caminho percorrido por mulheres que não se resignam e desejam um parto normal após uma cesárea e, consequentemente, reforça a necessidade de invesi- gação e análise do discurso dos relatos de parto após cesárea: a voz silenciada de Adelir e Rinat dentro de cada mulher.

4.4. O paradoxo terminológico: a ciência, o corpo

da mulher e as operações do discurso

As sociedades sempre buscaram apropriação e controle do corpo feminino, de forma direta15 e indi- reta16, estando questões referentes à sexualidade, à reprodução e expressão no plano das relações de poder. O controle sobre o corpo feminino é determinado socialmente, porém exercido a pretexto de di- ferenças biológicas (Bourdieu, 2014). A sexualidade – e o parto como parte dela – é inscrita socialmen- te nos corpos femininos a pretexto dessas diferenças biológicas socialmente construídas (Bourdieu, 2014), fazendo com que a situação de subordinação das mulheres na sociedade – e nos serviços de saúde – seja socialmente determinada por uma suposta decorrência natural das diferenças biológicas constantemente destacadas.

A relação entre ciência, hegemonia e violência é marcante no contexto do nascimento durante o pro- cesso de medicalização do parto, contexto esse palco de uma luta de poder entre o feminino (mães, parteiras, ambiente domésico) e masculino (homens, hospitais, ambiente público), entre o artesanal e o tecnológico.

A parir do século XIX, com a crescente industrialização, o avanço tecnológico e a ideia de naturali- zação da função biológica do corpo da mulher, a ideologia dominante do compromisso social com o desenvolvimento da ciência seguiu seu curso dando passos largos sobre o único domínio até então reservado ao feminino: o nascimento. No Brasil, foi a parir da década de 60 que se intensiicou “o

15 Alguns exemplos históricos de controle direto sobre o corpo da mulher: Sobre a história da criminalização do estupro, ver: Vigarello, G. (1998) História do Estupro: Violência Sexual nos Séculos XVI-XX. Tradução Lucy Magalhães. Rio de Ja- neiro: Jorge Zahar. Sobre legislação que permiia a inspeção do corpo feminino para veriicação de doença sexualmente transmissível com intuito de ‘proteger’ os homens de contágio, ver The Contagious Diseases Acts (1864, 1866, 1869) da era vitoriana.

16 No Brasil de hoje, um grande exemplo de controle indireto sobre o corpo feminino e sua força de trabalho é a alíquota de 20% de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) sobre máquinas de lavar roupa. Sobre o impacto econômico da máquina de lavar roupa, ver Chang, Joon. (2011) 23 Things they Don’t Tell You about Capitalism. London: Penguin Books.

processo de medicalização do parto e sua hospitalização, sendo aos poucos incorporadas cada vez mais metodologias diagnósicas e intervenções” (Ministério da Saúde, 2012, p. 374). O aumento galopante de intervenções, a parir da década de 80, passou a preocupar pesquisadores internacionais, os quais apresentaram propostas para seu controle e redução como no caso das políicas públicas adotadas já nessa época para o Reino Unido e Canadá (Ministério da Saúde, 2012, p. 374). No Reino Unido, por exemplo, já em 1982 surge o Movimento pelo Parto Aivo e, no seu contexto, o Comício pelos Direitos de Parir, o qual foi um protesto “contra hospitais que negavam às mulheres o direito e a liberdade de se movimentar durante o trabalho de parto e de dar à luz na posição verical, de cócoras ou de joelhos, apesar das evidências sobre suas vantagens” (Balaskas, 1996).

Apesar de movimentos similares no Brasil e em tantos outros países, a medicalização do parto, contu- do, não arrefeceu e ainda vem ascendendo em todos os países dessa pesquisa. Trata-se de uma práica com profundas raízes no processo histórico de industrialização do ocidente, legiimada por um com- promisso com o progresso que implica – não só na esfera do nascimento, mas também na da educação e do esporte – a valorização da máquina sobre o humano, do masculino sobre o feminino, do capital sobre o social, do insitucional sobre o indivíduo, do médico-técnico sobre o paciente-leigo.

Práicas violentas (e.g. manobra de Kristeller, amarras) tornam-se naturalizadas, inconscientes e consi- deradas chave no caminho para o desenvolvimento da ciência, a qual no contexto do nascimento, está desinada a corrigir as imperfeições do corpo da mulher com ferramentas ‘essenciais’ (e.g. fórceps, es- tribos, cirurgias), salvando-a dos perigos de um parto ‘não tecnológico’. O corpo da mulher foi colocado a pleno serviço da ciência ao ser posicionado (e.g. deitado) para facilitar o trabalho do médico e usado como objeto de experimentos17 (e.g. aberto, fechado, manipulado, em muitos casos sem anestesia e sem consenimento prévio). Tudo em prol do discurso do progresso cieníico legiimador da expressão do poder hegemônico sobre o corpo da mulher.

O momento do nascimento deixa de ser um acontecimento do foro privado do feminino e é transpor- tado para acontecer em insituições tecnológicas, “direcionado a um cuidado técnico em que o médico é seu iador” (Pereira et al, 2011, p.6). O médico, portanto, é garanidor do modelo centrado nele mes- mo. Seu trabalho é facilitado dado que, culturalmente, a sociedade corrobora o modelo de assistência centrado no especialista. Essas dinâmicas têm relexos na linguagem empregada pelos diversos atores envolvidos no universo da gestação e do nascimento.

Surge assim, um discurso legiimador da patologização do nascimento vaginal, tanto por médicos, quanto pelas pacientes. Discurso esse que ecoa na representação reiicante que a sociedade e a mídia fazem do corpo feminino, repeidamente associado à incompetência, imperfeição, fragilidade, sub- missão etc. O nascimento vaginal patológico precisaria do auxílio da ciência e de suas intervenções tecnológicas. A cesariana passa a ser representada como um recurso necessário para corrigir o funcio- namento impreciso do corpo da mulher, corpo esse que não raro é descrito como causador de ‘risco’ ao feto, o qual é protegido pelo médico e ‘salvo’ pela cesárea. Nesse senido, são diversos os fatores que atuam como transformadores da percepção de que o procedimento é seguro: aprimoramento de

17 Ver o trabalho de J. Marion Sims, considerado o pai da ginecologia nos Estados Unidos. Sims costumava realizar cirur- gias em mulheres americanas de origem africana e irlandesa sem anestesia, pois as considerava mais resistentes à dor que as mulheres brancas, regularmente anestesiadas nos procedimentos por serem ‘mais sensíveis à dor’ (McGregor, 1998).

técnicas cirúrgicas e anestésicas, redução de complicações pós-operatórias, melhora de aspectos de- mográicos e nutricionais, entre outros.

A cesariana passa, portanto, a ser considerada um procedimento ‘seguro’, ‘indolor’, ‘moderno’ e ‘ideal’ (Mello e Souza, 1996). A percepção sobre a segurança da cesariana está entre os fatores que contri- buem diretamente para o aumento de nascimentos cirúrgicos (Ministério da Saúde, 2012, pp. 374-5). Com isso, toda ordem do discurso que envolve o nascimento passa a considerá-lo um ‘procedimento médico’ em vez de um evento isiológico espontâneo, o que nos leva ao próximo paradoxo.

E, nessa mesma ordem de discurso, a cesariana, cuja deinição é ‘operação que consiste em extrair feto vivo’ passa a ser designada ‘parto cesáreo’. ‘Parto cesáreo’ é um oxímoro que passa despercebido e sinaliza a intensidade da força do discurso hegemônico replicado naturalmente por sujeitos dos mais diversos: pacientes, médicos, mídia, arigos cieníicos, órgãos públicos etc. Diversos desses sujeitos, apesar de criicarem o alto índice de cesarianas, sucumbem inconscientemente ao discurso naturaliza- do do poder hegemônico e empregam expressões como ‘parto cesáreo’ e ‘parto cirúrgico’ em publica- ções que criicam o alto índice de nascimentos cirúrgicos no país.

A expressão ‘parto cesáreo’ em ítulos de publicações cieníicas:

- A medicalização do corpo feminino e a incidência do parto cesáreo em Belo Horizonte18. - Trajetória das mulheres na deinição pelo parto cesáreo: estudo de caso em duas unidades o

sistema de saúde suplementar do estado do Rio de Janeiro19. - Evidência de indução de demanda por parto cesáreo no Brasil20

As expressões ‘parto cirúrgico’ e ‘parto cesáreo’ são muito frequentes na mídia, como vimos no ca- pítulo anterior em que se fala em ‘ipo de parto’ (normal ou cesáreo), portanto não daremos mais exemplos aqui. As expressões ocorrem também em textos especializados. ‘Parto cirúrgico’ e ‘parto cesariana’ ocorrem até na portaria que insitui o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento (Portaria/GM Nº569 de 01/06/200):

- gerador (para unidades que realizam parto cesariana)

- Realização de partos normais e cirúrgicos, e atendimento a intercorrências obstétricas: - assisir a partos cirúrgicos em unidades que realizam parto cesariana.

Abaixo, as deinições dicionarizadas no Michaelis Dicionário de Português de ‘parir’ e ‘cesariana’ de- monstram a incompaibilidade entre um e outro lexema:

pa.rir

(lat parere) vtd e vint 1 Dar à luz, expelir do útero (falando-se de fêmea vivípara, in-

18 Chacham, A.S. (1999) Dissertação (Doutorado em Demograia) Cedeplar, Universidade Federal de Minas Gerais, MG.

19 Dias, M. A. B. et al . (2008) Ciênc. saúde coleiva, Rio de Janeiro , v. 13, n. 5, Oct. 2008 . [Recuperado em 19 Apr. 2014 de htp://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232008000500017.]

20 Santos, T. T. (2011). Dissertação (Mestrado em Economia) Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal de Minas Gerais, MG.

clusive a mulher, em relação ao ser que conceber); desemprenhar, desprenhar: “Nem bem seis meses passaram e a Mãe do Mato pariu um ilho encarnado” (Mário de Andrade).

ce.sa.ri.a.na

adj f (fr césarienne) Cir Diz-se da operação que consiste em extrair o feto vivo por inci-

são nas paredes do ventre e do útero da mãe. sf Essa operação.

O evento isiológico, parto, transformado em procedimento médico sofre uma operação léxico-semân- ica com causas e consequências no discurso hegemônico. Em português, a naturalização da cesariana fez nascer os oximoros ‘parto cesáreo’ e ‘parto cirúrgico’, os quais são apresentados como ‘quase a mesma coisa’ que ‘parto normal’. A mais perfeita tradução da força do discurso hegemônico.

O termo ‘parto’ no Brasil foi transformado pelo discurso hegemônico de tal maneira que mulheres que passam por cirurgias eleivas estão convencidas de que ‘pariram’ na ‘sala de parto’, sinônimo de ‘centro cirúrgico’21. O emprego linguísico do ‘parto cesáreo’ permeia frestas psíquicas sociais e individuais, possibilitando que coninuemos a dizer – e crer – que mulheres estão parindo. Ao discorrer sobre a importância dos novos senidos na luta ideológica, Fairclough ressalta que: