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Introdução

É evidente que quanto maior a agressividade de uma sociedade e a sua capacidade de destruir vidas, mais invasivos são os rituais e crenças culturais no período do nas- cimento. [...] Por que 10 por cento de cesáreas em Amsterdã e 801 por cento em São Paulo2? (Odent, 2004, p. 56).

Costumo lembrar perfeitamente da primeira vez que ouvi certas palavras e expressões ao longo da mi- nha vida. Foi assim com naïve, ‘novação de dívida’, awry e tantas outras. Com ‘relato de parto’ não foi diferente. Ouvi pela primeira vez do meu obstetra. Até então, não atentara para o fato de que ‘relatos de parto’ pudessem ser considerados uma práica social e, como tal, corresponder a um modo de ser (esilo), um modo de agir (gênero) e um modo de representar (discurso).

O primeiro relato de parto que ouvi foi o de uma ex-paciente do meu ex-ginecologista-obstetra. Incon- formada com tantas respostas evasivas durante as consultas de pré-natal e levemente intrigada com as reiteradas vezes que o médico chamara o meu parto de dele (“Nos meus partos,...”), pedi para conver- sar com alguma mulher que ele houvesse assisido em um parto normal. Pela secretária, recebi nome e número, liguei. Depois de um longuíssimo e detalhado relato, aliviada, agradeci, para, nos úlimos segundos antes de desligar, perceber que o tal parto inha sido 18 anos atrás. A palavra é awry. Antes da consulta mensal seguinte, ouvi um segundo relato. Esse, em segunda mão. Uma amiga falava do parto de uma amiga dela e no meio da conversa proferiu ‘doula3’. O sininho da palavra nova tocou. Pesquisei o termo e descobri diversos arigos cieníicos sobre as vantagens de ter uma doula. De volta ao consultório, perguntei ao médico atrás da mesa o que ele achava dessa possibilidade. Revirando os olhos, controlou-se e educadamente me disse que se eu izesse questão “é claro” que eu poderia ter uma, mas que ele achava que eu iria “gastar dinheiro à toa” e que não passava de “uma grande bes- teira”. Pensei: “Como assim?”, “E os estudos cieníicos comprovando que a mulher acompanhada por uma doula tem 20 por cento mais chances de ter um parto normal?”, “Que a mulher acompanhada por doula tem maior índice de saisfação no parto?”, “Que a mulher acompanhada por uma doula tem me- nos chances de sofrer intervenções desnecessárias?”, “Aliás, o que são intervenções desnecessárias?”, “Tem médico que faz intervenção desnecessária?”. Ressigniiquei naïve e mudei de médico.

Por indicação da doula-da-amiga-da-minha-amiga, fui parar no consultório sem mesa de um obstetra humanizado que, após me informar, logo na primeira consulta, que no parto ele não fazia nada, quem faz tudo é a mulher (“Mas ele cobra para não fazer nada?!”), me incumbiu não só de ler relatos de parto, mas também de ouvi-los diretamente de outras mulheres em locais como o GAMA (Grupo de

1 80% se refere à taxa na rede paricular.

2 “It is noiceable that the greater the need a society has to develop aggression and the ability to destroy life,

the more intrusive the rituals and cultural beliefs are in the period around birth. […] ‘Why 10 per cent cae- sarean rates in Amsterdam and 80 per cent in São Paulo?”. As traduções de citações de obras consultadas

em inglês são de minha autoria.

3 Doula é uma acompanhante de parto que confere apoio emocional e se ocupa do bem-estar psicológico da parturiente.

Apoio à Maternidade Aiva) e a Casa Mora em São Paulo, SP. Também sempre me encorajou a escrever o meu. Hoje, com tudo o que aprendi sobre relatos e sobre o movimento pela humanização do parto, posso dizer que não era apenas encorajamento, mas devida cobrança.

Tive duas experiências de parto que me mudaram para sempre: seni o tempo parar. Como na moder- nidade o tempo do relógio não para, reformulo: seni o meu tempo parar. Alcancei a velocidade zero. Durou a lufada de um vento, mas foi aquele momento único da minha existência em que, por alguns instantes imensuráveis [Segundos? Minutos? A mulher em trabalho de parto tem sua percepção de tempo cronológico alterada.] eu já não me aproximava da morte, estava muito mais perto da vida. Ainda não escrevi meus relatos. Em vez disso, optei por mudar de corpus de pesquisa no curso do meu doutoramento no programa de Estudos Linguísicos e Literários em Inglês, mas sempre dentro de uma perspeciva da Linguísica de Corpus, passando a analisar o gênero dos relatos de parto mais a fundo, na esperança de ‘novação de dívida’.

Ao longo de mais de cinco anos de leitura de relatos de parto em português e de birth stories em inglês, aqueles que mais me chamaram a atenção foram os relatos de parto normal após cesárea (ou relatos de VBAC, na sigla em inglês, vaginal birth ater c-secion). São esses que esta tese se propõe a invesi- gar, porque trazem à tona a incompaibilidade entre o que as mulheres desejam em termos da expe- riência do nascimento e aquilo que, de fato, alcançaram. São relatos que contam a história de uma ce- sárea anterior, em regra sem indicação clínica e indesejada, e a história do parto normal subsequente. A preferência por ‘ipo de parto’ é enfoque de inúmeras pesquisas, cujos resultados costumam revelar uma preferência pelo ‘parto normal’. A pesquisa Nascer no Brasil (Fiocruz, 2014), por exemplo, consta- tou que a maioria absoluta das primíparas, 72 %, deseja parto normal logo que engravida, porém, em mais da metade dos casos, 52 %4, os nascimentos são cirúrgicos. Vale notar que, segundo recomenda- ções da Organização Mundial da Saúde (OMS), as taxas de cesárea deveriam oscilar entre 10 e 15%. Em outras palavras, seriam 10 a 15% dos nascimentos para os quais haveria uma indicação clínica de cesárea. Os índices de cirurgia superiores ao recomendado e o fenômeno da falta de correspondência entre o desejado e o efeivamente alcançado não são exclusividade das mulheres brasileiras, mas ocor- rem na maioria dos países do ocidente, com destaque para os Estados Unidos, onde um em cada três bebês nasce por cirurgia.

Ainda que o aumento dos nascimentos cirúrgicos seja considerado um problema social em diversos países, o problema social selecionado para ins desta pesquisa é a falta de correspondência entre o ipo de nascimento desejado e o ipo de nascimento obido. O discurso dos relatos de VBAC nos parece ser o discurso ideal para desvelar os elementos dessa falta de correspondência, pois abordam tanto a experiência da cesárea indesejada como a do parto desejado. Ou seja, são relatos que narram a disso- nância e a consonância entre expectaiva e resultado.

Para tanto, formulamos as duas perguntas abaixo, que, abordando a representação dos sujeitos envol- vidos na experiência e a própria experiência, esperamos poder nos auxiliar a angariar elementos para elucidar o problema social eleito:

1) Como as idenidades são construídas nos relatos de parto normal após cesárea? 2) Como a experiência de nascimento é representada nos relatos de parto normal após

cesárea?

Esta tese, cujo recorte teórico-metodológico baseia-se na Linguísica de Corpus (LC), na Análise Críica do Discurso (ACD) de linha inglesa e na Análise Críica do Discurso Baseada em Corpus (ACDBC) combi- na relevância social com especiicidade textual. Por meio do estudo aprofundado de determinado ob- jeto, uma tese de doutoramento busca oferecer à sociedade meios para transformá-la. Ao pesquisador permite a possibilidade de fazer o objeto de estudo interagir com as demais áreas do conhecimento e com os elementos sociais e culturais de seu contexto.

Nesse senido, a ACD de linha inglesa, que não se pretende neutra em relação ao tema pesquisado, oferece o suporte cieníico necessário para os estudos sobre o papel do discurso na instauração, ma- nutenção e superação dos problemas sociais e, portanto, é a escolha epistemológica que mais se coa- duna com os objeivos deste estudo que se propõe a estudar o discurso dos relatos de VBAC de mulhe- res brasileiras e estadunidenses para determinar como as narradoras constroem sua auto-idenidade e as idenidades dos demais sujeitos no cenário do parto (companheiros, doulas, médicos, obstetrizes, parteiras, enfermeiras) e como representam a experiência do nascimento. Por meio da ACD dos relatos de parto busca-se revelar e analisar as marcas ideológicas que desestabilizam – ou reforçam – o poder/ discurso hegemônico e inluenciam o alcance ou não da experiência de parto almejada.

A ACD é considerada uma teoria e também um método e tem por objeivo revelar relações de poder, construídas por meio da linguagem, e demonstrar como desigualdades são reforçadas e reproduzidas por meio do discurso. A ACD aricula diversas disciplinas e encara a língua como uma forma de práica social por meio da qual as relações de dominância social e políica são reproduzidas. A ACD percorre diferentes níveis de análise abordando o texto, a práica discursiva e a práica social e embasa estudos textuais nos níveis: micro (sintaxe, léxico), meso (produção e consumo do texto, relações de poder) e macro (relações do texto estudado com outros textos).

A LC, por sua vez, estuda a língua com base em exemplos autênicos da língua em uso e se ocupa também da construção de corpora eletrônicos. Para a LC, um corpus é um conjunto de textos desina- dos à pesquisa linguísica, coletados segundo critérios determinados pelo pesquisador. A exploração do corpus na LC se dá necessariamente por meio de evidências linguísicas empíricas produzidas por programas de computador. As ferramentas eletrônicas permitem que se produzam dados linguísicos em abundância sobre, por exemplo, a padronização de combinações de palavras. Como a frequência de padrões lexicais escapa à intuição humana, a LC faz do corpus uma fonte mais coniável no que tange os usos linguísicos se comparada à intuição do pesquisador. A pesquisa em LC divide-se em duas abordagens (Tognini-Bonelli, 2001): abordagem baseada em corpus (corpus-based) e abordagem direcionada pelo corpus (corpus-driven). Na primeira, o corpus seria usado para validar hipóteses. Na segunda, mais induiva, a pesquisa não é alavancada pelo enfoque convencional baseado em hipóteses prévias, mas é direcionada pelos resultados obidos, os quais permitem que aspectos linguísicos até então desconhecidos ou não previstos.

Nos anos 90, a LC e a ACD começaram a se aproximar. Começa a surgir a Análise Críica do Discurso Ba- seada em Corpus (ACDBC). Diversos estudos passaram a mostrar como a LC pode ser empregada para revelar relações de poder, buscando ultrapassar os limites de descrição da linguagem para compreen- der a relação do discurso com os contextos de situação e cultura. Como, na perspeciva da ACD, as es- colhas lexicais, textuais e discursivas não são aleatórias, a parir das ferramentas da LC é possível reunir de forma sistemáica e organizada, para ins de interpretação, os elementos que revelam escolhas de senidos. Outro aspecto relevante que a LC traz para a ACD é a abertura para elementos de análise não esperados, fazendo com que os resultados obidos com o processamento eletrônico redirecionem o trajeto analíico inicial.