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A representação do nascimento dos ilhos de pessoas famosas: maternidade líquida

Deinição de relato de parto

3. As representações do nascimento

3.2. A representação do nascimento dos ilhos de pessoas famosas: maternidade líquida

Selecionar o que noiciar é tarefa que varia de jornal para jornal, pois depende de sua linha editorial e seu público, portanto, cada meio terá critérios de noiciabilidade próprios. Entre os acontecimentos noiciados no Brasil e no mundo, considerados noiciáveis, estão os nascimentos dos ilhos de pessoas famosas, devido ao deslocamento entre o público e o privado na vida social fazendo com que tais even- tos, outrora privados, virem noícia.

O nascimento de ilhos de pessoas famosas se encaixa em diversos critérios de noiciabilidade, tais como, a proximidade (quanto mais geográica e afeivamente próximo o objeto da noícia, maior a chance de ser noícia); atualidade (quanto mais recente, maior chance de ser noícia); importância do sujeito (quanto mais importante o sujeito envolvido, não apenas em termos de proximidade geo- gráica e afeiva, mas também em termos de posição social, maior a chance de ser noícia), amplitude (quanto maior o número de interessados na matéria, maior a chance de ser noícia); clareza dos fatos (quanto maior o detalhamento, maior a chance de ser noícia); coninuidade (o bebê, por ser ilho de uma pessoa famosa, provavelmente será acompanhado pela mídia ao longo de sua vida, gerando mais noícias) etc.

No Brasil, a mídia retrata o nascimento de ilhos de pessoas famosas em maternidades de luxo, fazendo da ‘saída da maternidade’ uma manchete. Nesse ipo de noícia, destaque é sempre dado à insituição (maternidade) onde ocorreu o nascimento e os serviços de conveniência oferecidos. Vale notar que é de conhecimento público e notório a proibição de qualquer menção de nomes de marcas na Rede Globo, salvo em decorrência de publicidade remunerada, o que sugere que as ‘noícias de nascimento’ sejam, de fato, peças publicitárias travesidas de noícia. Também recebem destaque os proissionais que ‘fazem o parto’, igurando o médico obstetra e o pediatra famosos.

Texto 02. Ego Globo. Angélica deixa maternidade no Rio com Eva no colo: ‘Missão cumprida’ (Tecidio, 2012)

Antes do nascimento, em linha com o critério de noiciabilidade e ao princípio da coninuidade das noícias, a mídia também costuma noiciar que ipo de nascimento a estrela gestante pretende ter. No caso da Angélica, em noícia anterior, ela anunciara sua terceira cesárea eleiva e o ato de marcar a data foi noícia em jornal de grande circulação. Vale notar o conínuo destaque dado às insituições. Na noícia abaixo, por exemplo, a maternidade Perinatal da Barra da Tijuca, é citada na primeira linha do primeiro parágrafo e o Hospital Albert Einstein, na penúlima do úlimo parágrafo.

Texto 03. Jornal do Brasil. Angélica marca data do parto de Eva (Ramalho, 2012)

A mídia noicia, além da saída da maternidade, o enfeite da porta do bebê, os brindes para as visitas, o ipo de nascimento. Todos os signos veiculados nas noícias – desde os brindes, o espaço paricular

e a própria cirurgia – são transmiidos como sinais de presígio e, consequentemente, passam a ser almejados por quem sustenta a ideologia dominante: a classe média, a qual opera e se realiza por meio de signos de status e, nesse movimento, submete-se às mais elevadas taxas de cesárea do mundo (85 a 95%).

O nó é tão bem dado que o nascimento por parto é quase sempre retratado como ‘tentado’, mas, ‘por alguma razão’, não alcançado, e a cesárea foi algo que precisou acontecer.

Mamãe de primeira viagem, Ana Hickmann fala sobre a amamentação

Com o primeiro ilho nos braços, Ana Hickmann conta como é amamentar e como foi o trabalho de parto de 12 horas em conversa com Ticiane Pinheiro e Brito Jr.

[...] Hickmann ainda falou sobre o momento do nascimento. “Eu tentei o parto normal, mas, no inalzinho, a gente percebeu que não ia dar. Foram 12 horas de trabalho de parto. Mas como não foi o que Deus quis, a gente acabou optando pela cesárea”, declarou. A esposa de Alexandre Corrêa, diz que viveu um “momento ínimo” e ainda recebeu aulas das enfermeiras sobre bebês. (grifo nosso)

Texto 04. Caras Digital. Mamãe de primeira viagem, Ana Hickmann fala sobre a amamentação (Caras Digital, 2014, 10 de março)

Além disso, a fala de Ana Hickmann é representada em discurso direto e como um discurso passível de ser reproduzido por ‘qualquer leitora’, ou seja, qualquer brasileira poderia empregar essas palavras. Dando ares de necessidade à cesárea, a mídia noicia indicações não corroboradas pela ciência para a cirurgia, ou seja, não baseadas em evidências cieníicas, contribuindo dessa forma para uma repre- sentação baseada em mitos.

“O parto teve que ser cesariana. O bebê é enorme e ela é muito guerreira”, disse a médica. Ainda segundo Elizabeth, o cordão umbilical estava enrolado no pescoço de Antônio, outro moivo para se realizar a cesariana. (grifo nosso)

Texto 05. Ego Globo. ‘Parto de Juliana Paes foi cesariana pois bebê é enorme’, diz médica (Ego Rio, 2013)

Assim como os signos de status, os mitos também são formas de controle social. Entre suas funções está tornar suportável a realidade, negando-a, mas jusiicando-a (Chauí, 1980). A realidade desejada, o parto – a primeira escolha –, não foi possível por circunstâncias alheias à vontade da mulher, mas a cesárea passa a ser plenamente suportável, pois, pelas operações do discurso, também foi uma ‘esco- lha’, uma ‘opção’. Uma ‘opção’ perfeitamente jusiicada por mitos propagados pelo discurso médico, naturalizadamente absorvido.

Ambas, Ana Hickmann e Juliana Paes, não haviam optado pela cesárea, pois declaradamente preferiam parto normal (assim como 75% das brasileiras, como veremos no próximo capítulo). Porém o verbo ‘optar’ é absorvido, a exemplo do que ocorre no discurso de Ana Hickmann, o qual transmite incoe- rência e falta de clareza sobre quem ‘percebeu que não ia dar’ e quem ‘optou’. Os únicos verbos com sujeitos claros são ‘tentar’ (Eu tentei) e ‘querer’ (o que Deus quis).

O verbo ‘optar’ na mídia merece algum destaque. Abaixo, uma manchete sobre a ‘opção pela cesárea’ que atrela a imagem da mulher ‘bonita, inteligente, famosa, bem-sucedida’ à ‘opção’ pela cirurgia: “Em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, surge uma cultura pró-cesárea. A maioria das mulheres que

inluencia a opinião pública – atrizes, atletas famosas, etc. – dão à luz por cesárea. 4” (Odent, 2004, p. 35).

Texto 06. Caras Uol. Juliana Paes e outras famosas izeram cesariana. Veja os beneícios e riscos (Camargo, 2014, 25 de março)

Ainda que a noícia não recomende a cesariana diretamente, e alerte, por meio de um discurso médi- co, de seus perigos em potencial, ela carrega, no primeiro parágrafo, uma carga de imagens que associa a cirurgia a ser atriz, famosa, bonita e bem-sucedida, além de airmar que [nesse peril de mulher] ‘tem se tornado cada vez mais comum entre as gestantes por ser considerada por muitos [sem especiicar por quem] menos dolorida e mais segura que o parto normal’. Como a manchete (acima Texto 06) traz a palavra ‘beneícios’, o leitor que só lê o primeiro parágrafo é levado associar a ‘beneícios’, a ‘menos dor’ e ‘menos risco’.

Giovanna Antonelli, Flávia Alessandra, Juliana Paes e Grazi Massafera, além de serem

famosas e bem-sucedidas atrizes, têm outro ponto em comum: iveram seus ilhos via cirurgia cesariana.

A práica tem se tornado cada vez mais comum entre as gestantes por ser considerada por muitos menos dolorida e mais segura que o parto normal. Mas, segundo o Doutor Claudio

4 In ciies such as Rio de Janeiro and São Paulo, a pro-caesarean culture is arising. Most women who help

Basbaum, ginecologista- obstetra, e membro do Corpo Clínico da Maternidade São Luiz, de

São Paulo, é um erro acreditar que a cesariana é melhor. Texto 07. Caras Uol. Juliana Paes e outras famosas izeram cesariana. Veja

os beneícios e riscos (Camargo, 2014, 25 de março)

Por outro lado, ao compararmos a informação da manchete no Texto acima com outras noícias sobre o nascimento dos ilhos dessas atrizes, veremos que, assim como Juliana Paes, Flávia Alessandra, Grazi Massafera e Giovanna Antonelli, primeiramente, ‘optaram’ por um nascimento vaginal e que a ‘opção’ pela cesariana veio depois.

A chegada de Olívia

Casada há quatro anos, Flávia Alessandra, que já é mãe de Giulia - dá à luz sua primeira ilha com Otaviano Costa

O parto cesárea foi realizado pelo obstetra Bruno Alencar na terça-feira 5, às 19h34. A menina nasceu com 3,605 quilos e 51 cenímetros. “A Flávia foi uma gestante exemplar, que cumpriu direiinho todas as orientações. Teve uma gravidez óima, sem nenhum problema. Ela entrou em trabalho de parto, que não evoluiu, por isso optamos por fazer cesariana. Mas foi tudo óimo”, explicou o médico. (grifo nosso)

Texto 08. ISTOÉ Gente. A chegada de Olívia (Gabriella & Costa, 2010)

Eles estão superfelizes’, conta empresária de Grazi Massafera

Atriz deu à luz na noite desta quarta-feira, 23, no Rio. O parto foi cesárea. Soia nasceu com 4,135Kg e 50cm.

Grazi Massafera deu à luz na noite desta quarta-feira, 23, na maternidade Perinatal, da Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Apesar do esforço da atriz para ter parto normal, Soia acabou nascendo de cesárea. (grifo nosso)

Texto 09. Ego Globo. ‘Eles estão superfelizes’, conta empresária de Grazi Massafera (Guterres, 2012)

Nascem as ilhas gêmeas da atriz Giovanna Antonelli

Antonia e Soia são ilhas da atriz com o diretor Leonardo Nogueira.

Giovanna Antonelli já é mamãe novamente! A atriz, que é mãe de Pietro de 5 anos, deu à luz gêmeas Antonia e Soia nesta sexta-feira, 8, através de uma cesariana. Antônia nasceu com 2.965 kg e 47 cm e Soia com 3.00 kg e 48 cm. Ela esperou quase 39 semanas de gravidez na esperança de ter parto normal, mas não foi possível. (grifo nosso)

Texto 10. Ego Globo. Nascem as ilhas gêmeas da atriz Giovanna Antonelli (Tecidio, 2010)

Os sujeitos estão posicionados na ideologia de uma forma que disfarça a ação e os efeitos desta, e confere ao sujeito uma autonomia imaginária (e.g. optamos pela cesárea) operada por meio de con- venções discursivas altamente naturalizadas (Fairclough, 1992, p. 91).

Outro aspecto da representação do nascimento pela mídia é fazer corresponder a estada na materni- dade a um momento de fama, visitas badaladas e brindes.

Neste domingo, Juliana recebeu a visita de familiares e de amigos famosos, como Carolina Dieckmann e David Brazil. O marido da atriz, Carlos Eduardo Bapista, levou o pequeno Pedro, de dois anos, para conhecer o irmãozinho. Os visitantes levaram para casa chocolates com o nome de Antônio.

Texto 11. Ego Globo. ‘Parto de Juliana Paes foi cesariana pois bebê é enorme’, diz médica (Ego Rio, 2013)

Criada a demanda por meio das imagens posiivadas pela mídia e moldada nossa subjeividade, sur- gem produtos e procedimentos para os não famosos, os quais a mídia também destaca como sendo possíveis de serem adquiridos. Em outras palavras, é possível ter uma experiência similar, ao fazer, por exemplo, do nascimento um acontecimento social organizado nos mínimos detalhes. Nesse caso, ter uma cesárea parece ser peça fundamental para o planejamento. A matéria se refere à cesariana, ao menos, quatro vezes: a anitriã ainda se encontre meio zonza após sair da sala de parto; como iz cesa- riana, pude me programar; quando se trata de mulheres recém-saídas da sala de cirurgia; é preciso ter em mente que o parto é um procedimento cirúrgico.

Texto 12. Veja Rio. Parir é uma festa (Knoplech, 2012)

Pouco importa que o principal homenageado não tenha a menor ideia do que esteja acontecendo, ou que a anitriã ainda se encontre meio zonza após sair da sala de parto. O fato é que começam a ganhar força no Rio de Janeiro as chamadas festas de

nascimento, realizadas no quarto da maternidade, logo no primeiro dia de vida do bebê. Esses encontros, que reúnem parentes e amigos ávidos por conhecer o novo habitante do planeta, aos poucos adquirem ares de superprodução. Dependendo do bolso e do desejo dos pais, a recepção pode incluir farto bufê, garçom com bandeja de espumante, decoração caprichada, projeção de slides com o passo a passo da gravidez e até uma suave música ambiente, em volume compaível com um recinto hospitalar.

No úlimo sábado (18), a denista Juliana Marzo transformou a chegada de Stella em um acontecimento social. “Como iz cesariana, pude me programar e o parto virou um evento mesmo”, diz ela, que é casada com o administrador Marcel Vieira. Após o nascimento, os anitriões receberam trinta pessoas ao longo do dia, em um quarto da Perinatal da Barra devidamente preparado para a ocasião, todo ornamentado e bem sorido de comidinhas e champanhe. Para coroar a data, a lembrancinha era um biscoito em forma de estrela, numa alusão ao nome do bebê. “Um dia tão importante não podia passar despercebido”, conta Juliana, que contratou uma empresa especializada em organizar esse ipo de celebração.

[...]

Como é praxe nessas ocasiões, a dona da festa quer sempre se exibir impecável na hora de receber os convidados. É um desaio estéico, especialmente quando se trata de mulheres recém-saídas da sala de cirurgia, e mais uma incumbência para Adriana, que se dispõe a levar também maquiador e cabeleireiro. “Nesse momento mais especial da vida da mulher, ela quer estar preparada para tudo”, airma a empresária.

[..]

É preciso ter em mente que o parto é um procedimento cirúrgico e, sendo assim, requer atenção especial, sob o risco de prejudicar o pleno restabelecimento de mãe e bebê. Texto 13. Veja Rio, Parir é uma festa (Knoplech, 2012)

A reportagem traz elementos que poderiam ser considerados incompaíveis com o nascimento de um bebê se não esivéssemos em plena ‘modernidade líquida’ (Bauman, 2007). De acordo com a matéria, nem ele nem a mãe são importantes (não importa que o principal homenageado não tenha a menor ideia do que esteja acontecendo, ou que a anitriã ainda se encontre meio zonza após sair da sala de parto). O importante é a ‘dona da festa’ (não a dona do parto) ‘se exibir impecável na hora de receber os convidados’.

As ‘Festas de Nascimento’ demandam recursos inanceiros, bem como tempo para se dedicar à organi- zação. A gestante que investe seu tempo na preparação de um evento dessa natureza, provavelmente, não investe tempo em se informar sobre os elementos isiológicos e psicológicos que o nascimento envolve e as transformações que um bebê opera na vida de uma mulher. A mulher se apropria da festa, porém não do parto. O que ocorre com seu corpo a ela é alheio, distante (‘zonza da cirurgia’). O estar ‘preparada para tudo’ equivale a estar preparada para o exterior, para a superície, para os outros, não para o bebê nem para si mesma. A jornada individual interna da maternidade é negada, já o que o importante é ser ‘anitriã’ dos convidados e cercar-se de commodiies (produtos e serviços). A própria cesárea é uma commodity: “A cesárea se tornou um bem de consumo. No Brasil, um país cuja

população corresponde ao total das populações da Alemanha, França e Espanha, a média nacional de cesáreas está acima dos 50%5” (Odent, 2004, p. 5).

A maternidade mencionada na reportagem, a Perinatal da Barra no Rio de Janeiro, concorda com a práica, pois recebe a empresa de Festas de Nascimento em suas instalações. A valorização do plane- jamento carrega com ela inúmeros relexos para o que uma maternidade privada considera ‘o melhor atendimento na hora do parto’. A Perinatal, ao ser representada na reportagem acima, sinaliza que o nascimento que lá ocorre é programado e organizado. Tal representação é corroborada pelas infor- mações insitucionais do site, especialmente, as que constam da icha de pré-internação que se refere à ‘data marcada para o parto’ (e não à data provável) e a qual não possui uma opção ‘parto normal’, apenas ‘cirurgia eleiva ou de emergência’.

O enfoque na festa planejada é incompaível com a caracterísica de imprevisibilidade dos partos em geral, mas é iel à imagem de ‘comodidade’ e ‘melhor atendimento’ enfaizada no site da Perinatal. Nele, ainda são ressaltados os serviços oferecidos de conveniência: serviços de hotelaria (decoração, tamanho, conforto dos quartos), serviços extras (atendimento VIP, fotos, ilmagem, manobrista) e ser- viços estéicos gratuitos (escova, manicure, massoterapia). A relação com a insituição é regida pelo discurso de cliente e consumidor, traduzida pelo discurso da ‘comodidade’, o qual relete uma mulher internada para ser paciente para, literalmente, não fazer nada e deixar que seu parto seja feito (for- necido) pela Perinatal e, como ‘cortesia6’, serão feitos (fornecidos) seu cabelo, unha, massagem. O discurso adotado pelas maternidades é uma mistura de um discurso supostamente desinado a infor- mar com um discurso desinado a fazer publicidade de produtos e serviços. Por im, com o intuito de dar ‘o melhor atendimento na hora do parto [...] O Projeto nascer [da maternidade Perinatal] oferece inanciamento especial para que todas possam contar com a Perinatal. Quem não tem plano de saúde [...] pode dividir o valor do parto’ (Perintal, website). Fairclough (1992, p. 116) traduz muito bem essa situação ao levar em conta o impacto da modernidade no discurso publicitário:

Setores da economia outrora alheios à produção de commodiies estão cada vez mais sendo arrastados para dentro do modelo de commodiies e para a matriz do consu- mismo, e sofrem pressão para ‘empacotar’ suas aividades como commodiies para ‘vendê-las’ aos ‘consumidores’7.

Na deinição de Bauman (2007, p. 108), na modernidade líquida, uma sociedade de consumidores é aquela que avalia seus membros com base naquilo que são capazes de consumir:

É uma sociedade que [...] ‘interpela’ seus membros basicamente, ou talvez até exclusi- vamente, como consumidores; e uma sociedade que julga e avalia seus membros prin- cipalmente por suas capacidades e sua conduta relacionadas ao consumo.

5 “It [the cesarean] has become a consumer good. In Brazil, this huge country whose populaion equals the

total of the German, French and Spanish populaions, the overall rate of C-secions is well above 50%”

6 “Para acompanhar as pacientes neste momento tão especial, a Perinatal Barra oferece, como cortesia, ser-

viços de manicure, maquiagem e massoterapia.” (Website Perinatal, 2014)

7 “Sectors of the economy outside commodity producion are increasingly being drawn to the commodity

model and matrix of consumerism, and are under pressure to ‘package’ their aciviies as commodiies and ‘sell’ tem to ‘consumers’.”

Texto 14. Site da Perinatal, Projeto Nascer (2014)

Ambos os discursos – o da maternidade e o da empresa de festas de nascimento – representam a mulher como sujeito passivo, desconectada de seu corpo, porém consumidora supostamente toda poderosa, perante a qual fornecedores aparentemente se curvam para realizar seus desejos – contanto que se pague por eles.

Por meio das noícias, a mídia é responsável pela valorização da ‘síndrome consumista’ (Bauman, 2007) e pela transmissão de “modelos de valores, de beleza, de felicidade que nos vendem – e que podemos adquirir até em suaves prestações mensais, para comprar os produtos, procedimentos, tratamentos que nos prometem fazer chegar a esses “ideais” diuturnamente desilados em imagens [...] que rapi- damente introjetamos como sendo o “nosso ideal”. E que impacta, assim, na formação de nossa subje- ividade, desde a mais tenra idade” (Moreno, 2012, p. 24).

Com isso, passamos boa parte da vida sendo treinados para almejar bens consumíveis (e.g. o hospital famoso, o médico renomado) e “‘para ver todos os relacionamentos em termos de mercado’ e encarar outros seres humanos, incluindo os amigos e membros da família, pelo prisma das percepções e avalia- ções geradas pelo mercado.” (Bauman, 2007, p. 150). O texto seguinte ilustra essa situação e também demonstra que despertar é possível.

Texto 15. O Renascimento do Parto – O Filme, Página do Facebook, 2014.

Por outro lado, enquanto o despertar não vem, a consolidação, reprodução e perpetuação da repre- sentação do nascimento veiculada pelas ordens do discurso da mídia e das maternidades vêm por meio de opiniões apresentadas como informadas e inteligentes, tal como a da colunista Tai Bernardi (‘escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados’) sobre o ‘nosso ideal’ de nascimento (ver texto abaixo).

Texto 16. Folha de São Paulo. Gata, eu não quero ver a sua xota (Bernardi, 2014, 21 de abril)

O evento discursivo acima é corolário da intertextualidade a serviço do discurso hegemônico. Apesar de produzida por alguém que pertence à faixa de mulheres com alta escolaridade e renda, em total contradição com a MBE, a opinião abaixo toma por naturalizado a cesárea como ‘ideal’ de nascimento e, com ela, carrega todos os desejáveis e almejados signos incuidos pelo discurso hegemônico:

• alta tecnologia (‘Tá, você colocou uma banheira de plásico no meio da sala...’ ‘A pis- cininha virou um marzinho de sangue...’)

• sistema centrado no médico (‘Vejo um médico cheio de doutorado e álcool gel e qua- se posso imaginar sua cueca vermelha por cima do collant azul.)

• superioridade da ciência (‘Vejo um médico cheio de doutorado e álcool gel e quase posso imaginar sua cueca vermelha por cima do collant azul.)

• consumismo (‘Gosto desses hospitais que poderiam estar num guia de hotéis três es- trelas de Miami. Quanto mais brega, mais eu conio: com salão de beleza e concerto de piano na recepção.’)

• desprezo por eventos naturais (‘...apoio e respeito quem escolhe parir nesses esque- ma humanizado-natureba-doula. Na banheira, na cachoeira, num ritual indígena, num chalé em monte verde.’)

• deslumbramento por processos industriais e reiicação de sujeitos (‘Custa só postar o resultado? Tudo bem se não iveram o bom gosto de dar uma limpadinha no bebê, ele envolto em secreções sebáceas também é puro amor.’), entre outros.

O poder das maternidades privadas está implícito nas ordens de discurso relacionadas acima, as quais