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Etapas metodológicas da pesquisa

1.4. Relatos de parto: histórico e relevância

Segundo Fairclough (2003, p. 216), os gêneros discursivos podem ser ideniicados em termos de nível de abstração. Na perspeciva do autor, há gêneros altamente abstratos – denominados pré-gêneros (pre-genres) – tais como a narraiva e descrição, pois estão presentes em diversos gêneros situados

(situated genres) que, por sua vez, são aqueles atrelados a determinadas redes de práicas sociais, tais como o relato de parto.

Neste item, buscamos situar o papel e a importância dos relatos de parto no universo do nascimento, bem como traçaremos um breve histórico de seu declínio à medida que as mulheres passaram a ser excluídas da posição central do contexto do parto, para, em seguida, abordar a importância de seu res- gate e seus desdobramentos. Ao inal, faremos um traçado das caracterísicas especíicas do ‘relato de parto normal após cesárea’ e uma exposição dos moivos pelos quais merecem ser objeto de análise. Os relatos de parto são histórias e “o valor das histórias é amplamente reconhecido do ponto de vista sociológico, as histórias possuem um papel chave no modo como os indivíduos interpretam eventos de vida” (Carolan, 2006, p. 67). Davies atribui às histórias o poder de tornar os eventos de vida inter- pretáveis, contáveis e vivíveis (1991, p. 343). Gergen (2001, p. 249) aponta que narraivas e histórias dão subsídios importantes a funções sociais tais como auto-idenidade, auto-jusiicação, auto-críica e idenidade social. As histórias são o principal meio pelo qual o indivíduo constrói o senido de suas experiências. Por meio de narraivas, compreendem-se eventos de vida, constrói-se uma idenidade (Carolan, 2005, p.5) e se busca aingir ‘plenitude ou saúde’: “As narraivas são geralmente entendidas como sendo histórias com estrutura e forma dinâmicas cujo objeivo é aingir a plenitude ou saúde23 (Sandelowski, 1994, p. 23).

A dinâmica feminina em relação ao parto e a transmissão de conhecimento sobre esse evento isiológi- co envolvia a práica e a contação de histórias, no tempo em que as mulheres deinham o conhecimen- to sobre o parto e dominavam sua técnica (Bak, 2003). Historicamente, os relatos de parto faziam parte de uma história oral feminina, passados de geração a geração: um legado feminino de conhecimento sobre o corpo e a idenidade. Para muitas mulheres, essa forma de comunicação era a fonte primária de conhecimento sobre a experiência do parto e, até meados do século passado, as mulheres apren- diam com mulheres sobre o parto, pois, até então, os nascimentos ocorriam predominantemente em casa. No passado, o parto era um evento familiar, sobretudo, feminino. Na modernidade, “as conexões entre a vida individual e o intercâmbio das gerações foram rompidas” (Giddens, 2002, p. 136)

Com o processo industrial e o desenvolvimento de tecnologias diversas, a passagem do nascimento pertencente ao feminino-domésico para o masculino-público decorreu de uma nova estrutura mé- dico-hospitalar que corroborava o modelo patriarcal da sociedade, centrado no masculino, e agora também na ciência, nas insituições – no controle da natureza pelo homem. Com os avanços da medi- calização e hospitalização, as mulheres foram, progressivamente, distanciadas de um contexto sobre o qual, até meados do século XIX, ainda deinham controle: o nascimento. A perpetuação de um modelo agora totalmente centrado no médico – e no masculino – está representada na fala abaixo:

Perguntei ao meu médico se eu podia escolher a posição para o parto, por exemplo de cócoras. Ele riu e falou que é pra eu irar essas ideias de parto hippie da cabeça. Eu insisi e ele disse que não estudou tanto para icar agachado igual a um mecânico.

23 Narraives area generally understood to be stories with a certain dynamic structure and shape directed toward achiev- ing wholeness, or health.

G. atendida através de plano de saúde no Rio de Janeiro (Parto do Princípio, 2012, p. 107)

O conhecimento sobre o nascimento foi reirado das mãos das mulheres, resultando no aumento do medo do parto (Bak, 2003), ainal o desconhecido é, naturalmente, temido. À medida que os nasci- mentos passam a ocorrer em hospitais, ‘nascer’ já não está mais na esfera da pessoa comum – no caso, das mulheres – e não pode mais ser acessado por elas (Lothian & Grauer, 2012, p. 125).

Além disso, a linguagem empregada reforça as relações de poder entre os atores envolvidos. Ao ser admiida em um hospital, a gestante passa de ‘pessoa saudável’ a ‘paciente doente’, o que faz com que renuncie ao controle sobre seu corpo, o qual é entregue aos proissionais, e assume uma condição de impotência (Conrad, 2001). Hoje, há um consenso de que o nascimento situa-se no reino masculino da ciência e da medicina (Bak, 2003).

Devido ao sistema centrado no médico, histórias entre avós, mães e ilhas foram modiicadas e apaga- das (Savage, 2011, p. 4). Segundo Savage (2011), as mulheres foram “silenciadas quimicamente” (alu- são ao uso da anestesia) e há gerações sem histórias de parto. A ausência da troca de experiência entre as mulheres faz com que poucas saibam que o momento do nascimento pode incluir apoio, orientação verbal, carinho e cuidado, elementos que alteram a essência ontológica de toda mulher. O silêncio sobre o nascimento, hoje, é regra (Armstrong & Feldman, 1990), foi naturalizado. A medicalização do nascimento, portanto, resultou na perda da familiaridade com a isiologia do parto, do senso de comu- nidade com outras mulheres e da sabedoria tradicional feminina (Arms, 1994).

A passagem do domésico para o hospitalar levou a uma total resigniicação do que é ser mulher e ‘ser’ capaz de parir. Como resultado o domínio da ‘ciência’, da cesárea, da anestesia, da tecnologia, enim, da medicalização do nascimento coninua a contribuir para o apagamento da tradição de contar histó- rias e para a valorização do medo em matéria de parto no Brasil e no mundo.

O caso brasileiro também é exemplo do ‘silenciamento’ das mulheres. As mulheres brasileiras não fo- ram silenciadas apenas a parir do controle da dor nos partos vaginais – como é relatado nos Estados Unidos – mas foram completamente exirpadas de qualquer paricipação em seu próprio parto com a explosão das cirurgias cesarianas iniciada na década de 70 (Davis, 2013) e que fez do Brasil de hoje o líder mundial em cesáreas, chegando a 90% de cesáreas na rede paricular, na maioria cirurgias elei- vas, sem indicação clínica.

Passados 30 anos desde a explosão das cesarianas no Brasil, muitas das bebês nascidas na década de 70 já se tornaram mães. Várias delas, sobretudo as de classe média, nasceram por meio de uma cirur- gia e foram preparadas, pelo discurso hegemônico, para encarar a sua própria operação, pois as histó- rias de parto de suas mães e avós não lhes foram transmiidas e pularam uma geração. São elas parte de uma geração que simplesmente ‘não fala mais’, ‘não aprende mais’ sobre parto em primeira mão (Lothian & Grauer, 2012, pp. 123 e 126). Sua percepção do nascimento, sua percepção da necessidade de uma cirurgia são moldadas pela cultura cesarista.

Por terem deixado de aprender sobre o processo com as mulheres de seus círculos, ou seja, em primei- ra mão, as mulheres passaram a temer o parto. Lothian & Grauer (2012, p. 123) apontam que homens

e mulheres aprendem sobre o parto pela televisão, livros e internet, que só mostram dor e problemas, e acabam por aumentar o medo existente.

Para resgatar essa familiaridade com o universo do parto, é necessário incenivar as mulheres a com- parilhar suas histórias com seus ilhos, amigos e familiares (Lothian & Grauer, 2012, p. 123 e 126) e, sobretudo, com outras mulheres.

Nota-se uma tentaiva de resgatar a tradição dos relatos de parto por parte do movimento do parto humanizado, movimento que, em reação à ideologia dominante, tem buscado não só alertar para a cultura da cesárea no Brasil, mas também enfaizar o protagonismo da mulher durante a gestação e o parto, ressaltando o caráter feminino, natural e isiológico em contraposição ao caráter médico-proce- dimental do parto, além de chamar atenção para os casos de violência obstétrica.

Nesse senido, há muitos sites e blogs com verdadeiras coletâneas de relatos de parto, pois por meio deles se busca informar e dar poder às mulheres para que tenham condições de assumir um papel aivo durante sua gestação e parto e possam fazer valer sua vontade dentro do aparato médico-hos- pitalar. Ao empreender sua pesquisa etnográica, Carneiro (2011) se surpreendeu com a facilidade de encontrar relatos de parto na internet.

Porém, durante o levantamento bibliográico para nossa pesquisa, ideniicamos que os estudos que abordam relatos de parto e birth stories se referem a relatos decorrentes de entrevistas, tanto nos estudos em áreas da saúde, especialmente na obstetrícia (em midwifery, não em obstetrics) e na en- fermagem, como em estudos no âmbito das ciências humanas (etnograia, linguísica).

Nas áreas da saúde, o relato não possui status alto em termos de nível de evidência cieníica e a razão apontada pela midwife e pesquisadora Savage (2001, p. 4) é ‘por conterem os relatos de parto grandes quanidades de informação e serem baseados em experiências reais de vida, poderiam desestabilizar o caráter ideal do modelo de parto médico’.

Consequentemente, os relatos de parto são preteridos em relação a gêneros mais convencionais e ‘mensuráveis’, i.e., originados na ciência e autoridade de falas feitas por proissionais da saúde e/ou conduzidas e roteirizadas por pesquisadores:

Currículos tradicionais sobre nascimento [...] estão preocupados com uma preparação abrangente (“ensinar tudo que deve ser ensinado”), os relatos de parto como uma importante fonte de conhecimento são sacriicados em prol de resultados mais ime- diatos, controláveis e mensuráveis. 24 (Savage, 2001, p. 6).

Isso não ocorre apenas na academia e na ciência, basta observar o conteúdo e o formato dos ‘cursos de preparação para o parto’ nas mais famosas maternidades da cidade de São Paulo. Deles não faz parte um único relato de parto proferido por quem passou pela experiência de um nascimento vagi- nal. O modelo é totalmente centrado na insituição e nos proissionais envolvidos que proferem falas na forma de palestras unidirecionais para um público supostamente ‘despreparado para o parto’. Os

24 Tradiional childbirth curriculums [...] [w]ith concern for comprehensive preparaion (“teaching all that must be taught”), birth stories as a criical way of knowing may be sacriiced for more immediate, controllable, and measurable outcomes.

discursos operados são o do medo e o do risco: “Muita coisa pode dar errado, mas iquem tranquilos, temos toda a ciência e tecnologia para todos os ipos de risco”. Em outras palavras: para quem só tem martelo, tudo é prego (Maslow, 1966, p. 15).

Ao não dialogar com a mãe – nem com o pai –, o modelo obstétrico atual mantém sua hegemonia e cria obstáculos à possibilidade de transformação, pois “sem diálogo não há metamorfose, não há interpretação” (Doll, 1993). “As narraivas esimulam o leitor a explorar com o narrador os potenciais criados a parir da troca. O diálogo reúne história, linguagem e local, relacionando a experiência para além do contexto imediato – tudo isso são ações viáveis do ensinar e do aprender” (Savage, 2001, pp. 5-6) ignorados pelas estruturas existentes.

Por conseguinte, promover o diálogo por meio de relatos em primeira mão, aproximando o parto do conhecimento comum, é sinônimo de ruptura com o modelo, abalo das estruturas hegemônicas que, como veremos no Capítulo 2 e 3, representam a mulher protoípica como ‘paciente’, ‘passiva’, ‘incapaz de parir’, ‘despreparada para o parto’, ‘guiada’, ‘cegamente coniante na autoridade’, ‘infanilizada’, ‘silente’, ‘sozinha’, ‘insegura’.

Em oposição às representações dominantes, no levantamento bibliográico sobre os relatos e parto, foram atribuídas aos relatos as qualidades de: conferir coragem e poder às mulheres em relação a seu papel de destaque na experiência do nascimento; conectar a narradora e a leitora a todas as mu- lheres do mundo e com as futuras gerações de mulheres culivando relacionamentos (Lindesmith & McWeeny, 1994); atenuar medos e exercer certo controle sobre o parto (Zwelling, 2000); aprender a ter coniança em si mesma e nos seus antepassados e um senso de dever com as futuras gerações; recobrar a coniança em seu corpo:

Como diz a minha mãe, o corpo é muito inteligente. É muito mais inteligente que pensamos. É inteligente o suiciente para respirar sem que tenhamos que fazer um esforço consciente de comando. É inteligente o suiciente para digerir comida. É inte- ligente o suiciente para se curar. É inteligente o suiciente para gerar outro ser vivo, alimentá-lo e protegê-lo, e é suicientemente inteligente para trazer esse ser vivo para o mundo.

[...]

O que se perdeu quando o nascimento saiu da esfera domésica e as parteiras para- ram de cuidar das mulheres grávidas, não foi apenas o conhecimento sobre os planos da natureza para o nascimento e sobre a capacidade das mulheres de dar à luz, mas perdeu-se também a coniança em geral. As mulheres e suas famílias parecem ter

perdido toda a noção da capacidade que tem a mulher de dar à luz sem intervenção médica.25

No Brasil, os relatos de parto são um elemento importante do movimento pela humanização do nasci- mento. O gênero ‘relato de parto após cesárea’ é uma forma de agir sobre a vida social dentro da visão de que o discurso possui uma relação aiva com a realidade (Fairclough, 1992, p. 41). Os relatos ajudam a ampliar o movimento de um modo autênico, baseado em experiências reais e realizadoras. As mu- lheres que passaram por uma experiência de parto humanizado são encorajadas pelos proissionais da área a soltar a voz, contar sua história e comparilhar um universo sobre o qual a maioria da população feminina no Brasil não fala mais e, como consequência, despertam, no mínimo, a curiosidade de outras mulheres, por vezes, o desejo e, sobretudo, abrem as portas para conscienização.

Sabe-se que a conscienização isoladamente não opera transformações sociais (Bourdieu, 2014). Para efetuar uma transformação social é preciso abalar e transformar as estruturas, além de saber aces- sá-las. Os relatos são expressões dessa força sísmica sobre o acesso às estruturas, pois a mulher que relata um parto normal após cesárea no Brasil em geral rompe com o sistema obstétrico e se nega a se submeter às tradicionais determinações estruturais, voltando-se contra o discurso hegemônico e ocupando o lugar central que lhe cabe. Toda vez que uma mulher se nega a se submeter – como nos casos de Adelir Góes e Rinat Dray visitados no Capítulo 3 – , o poder hegemônico é enfraquecido e as estruturas hegemônicas, abaladas. Os relatos de parto normal após cesárea são, essencialmente, ele- mentos de transformação social, bem como de solidariedade e ajuda mútua.

No Brasil, a escolha pela ruptura tem um signiicado ainda mais especial, pois, por ser a cesárea a regra na rede paricular, ao optar por um VBAC a mulher conscientemente se liberta das amarras do sistema obstétrico depois de ter sido, em muitos casos, viimada e enganada por ele. A força da sentença ‘Uma vez cesárea sempre cesárea’ é estarrecedora, já que, como veremos no Capítulo 4, a população acredi- ta e a classe médica corrobora – apesar de evidências cieníicas em contrário – que a mulher que pas- sou por uma cesárea deverá, necessariamente, passar por outra na gravidez seguinte. Não é à toa que, como veremos no próximo capítulo (Capítulo 2), o desejo de ter um parto é menor após uma cesárea. Os relatos de parto, como eventos do discurso e da práica, estão inseridos na ordem do discurso do movimento pela humanização do nascimento e, portanto, às margens do discurso hegemônico médi- co-intervencionista, ainda que estejam alinhados com as políicas públicas de saúde. Esses itens serão desenvolvidos nos Capítulos 3 e 4.

25 Like Mom says, the body is really smart. It is smarter than we even know yet. It is smart enough to breathe

without you consciously telling it to. It is smart enough to digest your food. It is smart enough to heal. It is smart enough to grow another living being inside of it, feed it, and protect it, and it is smart enough to bring that living being into this world.

[...]

What was lost when birth moved out of the home and midwives stopped providing care to childbearing women was not just a lack of knowledge about nature’s plan for birth and women’s ability to give birth but a lack of conidence in general. Women and their families seem to have lost all sense of women’s ability to give birth without medical intervenion. (Lothian & Grauer, 2012, p. 125)