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A representação do nascimento na saúde pública: um iro no pé

Deinição de relato de parto

3. As representações do nascimento

3.4. A representação do nascimento na saúde pública: um iro no pé

Diniz (2005) sinteiza o atual modelo público de atendimento à gestante no Brasil:

No modelo hospitalar dominante na segunda metade do século 20, nos países indus- trializados, as mulheres deveriam viver o parto (agora conscientes) imobilizadas, com as pernas abertas e levantadas, o funcionamento de seu útero acelerado ou reduzido, assisidas por pessoas desconhecidas. Separada de seus parentes, pertences, roupas, dentadura, óculos, a mulher é submeida à chamada “cascata de procedimentos” [...]. No Brasil, aí se incluem como roina a abertura cirúrgica da musculatura e tecido eré- il da vulva e vagina (episiotomia), e em muitos serviços como os hospitais-escola, a extração do bebê com fórceps nas primíparas. Este é o modelo aplicado à maioria das pacientes do SUS hoje em dia. Para a maioria das mulheres do setor privado, esse so- frimento pode ser prevenido, por meio de uma cesárea eleiva.

9 Na TV, o tema do programa Proissão Repórter de 29/4/14, da rede Globo com Caco Barcellos, foi a emoção de ter um ilho. O programa, ainda que tenha mostrado o alto índice de cesáreas, adotou, assim como as matérias na mídia, um níido recorte de classe ao abordar as duas vias de nascimento. Nos partos vaginais, as parteiras retratadas foram as tradicionais e as mães, mulheres humildes. Nos nascimentos cirúrgicos, foi retratada a classe média e seus signos de status (maternidades, quarto do bebê, champanhe, telão, ‘festa de nascimento’, etc.), bem como as cesarianas sem indicação médica (distância do hospital, medo da dor, circular de cordão etc) (Proissão Repórter, 2014).

Buscando reverter este quadro de indignidade humana e transformar a bagagem que vem com ele (alto índice de cesáreas desnecessárias, insaisfação com a experiência, violência obstétrica etc.), em 2000, foi insituído, pelo Ministério da Saúde (MS), o Programa de Humanização no Pré-natal e Nas- cimento - PHPN (Portaria/GM Nº569 de 01/06/2000) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com o programa, “toda gestante tem direito à assistência ao parto e ao puerpério e que seja realizada de forma humanizada e segura, de acordo com os princípios gerais e condições estabelecidas pelo conhecimento médico: e todo recém-nascido tem direito à assistência neonatal de forma humani- zada e segura” (MS, 2000, p. 5).

Entre as formas de implementar o programa, o Ministério da Saúde oferece à população, por meio de diversas estratégias, ações, campanhas, carilhas e relatórios, informações sobre o nascimento huma- nizado. Para ins desta pesquisa, e sem pretensão de esgotar o tema, selecionamos dois exemplos para demonstrar como o MS – apesar de formular políicas públicas em prol do nascimento aivo e desinar a essas políicas cerca de R$ 9 bilhões em 2014 – representa, em imagens, a mulher e o nascimento. Ambos os exemplos são baseados na representação que a Rede Cegonha faz do nascimento. A Rede Cegonha “é uma estratégia do Ministério da Saúde que visa implementar uma rede de cuidados para assegurar às mulheres o direito ao planejamento reproduivo e atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério, bem como assegurar às crianças o direito ao nascimento seguro e ao crescimento e desenvolvimento saudáveis” (Departamento de Atenção Básica, 2014).

O primeiro destaca o nome e a logomarca da Rede Cegonha (Texto 26) e o segundo (Texto 27) aborda a representação promovida por uma das ações da Rede Cegonha: o Guia dos direitos da gestante e do bebê (MS, 2011). Buscaremos contrastar as ilustrações apresentadas nos exemplos com o texto escrito que enfaiza a atenção ‘humanizada e acolhedora’ almejada pelas políicas do MS.

O objeivo da estratégia é assegurar às mulheres determinados direitos (i.e. poderes), porém, ao no- mear a estratégia ‘Rede Cegonha’ e ao traduzi-la em imagem, o MS conirma e reforça representações que tradicionalmente reiram a mulher da posição de protagonista do parto. É a cegonha que carrega o bebê e não a sua mãe, é a cegonha que ‘entrega’ o bebê à mãe e não a mãe que dá à luz a seu bebê. Ao eleger a cegonha, signo atrelado ao nascimento – do qual as mães não paricipam – em desenhos animados e ilmes, o MS parece endossar a situação de invisibilidade da mulher.

Texto 27. Logomarca e imagens veiculadas pela Rede Cegonha (Departamento de Atenção Básica, 2014)

A logomarca da rede é de autoria de Romero Brito10, – arista pernambucano radicado nos Estados Unidos, nascido em 6 de outubro de 1963, – o qual também fez outras imagens para o programa. Algumas das telas de Brito contêm elementos que remetem ao programa (e.g. a igura da parteira, a importância da família), porém, não possuem a mesma força nem grau de exposição da logomarca e do nome do programa. Outras imagens, todavia, reforçam as representações tradicionais, com as quais o programa se propõe a romper. Do canto superior esquerdo em senido horário, abaixo especiicamos o ítulo e oferecemos uma breve interpretação de cada imagem:

1) A parteira – A parteira está apenas olhando uma mulher que, provavelmente, estaria em trabalho de parto. A posição passiva da mulher não é compaível com a de um trabalho de parto aivo.

2) A mulher grávida – A mulher grávida está em pé, de braços levantados, exuberante. Porém, está sozinha, desacompanhada, desassisida. A imagem seria mais compaível com a proposta do MS se a parteira esivesse aqui.

3) A criança bandeira – A criança bandeira remete ao governo federal, órgão da adminis- tração pública que promove o programa. Uma possível leitura seria que o programa é para o bem do bebê. A mulher, de novo, não aparece. Possui quase um intertexto com a célebre frase usada para silenciar as mulheres em relação a sua experiência de nas- cimento: ‘O que importa é que nasceu com saúde’.

4) A tesoura – A tesoura, no nascimento, é usada para cortar o cordão umbilical e para realizar a episiotomia (corte na região do períneo). Trata-se de um instrumento cirúr-

gico. Duas possíveis leituras seriam: separação do bebê da mãe e possível realização de intervenções desnecessárias, ambas incompaíveis com a proposta do MS.

5) A família junta – A imagem da família junta, remete ao alojamento conjunto. Porém, o quadro retrata o pai como maior que todos os demais, velando pela família, podendo ser interpretado como o poder do pai sobre a mulher horizontalizada e seu ilho. 6) Bebê dormindo – O bebê dormindo está sozinho, sem mãe em ambiente supostamen-

te acolhedor (repleto de corações e estrelas), mas não como objeivam as políicas públicas (i.e. bebê junto com a mãe a maior parte do tempo).

7) A cegonha – Comentada em parágrafo acima.

8) Coração voando – Este quadro representaria o amor ou, ainda, o acolhimento, porém não sabemos de quem em relação a quem.

9) O casal pai e mãe – A família é retratada mais de uma vez nas imagens de Brito como a família composta por homem e mulher.

10) A criança bandeira – aparece duas vezes (ver 3).

O segundo exemplo selecionado são as imagens do Guia dos direitos da gestante e do bebê (Ministério da Saúde, 2011) do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), publicado no Brasil pelo MS. A exemplo do que izemos acima, selecionamos algumas imagens do Guia para compará-las com a aten- ção ‘humanizada e acolhedora’ almejada pelo discurso do UNICEF e do MS. A publicação, de 2011, está entre uma das fontes mais atualizadas acerca do tema humanização do nascimento.

As ilustrações foram feitas pelo escritor e ilustrador Ziraldo Alvez Pinto, mineiro nascido em 24 de outubro de 1932, provavelmente o mais conhecido desenhista e escritor infanil do país. É possível que a escolha de Ziraldo tenha sido moivada pelo fato de seu traço ser reconhecido facilmente pelos brasileiros, sendo capaz de despertar interesse do público-alvo o qual – se não for ler o guia por inteiro – certamente terá curiosidade de folheá-lo para ver as imagens.

As imagens de Ziraldo – 40 no total – contam a história de um casal à espera de seu primeiro ilho. En- quanto o texto escrito procura releir as políicas públicas de humanização do nascimento, autonomia da mulher, acolhimento, minimização de intervenções, as imagens contam uma história bem diferente. A primeira imagem contradiz o objeivo do Guia que é dar elementos ao público-alvo [“conselheiros, agentes comunitários de saúde, proissionais da assistência social, lideranças comunitárias, da impren- sa e da sociedade”] para fortalecer o controle social da atenção à saúde por meio da transmissão de orientação à população. Ou seja, por meio do Guia, o público-alvo se informa e desenvolve ações de orientação a gestantes, por exemplo. Porém, a ilustração mostra a família ‘lendo’ o guia – um guia que não foi produzido especiicamente para ela. No nosso entendimento, a ilustração abaixo poderia con- tribuir para reirar do público-alvo o ‘dever’ de informar e orientar.

O desenho de Ziraldo, todavia, relete o que se entende protoipicamente por guia. Em geral, um guia é usado por aquele que lhe dá o ítulo. Por exemplo, o Guia do Estudante é para o estudante. O Guia do Advogado Iniciante é para o advogado iniciante. O Guia dos Direitos do Consumidor é para consumi-

dores. O Guia Práico para o Parto Natural (Balaskas, 1996), é para quem vai parir naturalmente. Nessa linha, seria esperado um Guia dos direitos da gestante e do bebê que fosse para as gestantes e sua família (Texto 28). Um Guia dos direitos da gestante não produzido para a gestante só reforça o quanto a mulher no atual modelo de assistência não goza de acesso direto e necessita de intermediação11.

Texto 28. Guia dos Direitos da Gestante e do Bebê (Ministério da Saúde, 2011, p. 4)

A segunda imagem (Texto 29) traz um proissional da saúde apresentando um ultrassom. O laudo do exame ocupa a posição central do desenho e poderia representar ‘a palavra da ciência’. Em relação aos sujeitos representados, temos o proissional da saúde que está ligeiramente atrás do laudo e o pai em posição curvada. A mãe está voltada para o pai, com cara de espanto, parecendo esperar alguma reação deste, sem, contudo, interagir com o proissional responsável pelo atendimento. Nessa análise limitada, não foi encontrada representação do binômio ‘humanização e acolhimento’, salvo talvez pelo sorriso do proissional da saúde.

Texto 29. Guia dos Direitos da Gestante e do Bebê (Ministério da Saúde, 2011, p. 5)

11 Comparar com o The health professionl’s guide to: “Caring for your baby at night”, um guia para os prois- sionais da saúde para o guia dos pais da Unicef (Blair & Inch, 2011).

Texto 30. Guia dos Direitos da Gestante e do Bebê (Ministério da Saúde, 2011, p. 30)

A ultrassonograia é um exame não obrigatório segundo o próprio Guia (Texto 30). A realização de exames de ultrassom na gravidez, sobretudo ao inal da gravidez – como é o caso das mulheres nas pá- ginas 5 e 30 - tem sido associada ao aumento de cirurgias cesarianas. Uma das bases da humanização é atendimento sem intervenções desnecessárias. O Guia contém, ao todo, 2 desenhos representando o ultrassom e dedica outras 12 imagens a outros exames e intervenções.

Texto 32. Guia dos Direitos da Gestante e do Bebê (Ministério da Saúde, 2011, p. 28)

Texto 33. Guia dos Direitos da Gestante e do Bebê (Ministério da Saúde, 2011, p. 51)

Com base nos textos acima, durante os exames e intervenções, bem como durante todas as situações em que a mulher é retratada diante de um proissional da saúde, ela assume uma condição de passi- vidade releida em seus lábios quase sempre cerrados e pelos braços estendidos ao lado do corpo. É uma mulher que não quesiona, não apresenta dúvidas. O sujeito aivo, que fala e aponta, é o prois- sional da saúde.

Em diversos desenhos, quem interage com os proissionais da saúde é o pai. Tal representação, em paricular, contrasta quase que declaradamente com as políicas do MS, de um parto humanizado, centrado na mulher, marcado pela autonomia da gestante. No texto seguinte (p.52), por exemplo, ocorre exatamente o oposto: a mulher é retratada em posição deitada e inferior em relação aos sujei- tos masculinos, distanciados pelas máscaras desnecessárias. Essa mulher é negra e ambos os homens são brancos. Aquele que está segurando sua mão é o marido, mas isso só ica claro na úlima página do Guia – para chegar a essa conclusão é preciso lê-lo por inteiro.

Na igura do texto abaixo, o desenho de Ziraldo não deixa claro quem faz a opção, mas arrola os casos em que é possível ‘alguém’ optar. Nesse contexto de ‘opção’, todavia, é o médico que está falando com o marido. A mulher é representada como mera espectadora passiva aguardando a decisão masculina e da ciência.

Texto 34. Guia dos Direitos da Gestante e do Bebê (Ministério da Saúde, 2011, p. 52)

Na página 40, o Guia traz a imagem do parto humanizado (abaixo). Não ideniicamos exatamente o que a cena retrata, porém, pelo texto e pela indumentária do pai, é provável que seja o momento do parto em que o bebê vai direto para o colo da mãe, ‘entregue’ a ela pelo pai. Apesar de retratar um elemento importante para a saúde da díade mãe e bebê, o desenho reforça a passividade da mulher deitada que ‘recebe’ seu ilho.

Texto 35. Guia dos Direitos da Gestante e do Bebê (Ministério da Saúde, 2011, p. 40)

Em suma, os dois casos brevemente analisados acima – o do nome e logomarca da Rede Cegonha e dos desenhos no Guia dos direitos da gestante e do bebê – visam demonstrar como o texto escrito é pra- icamente desdito pelas imagens. A linguagem escrita das políicas públicas visa promover a atenção ‘humanizada e acolhedora’, porém os desenhos que constroem o discurso reforçam as ideias de passi- vidade da mulher, que é silente e/ou depende do marido para interagir com o sistema de saúde, o qual coninua a oferecer uma atenção baseada na ciência e centralizada no médico. As imagens do Guia não ensinam a ouvir. O texto escrito tampouco, pois ainda que airme: “A gestante precisa ser ouvida com atenção e ter suas dúvidas esclarecidas” (p. 26) pretere formas mais compromeidas e cogentes como: “Todos os proissionais de saúde devem ouvir a gestante” ou “Você, proissional da saúde, é obrigado a ouvir a gestante”.

Essa brevíssima e não exausiva interpretação das imagens que o MS usa para implementar suas po- líicas – e seu discurso – visa demonstrar como as forças hegemônicas e ideológicas se confundem e se sobrepõem nas representações do nascimento em uma práica discursiva que pretende reverter a situação social atual. A análise da representação da assistência ao nascimento nos desenhos de Ziraldo demonstra como a naturalização da ideologia dominante penetra políicas que, primacialmente, desi- nam-se a combatê-la. Ao levantar essas representações, é possível demonstrar como o próprio MS se coloca obstáculos, os quais poderia estar contribuindo para remover por meio de uma visão mais es- tratégica do discurso empregado em materiais de divulgação, campanhas publicitárias, programas etc. Vale notar que existem estudos sobre o discurso adotado por provedores de serviços de saúde em suas comunicações. Fairclough (1992, p. 175) cita uma análise críica do discurso contrastando um livreto sobre atenção pré-natal, The Baby Book (Morris, 1986) publicado por um hospital paricular, com o Pregnancy Book (Health Educaion Council, 1984), ambos desinados ao público gestante. Foi consta- tado que na primeira publicação, a gestante quase nunca era referida como agente das ações, papel

ocupado sempre pelos proissionais da saúde da insituição. Fairclough observa que as caracterísicas ísicas (sua altura, seu peso) ocupavam a posição de objeivo de uma ação praicada por outrem. Em outras palavras, o sujeito era desconsiderado ao serem destacados processos realizados com o seu corpo (medir, pesar etc.). Por outro lado, o material produzido pelo poder público, Pregnancy Book, era completamente diferente nesses aspectos, pois coninha muitos processos aivos desempenhados por ‘you’ (você)12 e ‘your’ (seu/s, sua/s) exempliicados em Fairclough (1992, p. 178):

You will probably want to ask a lot of quesions yourself – about antenatal care, about the hospital, about your pregnancy. You may also want to say something about what you hope for in pregnancy and at the birth. Tell the midwife anything that you feel is important. Write down in advance the things you want to ask or say. (Grifo nosso.) Chamar atenção para as múliplas representações de parto a que as gestantes brasileiras são expos- tas – e o discurso usado para referir-se a elas ou dirigir-se a elas – nos confere elementos para com- preender e interpretar os relatos de parto objeto desta tese. A seguir, trataremos da representação do nascimento no movimento pela humanização do parto, provavelmente, a representação que menos alcance possui se comparada às dos quatro itens anteriores, as quais alcançam centenas de milhões de pessoas no país.

3.5. A representação do nascimento no movimento