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A representação do nascimento no movimento pela humanização do parto: parir é poder

Deinição de relato de parto

3. As representações do nascimento

3.5. A representação do nascimento no movimento pela humanização do parto: parir é poder

Diniz (2005) traçou um panorama histórico e mulidisciplinar do termo ‘humanização da assistência ao parto’ no Brasil e no mundo. Revela a autora que o verbo ‘humanizar’ já foi usado com múliplas acepções. No início do século 20, por exemplo, “a narcose e o uso de fórceps vieram humanizar a assis- tência” (Diniz, 2005). Na acepção atual, segundo Diniz (2005), o sintagma ‘humanização da assistência’ começou a ser construído a parir da década de 50, pela ação de proissionais que abandonariam o modelo tecnocráico de assistência para promover movimentos como pró-parto como: o parto sem dor (Europa), o parto sem medo, o parto sem violência (Lamaze e Leboyer), o parto natural (The Farm, EUA). Na década de 70, o modelo de assistência tecnocráico passou a ser descrito como inadequado e a ser quesionado por diversos autores nas ciências sociais e nas ciências da saúde (Diniz, 2005). O fe- minismo (anos 50, 60 e 70) teve inluência marcante e lutou pela Reforma do Parto nos EUA e passou a redescrever a ‘assistência a parir dos conceitos de direitos reproduivos e sexuais como direitos huma- nos’,o que foi adotado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2005. A OMS desempenhou um importante papel na reconstrução da assistência ao parto e na consagração dos direitos das mulheres e dos direitos reproduivos (WHO, 1985, 1986, 1996, 1998, 2005). O apoio da OMS ao movimento pela MBE possibilitou que “estudos de eicácia e segurança na assistência à gravidez, parto e pós-parto fos-

12 O Guia dos direitos da gestante e do bebê apresenta apenas uma ocorrência de ‘você’, (i.e. conselheiros, agentes comunitários, proissionais da assistência social, sociedade etc.), referente, no penúlimo parágrafo da úlima página (p. 80). Em outras palavras, o Guia conversa com seu público, diretamente, em uma única ocasião: “Agora que você já tem informações, pode ajudar a mudar a realidade da sua comunidade e do

sem” sistemaizados para fundamentar a necessidade de transformação. Diniz (2005) destaca o papel da MBE na atenção ao parto:

O corpo feminino, antes necessariamente carente de resgate, é redescrito como apto a dar à luz, na grande maioria das vezes, sem necessidade de quaisquer intervenções ou seqüelas previsíveis. O nascimento, antes um perigo para o bebê, é redescrito como processo isiológico necessário à transição (respiratória, endócrina, imunológi- ca) para a vida extra-uterina. O parto, antes por deinição um evento médico-cirúrgico de risco, deveria ser tratado com o devido respeito como “experiência altamente pes- soal, sexual e familiar” (WHO, 1986). Os familiares são convidados à cena do parto, especialmente os pais, antes relegados ao papel passivo de espectadores. De evento medonho, o parto passa a inspirar uma nova estéica, na qual estão permiidos os elementos antes idos como indesejáveis – as dores, os genitais, os gemidos, a sexua- lidade, as emoções intensas, as secreções, a imprevisibilidade, as marcas pessoais, o contato corporal, os abraços.

A MBE confere legiimação para as transformações no modelo obstétrico e fortalece o discurso do movimento pela humanização do parto, o qual se baseia, sobretudo, no conhecimento state-of-the- -art: “No Brasil, por exemplo, as ‘Recomendações da OMS’ e o ‘livro do Enkin’ tornaram-se as grandes referências para os defensores da humanização do parto.”.

Entre as recomendações respaldadas pela MBE estão:

a necessidade de um acolhimento amoroso, com contato pele-a-pele precoce entre o bebê e o corpo de sua mãe, que previne que ele sofra de frio ao sair do calor e do aconchego do ventre. É necessário deixar que bebê aprecie o mundo de fora, que se permita a adaptação gradaiva, sem pressa, nem de cortar o cordão que o une à sua mãe através do umbigo: pode-se esperar que pare de pulsar. E se ele puder mamar já na primeira hora de vida, trocando o aporte de nutrientes que lhe chegava sem esfor- ço através da placenta pela mamada vigorosa já na sala de partos, quem deles cuida estará propiciando o estabelecimento de um vínculo muito forte, que inluenciará as relações da família. (Ratner, 2014)

Diniz (2005) detalha a trajetória do movimento pela humanização do parto no Brasil em várias frentes. Segundo a autora, o movimento teve início na década de 70 por “proissionais dissidentes, inspirados por práicas tradicionais de parteiras e índios [...] grupos de terapias alternaivas”. Na década seguinte, diversos grupos passam a oferecer “assistência humanizada à gravidez e parto e propõem mudanças nas práicas, como o Coleivo Feminista Sexualidade e Saúde e a Associação Comunitária Monte Azul em São Paulo, e os grupos Curumim e Cais do Parto em Pernambuco” (Diniz, 2005). Em 1993, é fun- dado a ReHuna (Rede pela Humanização do Parto) pela Carta de Campinas (Rehuna, 1993). Na década seguinte, é fundada a Maternidade Leila Diniz no Rio de Janeiro e são propostas as Casas de Parto, as quais sofrem resistência até os dias atuais. A parir de 2000, o MS passa a promover o Programa de Hu- manização no Pré-Natal e Nascimento (PHPN) e o Programa de Humanização de Hospitais. Em 2005 e 2007, foram materializados importantes elementos da Políica de Humanização: a Lei do Acompanhan-

te (Lei 11.108/2005) e a Lei da Vinculação Prévia à Maternidade (Lei 11.634/2007). Ainda no âmbito da administração pública, em 2011, foi lançada a Rede Cegonha, que aricula diversas áreas do MS. À luz do exposto, compõem o movimento pela humanização diversos atores, entre os quais: a adminis- tração pública (execuivo e legislaivo, funcionários públicos em geral), os proissionais independentes, insituições privadas e públicas, redes e os organismos internacionais. No item anterior, tocamos em dois exemplos de como o Ministério da Saúde representa e busca implementar seu programa de huma- nização. Em complementação, este item não coninuará a tratar do movimento pela humanização do ponto de vista dos órgãos oiciais, mas abre espaço para um cotejamento entre a representação feita pela administração pública e a feita pelo movimento pela humanização no âmbito da sociedade civil. No âmbito da sociedade civil, o movimento é composto por organizações formalmente consituídas (e.g. ReHuNa, Liga pela Humanização do Parto), por grupos com sede ísica (e.g. GAMA – Grupo de Apoio à Maternidade Aiva), bem como por grupos em rede (Parto do Princípio) e, ainda por grupos virtuais para discussão e informação (e.g. Cesárea? Não, obrigada.) ou reunido para ins especíicos (e.g. panletospartohumanizado@yahoogrupos.com.br). Além de aividades coleivas, há diversos ‘ai- vistas de sofá’ bastante atuantes por meio de instrumentos virtuais pariculares (e.g. Facebook, blogs) individuais e/ou coleivos. Em muitos casos uma pessoa está ligada a mais de uma aividade dentro do movimento.

Entre as ações da sociedade civil dentro do movimento pela humanização do parto estão: √ comparilhar informações cieníicas baseadas em evidência – em muitos

casos mediante a tradução de arigos e noícias para o português,

√ opor-se a práicas não baseadas em evidências (e.g. episiotomia, lavagem intesinal, tricotomia e toda sorte de intervenção comprovadamente desnecessária)

√ promover espaços para discussão e esclarecimento de dúvidas – por meio de grupos virtuais ou encontros, palestras, cursos etc.,

√ organizar manifestações, marchas e mamaços13 – em casos de ilegalidades ou represálias praicadas contra proissionais humanizados ou mulheres (e.g Marcha pelo Parto em Casa, Marcha Somos Todas Adelir),

√ denunciar desrespeito às leis e políicas de humanização – aos órgãos competentes e também para a sociedade civil como um todo,

√ combater o poder hegemônico – em, regra com humor e ironia,

atacando as tradicionais representações do nascimento, principalmente as abordadas nos primeiros três itens deste capítulo,

√ denunciar índices de cirurgia cesarianas de médicos, hospitais e maternidades – de forma a pressionar proissionais e insituições a aderirem à políica nacional de humanização,

√ comparilhar experiências – aqui os relatos de parto desempenham um importante papel.

As ações do movimento da sociedade civil visam, no âmbito coleivo, combater injusiças e promover a transformação do modelo obstétrico. No âmbito individual, visam apoderar cada mulher que entra em contato com o movimento, auxiliando-a a tomar as rédeas de seu parto, abrindo e ensinando o caminho de uma experiência de parto humanizado, para que, ao inal, esta mulher aumente o coro e alimente o movimento. O primeiro alimento que toda mulher tocada pelo movimento da humanização é convidada a dar após parir é seu relato de parto, o qual é, em muitos casos, a porta de entrada para outras formas de engajamento.

Feito um breve histórico do movimento pela humanização do parto e recortado o aspecto do movi- mento que destacaremos nesta tese (i.e. o movimento da sociedade civil), passemos à representação da mulher tomando por base os exemplos abaixo que incluem respecivamente: logomarca de grupo de apoio (Texto 36), cartaz convocando para marcha pela humanização (Texto 37), panleto distribuído a mulheres na rua (Texto 38), colagem feita por aivista em apoio à marcha (Texto 39) cartaz para curso de doulas (Texto 40), cartaz para exposição de fotograias (Texto 41) e fotos de relato de parto (Figura 03).

Texto 36. Logoipo do Grupo de Apoio à Maternidade Aiva (GAMA) por Denize Barros

Texto 38. Panletos distribuídos a mulheres nas ruas, inclusive durante as marchas. Arte por

Luca Fernandes. Texto: Grupo panletospartohumanizado@yahoogrupos.com.br

Texto 39. Colagem produzida pela pesquisadora no papel de aivista em apoio à marcha pela humanização do parto e divulgada em rede social Facebook (Carvalho, 2013, 18 de junho)

Texto 40. Cartaz promovendo curso de doulas publicada em Blog da doula Gisele Leal. Ilustração de Anne Pires (Mulheres Empoderadas, 2014)

Figura 03. Fotos do relato do parto da Luciana Benai (Benai & Min, 2011)

Em contraste com os demais textos e imagens apresentados neste capítulo, principalmente com os adotados pelo MS no Guia, os elementos que mais chamam atenção nos materiais produzidos no seio do aivismo são:

a) a visibilidade da mulher – A mulher está presente em todas as imagens adotadas pelo movimento aivista. Levando em conta que a políica de humanização enfaiza a liber- dade de a mulher fazer escolhas (de procedimentos, de posição etc) e de a mulher exercer seus direitos (de ser escutada, amparada, irar dúvidas etc.), nada mais com- paível e, aparentemente, óbvio. Todavia, o discurso adotado pelo MS, por exemplo, para promover essa mesma humanização emprega, por exemplo, uma logomarca – a da Rede Cegonha – em que a mulher não aparece, é invisível e por consequência de- simportante ou até desnecessária.

b) a invisibilidade do proissional da saúde – Enquanto que no Guia dos direitos da ges- tante e do bebê, os proissionais da saúde estão presentes na maioria dos desenhos e, em regra, ocupam uma posição de poder, marcada por elementos de autoridade e importância como vericalidade do corpo, centralidade, posicionamento atrás de sig- nos de poder (mesa, exames), realização de aividades burocráicas e clara aividade oral; nas imagens empregadas pelo movimento da sociedade civil, os proissionais da

saúde são retratados em segundo plano, retratados parcialmente (e.g. presença de uma mão) ou nem sequer retratados.

c) a vericalidade da mulher – A mulher é retratada vericalmente em diversas imagens do movimento pela humanização do parto. Aparece reclinada sobre o marido, recos- tada na banheira, de cócoras, em conformidade com os princípios do protagonismo e de liberdade de movimento. A mulher é a primeira a segurar seu bebê nas imagens. Na comparação com a representação do momento do parto pelo Guia, temos uma mulher deitada que parece ‘receber’ o seu bebê do marido. Outro elemento impor- tante da vericalidade é a posição dos braços, os quais estão sempre aivos, como na logomarca do GAMA, no cartaz de convocação para a marcha, no cartaz do curso dou- las, em contraste com os braços da gestante do Guia que, em regra, aparecem esira- dos ao longo do corpo.

d) a centralidade da mulher – A mulher ocupa posição central nas imagens. Em muitos casos ela aparece sozinha com seu ilho ou rodeada de proissionais que não são colo- cados acima dela (Figura curso doulas).

e) o apoio proissional dado à mulher – A mulher é amparada e acolhida por diversos proissionais (Figura curso doulas) que se mostram solidários e com ela têm contato ísico direto. No Guia, por outro lado, o único momento de contato ísico entre o pro- issional e a parturiente é na preparação para a cesariana e durante a ultrassonograia. f) o engajamento do companheiro – A igura do companheiro/a é uma constante nas

imagens comparilhadas pelo movimento pela humanização, contrastando com o ‘pai mascarado, entocado e enluvado’ do Guia, o qual, paradoxalmente, traz a palavra ‘pai [da criança]’ apenas uma vez, mas o super-representa em imagens. No Guia, o com- panheiro aparece dando apoio ísico à parturiente em três situações: 1) na primeira, enquanto a mulher está na banheira. Porém, nota-se que o desenho parece deslocado do ambiente hospitalar, já que a mulher está em uma banheira cheia de espuma (Tex- to 42); 2) na segunda, durante uma cardiotocograia, o companheiro aparece masca- rado, entocado e enluvado (Texto 43); 3) na terceira, durante a decisão pela cesariana, na qual o marido é quem fala com o médico (Texto 44).

Texto 42. Guia dos Direitos da Gestante e do Bebê (MS, 2011, p. 47)

Texto 44. Guia dos Direitos da Gestante e do Bebê (MS, 2011, p. 52)

g) a díade mãe e bebê – O contato pele a pele com o bebê recém parido é ressaltado. A mãe é representada, autenicamente, suada e feliz e seu bebê saudável está ‘suji- nho’ (presença de vérnix, sangue etc) em seus braços, pois, segundo os princípios da humanização é no colo da mãe que ele deve permanecer. O texto do Guia, apesar de airmar que “Assim que nasce, o bebê deve ser limpo e secado apenas para reirar o sangue”, é atrelado a uma imagem violenta de choro e aparente esfregação de um bebê que acaba de chegar ao mundo (Texto 45)

h) a voz da mulher – A mulher que não fala – e portanto não é ouvida – nos desenhos do Guia, contrasta com a mulher que grita nas fotos dos relatos de parto (Benai & Min, 2011).

i) a realidade das fotos – O movimento pela humanização do parto é marcado por fotos e vídeos do momento de parto. Os relatos de parto são repletos de fotos de diversos momentos do nascimento, já a escolha de desenhos para representar momentos da vida real é a estratégia adotada pelo MS, a qual poderia ser interpretada como uma ‘contação de história’, algo que seria bonito na teoria, mas feio na práica.

j) o discurso dirigido à mulher – Os textos escritos que acompanham as imagens falam diretamente à mulher: provocam (“E você?”), convidam (“Uma oportunidade de imer- são em si mesma”), ensinam (“Parir é poder.”, “É direito seu.”) e engajam (“Pesquise”, “Denuncie”) etc.

O presente capítulo teve o intuito de revelar as representações de nascimento com as quais as mulhe- res brasileiras entram em contato ao longo de sua vida por meio de diversos discursos que se relacio- nam o tempo todo e a relação entre eles (interdiscursividade) inclui analogia, oposição, complementa- ção e ‘relações mútuas de delimitação’ (Foucault, 1972, p. 69 citado em Fairclough, 1992, p. 48). Nesse senido, observa-se que as representações que reletem o discurso capitalista hegemônico (a das novelas, séries de TV, mídia de noícias) - remetem: ao parto que dói, à mulher que precisa ser salva, ao pai que só atrapalha na hora do parto, ao pai que deve se manter distante, à ‘loucura’ e ‘selvageria’ do nascimento vaginal, à cesárea das celebridades que queriam normal, mas ‘não deu’, à valorização da ciência e do ‘médico estrela’, à cesárea objeto de consumo na maternidade chique e segura etc. A representação do nascimento pelo MS é marcada por uma profusão de contradições em termos dos objeivos da políica pública e da realização do discurso. A escolha de pinturas e imagens feitas por aristas desconectados com a proposta de humanização não poderia ter ido outro resultado que não o reforço das práicas tradicionais e do modelo centrado no médico. O texto marcado por passivas sem agência (e.g. “A gestante deve ser escutada.”) distancia a mulher da assistência e desobriga o prestador. Esses são apenas algumas das questões e problemas apresentados pelo discurso do MS.

Por outro lado, ainda que hegemonia corresponda a liderança – das 3 primeiras representações – , ela está constantemente sujeita a intempéries. Nesse senido, as ordens de discurso, por mais esta- belecidas, são também instáveis e vulneráveis a – e também palco de – constantes lutas pelo poder (hegemonic struggles). É esta a proposta do aivismo da humanização, abalar as representações natu- ralizadas na sociedade por meio de fotos reais, interpelação constante do sujeito (Você, sua, si mesma) e embasamento cieniíco. É sabido que as ordens de discurso se ariculam e se reariculam incessan- temente e contribuem em diversos graus para sua reprodução ou transformção e para a reprodução ou tranformação das relações de poder existentes. Ainda que a representação humanizada do parto não seja a dominante no país, o futuro não nos parece lúgrube, levando em conta o recoret teórico adota- do, segundo o qual “a hegemonia é o poder de uma determinada classe econômica sobre a sociedade

14 “Hegemony is the power over society as whole of one of the fundamental economically-deined classes in

alliance with other social forces, but it is never achieved more than parially and temporarily, as an ‘unsta- ble equilibrium’”.

4. O contexto do nascimento no Brasil e seus paradoxos