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A representação do nascimento vaginal pela mídia: coisa de pobre e de übermodel

Deinição de relato de parto

3. As representações do nascimento

3.3. A representação do nascimento vaginal pela mídia: coisa de pobre e de übermodel

Em linha com o impacto à nossa subjeividade, vejamos agora quem, de acordo com a mídia, tem par- to normal e em que circunstâncias. Foram ideniicadas duas situações extremas na representação do parto normal pela mídia. A primeira, de mulheres ‘na rua’ que precisaram ser ‘salvas’. A segunda, de mulheres formadoras de opinião que passaram por uma experiência de parto ‘inacreditável’.

Para ilustrar a primeira situação, os textos abaixo são de duas noícias sobre o mesmo evento: o parto de Daniela Almeida de Souza, 31, empregada domésica que entrou em trabalho de parto na ida para o trabalho. Segundo a noícia televisionada, pela Globo TV (Jornal da Manhã, 2014): “Os dois policiais [...] izeram o parto dela” e “Daniela estava na rua, sozinha, quando começou a senir as dores do parto”. A noícia escrita também informa que ‘os policiais realizaram o parto’. Em outra noícia de parto, en- volvendo a Polícia Militar (PM), outra ‘jovem foi socorrida por um vizinho’ e ‘o parto foi realizado’ tam-

bém pelos policiais (G1 Globo, 2014). Outra noícia (texto abaixo) informa que a PM também atendeu o parto de duas moradoras de rua em São Paulo, ambos feitos na própria base da PM, com posterior encaminhamento ao hospital.

Texto 17. G1 Globo. Policiais militares fazem parto na Praça da Sé, em SP (G1 Globo, 2014)

As mulheres representadas pelas noícias acima são pobres e desamparadas e, segundo as matérias, correm perigo. Elas entram em trabalho de parto ‘na rua’ ou ‘indo para o trabalho’ e precisam ser so- corridas. O socorro que vira noícia é o socorro prestado pela PM, cuja imagem na mídia, por sua vez, costuma ser de uma polícia cruel e homicida8, com marcado recorte social e racial. Portanto, temos imagens antagônicas: ao mesmo tempo em que a desumanidade da PM é retratada nas ações que ceifam vidas das camadas menos privilegiadas, é também a PM que assume uma imagem de salvadora nas noícias associadas ao nascimento dessas mesmas camadas.

Ao realizar uma busca por imagens posiivas da PM, destaca-se o ‘socorro’ a partos. São centenas de noícias de norte a sul do país. Como a PM é órgão responsável pelo policiamento ostensivo, não é de se estranhar que policiais estejam por perto quando mulheres entram em trabalho de parto em locais públicos, porém a prestaividade dos policiais que ‘realizam’ ou ‘fazem’ o parto da mulher é sempre destacada pela grande mídia, pela própria PM e por diversos atores sociais, os quais lançam mão dos nascimentos para ‘humanizar’ a insituição.

8 Algumas manchetes sobre a Polícia Militar: Polícia mata cinco pessoas por dia no Brasil, Jornal O Globo Duarte & Benevides, 2013); PM do Rio e de SP mata mais que países com pena de morte, Jornal do Brasil (Prado, 2012); Polícia Militar mata mais 4 em confrontos na Grande SP, Folha de São Paulo (Izidoro, 2000).

Texto 18. Página do site do Deputado Roberto Lucena (2012, 6 de junho)

As mulheres nessas noícias são sempre ‘salvas’ por policiais militares que ‘fazem o parto’ e, segundo os textos, dão à luz à criança apesar da mãe, a qual é representada como pessoa ‘em perigo’ e, portan- to ‘socorrida’ por proissionais especializados em situações críicas e arriscadas, como, ‘obviamente’, o parto.

O desfecho das histórias também segue um padrão, porém diferente do padrão ‘acabou sendo cesá- rea’ das mães famosas. As mães ‘salvas’ pela PM, a despeito de todo o risco relatado, sempre ‘passam bem’ após o ocorrido e o seu bom estado é subliminarmente atribuído ao suposto ‘salvamento’ e não ao fato de o trabalho de parto ter ocorrido sem que houvesse tempo para intervenções, em ambiente supostamente acolhedor, com o apoio humano solidário dos policiais.

A segunda situação de parto normal comumente noiciada pela mídia é a de mulheres formadoras de opinião que passaram por uma experiência ‘inacreditável’. Escolhemos dois exemplos para ilustrar o discurso da mídia nesses casos. A primeira noícia abaixo aborda o ‘parto na banheira de casa’ da ‘top brasileira’, Gisele Bundchen, ‘a top brasileira mais conhecida do planeta’.

Texto 19. Istoé Gente. Gisele versão mamãe (Zaramella, 2010)

O discurso de Gisele Bundchen sobre seu parto é representado na noícia em forma de discurso direto, o qual, como forma de intertextualidade, é incorporado de forma marcada e explícita. Nesse senido, há uma clara separação entre o discurso da jornalista e o da entrevistada na reportagem.

Na conversa com a jornalista Giuliana Morrone, ela revelou detalhes sobre o nascimento do bebê e contou que fez o parto em casa. “O meu foi na banheira. Foi um parto na água. É que eu me preparei muito. Eu queria muito ter um parto em casa, sempre achei muito importante”, disse. Durante a entrevista, Gisele revelou que não seniu dor durante as oito horas de parto e contou que se recuperou logo em seguida: “No segundo dia, eu estava caminhando, lavando a louça e fazendo panqueca. Vamos embora, bola para a frente, eu não tenho tempo para icar sentada na cama”, concluiu. (Grifo nosso).

Texto 20. Istoé Gente, Gisele versão mamãe (Zaramella, 2010)

A noícia como um todo se conforma ao tradicional modo de representar Gisele Bundchen, como sen- do uma super top model, mulher de beleza inaingível e, agora, após esta noícia, de realizações inal- cançáveis. Os aparentes superpoderes de Gisele não são descritos pela jornalista. É a própria Gisele que ‘revelou que não seniu dor durante as oito horas de parto e contou que se recuperou logo em seguida’ e que logo após já retomara sua vida normal porque não tem tempo ‘para icar sentada na cama’. O mesmo acontecimento foi televisionado pelo Fantásico e transmiido no site da Globo com a seguinte manchete: ‘Meu parto foi na banheira e nem um pouco dolorido’, conta Gisele Bündchen.

Texto 21. G1 Globo, ‘Meu Parto foi na banheira e nem um pouco

dolorido’, conta Gisele Bündchen (G1 Globo, 2010)

Ambas as noícias resgatam informações consideradas conhecidas e comparilhadas pelo público-alvo de que o parto é dolorido e sofrido para todas as mulheres, a não ser para a Gisele Bundchen, cujos super poderes aparecem subliminarmente em discurso direto sobre sua mãe: “Quem precisa de babá quando se tem uma super mãe?”. E uma super mãe, só poderia ter uma super ilha (“Eu espero ser uma mãe tão maravilhosa quanto a minha foi para mim”.) .

Por outro lado, em total antagonismo ao discurso direto de Gisele, o texto que narra o acontecimento está marcado pelas imagens das diiculdades do parto: ‘Embora o trabalho de parto tenha durado oito horas...’; ‘conta que não sofreu’; ‘mesmo voltando às passarelas, ela conta que não tem babá’.

“O meu [parto] foi na banheira. Eu me preparei muito. Queria um parto em casa, sempre achei muito importante porque queria estar consciente na hora do nascimento”, disse a top. “Eu não queria estar dopada e sim presente. Então, eu me preparei bastante. Fiz muita yoga e meditação. Então, consegui ter um parto super tranquilo em casa. Ele nasceu tranquilo, é um anjinho. Não chorou após nascer e icou o tempo inteiro no meu colo”, contou.

Embora o trabalho de parto tenha durado oito horas, Gisele conta que não sofreu. “Não foi nem um pouco dolorido. Durante todo o tempo eu estava muito focada. Depois de cada contração eu pensava assim: o meu bebê está mais perto, ele está mais perto”, disse. (Grifos nossos.)

O discurso direto de Gisele é empoderado e repleto de agência (eu iz, eu me preparei, consegui ter um parto etc.), porém a negaividade da narraiva do jornalista impregna o texto de incredulidade e inaingibilidade, quiçá ironia. Enquanto Gisele ‘conta’, o jornalista, em seu antagonismo, praicamente a desdiz. Na visão bakhiniana de Fairclough, há um jogo dinâmico de vozes entre ‘as vozes do discurso representado e do discurso representante’ e levanta a questão sobre até que ponto o discurso repre- sentado é traduzido para fortalecer a voz do discurso representante (1992, p. 119).

Em suma, ambas as noícias, portanto, reforçam a imagem da super Gisele, que além de não ter sofri- do, deu à luz em casa, o que no Brasil é muito raro, ao contrário do que ocorre na Holanda, por exem- plo, em que 20% dos partos são domiciliares. Essa é mais uma construção do texto que distancia, ainda mais, os leitores, os quais seriam levados a concluir que um parto na banheira, sem dor e em casa é só para mulimilionárias como a Gisele, que não moram no Brasil.

Outra modelo brasileira que teve parto natural foi Fernanda Lima, a qual também recebe da mídia tra- tamento de ‘incomum’ e de ‘mulher maravilha’.

Texto 23. IstoÉ Gente, A chegada dos gêmeos (Rodrigues, 2008)

Parto natural

Fernanda optou por um procedimento saudável, porém incomum atualmente em se tratando do nascimento de gêmeos. A decisão pelo parto normal foi anunciada pela apresentadora assim que ela soube que esperava dois bebês. [...]

[...] A julgar pelos nove meses de gestação, Fernanda tem tudo para ser um modelo de mãe. Durante a gravidez, a ex-modelo pouco engordou e manteve a boa forma graças a uma dieta balanceada de alimentos naturais e saudáveis para os bebês e para ela própria. Outro cuidado foi com a práica diária da ioga durante todo o período de gestação. A opção pelo parto normal também foi uma aposta da apresentadora, que já havia completado os nove meses de gravidez, mas resolveu esperar até o úlimo momento clinicamente aceitável para dar à luz os meninos da maneira mais natural.

O parto natural de gêmeos é considerado ‘um procedimento saudável, porém incomum’. Ao considerar o parto um ‘procedimento’ a noícia revela a ideologia dominante do nascimento no Brasil: o parto como evento cirúrgico e não isiológico. O texto ainda revela o que o imaginário midiáico considera ‘ser um modelo de boa mãe’. Trata-se de, basicamente, não engordar e manter uma dieta balanceada e praicar ioga. O texto não menciona a preparação envolvida para se alcançar um parto natural no Brasil e considera a opção da apresentadora ‘uma aposta’, ou seja, deixa nas mãos do desino, de deus, do acaso, e não o vincula à vontade ou ação da mulher. O parto também é representado como tendo hora deinida, pelos médicos, para acontecer no ‘úlimo momento clinicamente aceitável’.

Texto 25. IstoÉ Gente, Fernanda Lima Mulher Maravilha (Honor, 2009)

Por im, nos itens acima buscamos tecer considerações e relações sobre o discurso empregado para re- presentar a experiência de nascimento em quatro grupos de mulheres: o primeiro, composto por mu- lheres na icção; o segundo por mulheres famosas que passaram por nascimento cirúrgico; o terceiro, por mulheres na rua cujos partos foram ‘feitos’ pela PM e, o úlimo, por mulheres famosas que iveram parto normal. Para concluir este item, sinteizamos a representação dessas experiências tomando por base a agência das mulheres sobre seu corpo e o nascimento de seus ilhos. Entende-se por agência, a capacidade de fazer escolhas e agir no mundo. Na terminologia empregada no parto humanizado, agência é sinônimo de protagonismo no parto.

No primeiro grupo, composto por mulheres representadas na icção, a agência no momento do parto é, em geral, reduzida. A agência maior é do médico ou da parteira. São eles a tomar decisões, a orien- tar, dirigir e até mesmo ignorar a mãe – e o pai. A gestante assume o papel de sujeito passivo, hipossui- ciente e controlado. Exceção é feita às personagens rebeldes, a essas é conferida agência no momento do nascimento, bem como qualidades de maldade, loucura e selvageria.

No grupo de mulheres famosas que passaram por cesárea, também observamos duas situações: o parto normal muito desejado e tentado que acaba não acontecendo e a cesárea agendada que vira manchete. A voz dessas mulheres é ouvida e costuma expressar o desejo e certa capacidade de escolha (‘optar’). No caso do parto, porém o desejo nunca se materializa por razões alheias e forças superiores (deus, natureza) e a resignação e o conformismo são os senimentos que o leitor infere.

No terceiro grupo, formado por mulheres trabalhadoras9 que estavam ‘na rua’ e foram ‘socorridas’, a agência é também reduzida. A atuação é da Polícia Militar que ‘faz o parto’ e salva a mulher do perigo que é ‘dar à luz’. Essas mulheres sempre ‘passam bem’, mas não por agência delas, mas graças à PM. Essas mulheres não ‘optam’, tampouco são ouvidas sobre a experiência que é retratada como a face humana da PM.

No quarto e úlimo grupo, estão aquelas que alcançaram a almejada experiência de parto. As matérias não destacam o discurso empoderado dessas mulheres, mas a ele atribuem ares de incredibilidade e excepcionalidade. O parto vira uma excentricidade (‘incomum’), uma obra do acaso (‘aposta’) e uma quase-menira (‘não sofreu, conta.’), em vez de releir a intensa preparação e agência marcante dessas mulheres (eu iz, eu me preparei).

Por im, após exempliicar como se dá a representação do nascimento na icção e no noiciário, vale notar que: as noícias divulgadas pela mídia operam um trabalho ideológico ao transmiir as vozes do poder de uma forma habilmente disfarçada (Fairclough, 1992, p. 110). A forma disfarçada e discreta com que o noiciário reforça e conirma a ideologia das maternidades privadas é coroada pela repre- sentação do nascimento na icção: o mais perfeito intertexto e o mais perfeito interdiscurso.