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A representação do oral na língua escrita literária

PARTE I – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Capítulo 2. Língua, escrita e oralidade

2.3. A representação do oral na língua escrita literária

Há autores que enfatizam que a principal manifestação da linguagem é a língua falada, o que quer dizer que a comunicação na sociedade, ainda hoje, se realiza principalmente por meio da fala e nem sempre foi (ou é) representada por meio da escrita. Ong (1998, p. 15) se expressa em suas pesquisas da seguinte forma:

(...) Na realidade, a linguagem é tão esmagadoramente oral que, de todas as milhares de línguas – talvez dezenas de milhares – faladas no curso da história humana, somente cerca de 106 estiveram submetidas à escrita num grau suficiente para produzir literatura – e a maioria jamais foi escrita. Das cerca de 3 mil línguas faladas hoje existentes, apenas aproximadamente 78 têm literatura (Edmonson (1971, pp. 323, 332)). Não existem, por enquanto, meios de calcular quantas

línguas desapareceram ou se transformaram em outras antes que a escrita surgisse. Ainda hoje, centenas de línguas ativas nunca são escritas: ninguém criou um modo eficaz de escrevê-las. A oralidade básica da linguagem é constante.

Deve-se atentar para as diferenças nas observações de Ong. Nesta citação suas considerações sobre a quantidade de línguas faladas que nunca são escritas se referem às línguas “ativas”, ou seja, a todas as línguas faladas no mundo que nunca são (ou foram) escritas e nas quais “a oralidade básica da linguagem é constante”. Lembramos que, conforme já mencionado neste trabalho, Ong também se refere á “oralidade primária” existente na cultura em que se desconhece totalmente a escrita ou a impressão (e que, ainda hoje, existe). Para o autor, essa “oralidade primária”, opõe-se à “oralidade secundária” das sociedades que conhecem e utilizam todos os meios de comunicação modernos.

Marcuschi (2001, p. 35) observa a escrita de Stubbs, segundo a qual, apesar da precedência da fala sobre a escrita com referência à postura ideológica, o prestígio da escrita é superior ao da fala em muitas culturas. Entretanto, apesar dessa constatação, não resta dúvida de que os povos continuam a ser basicamente orais.

Finnegan (1977, p. 1-7) afirma que, apesar das raízes orais da linguagem, os estudos científico e literário da linguagem e da literatura rejeitaram a oralidade durante séculos. Acrescenta, ainda, que o termo literatura foi, em sua origem, destinado às obras escritas, mas foi posteriormente ampliado para incorporar as narrativas orais tradicionais em culturas que não tinham contato com a escrita. À princípio, a escrita foi utilizada sobretudo em textos poéticos, que eram mais cultivados por serem de fácil memorização e por serem mais apreciados. Marcuschi (op. cit., p. 29) ao estudar a visão culturalista sobre a questão da oralidade versus escrita, cita a crítica sobre essa tendência, de Biber (1988), o qual postula que foi graças à escrita que a língua se tornou “um objeto de estudo sistemático. Com a escrita criaram-se novas formas de expressão originando-se, desse modo, as formas literárias” e foi graças ao seu aparecimento que se iniciou o ensino formal da língua para atender aos objetivos das “sociedades ditas letradas”. A esse propósito, lembramos que as formas literárias já existiam antes do aparecimento da escrita, compondo a literatura oral, graças à qual, costumes, histórias e tradições de muitas sociedades se preservaram.

Ong (op. cit, p. 14) lembra-nos que os primeiros estudos sobre as diferenças entre modos e expressão na língua escrita e na língua oral ocorreram nos estudos literários e não na lingüística aplicada ou cultural, tendo sido iniciados com Milman Parry (1902-1935) sobre o texto da Ilíada e da Odisséia, terminados por Albert B. Lord e complementados por Eric A . Havelock e outros. Essa observação, cremos, dá relevância ao papel da literatura, importante meio de expressão do indivíduo e da sociedade.

São de Rocco (op. cit., p. 74) as seguintes considerações a respeito da importância da literatura e da “reinvenção” da oralidade na vida dos indivíduos:

Os níveis verbais de uma escrita, reinaugurada pela força da literatura, assumem agora feições inimagináveis que permitem a um autor, entre outras tantas possibilidades, reinventar, pela sofisticação dessa nova forma de escrita, aquela oralidade do homem comum que se enxerga recriado, ao ler o texto de arte que reconstrói a cotidianeidade de cada um por meio da narrativa ficcional ou da expressão poética.

Preti (1984b), analisando a obra de Joaquim Manuel de Macedo, aponta a existência de traços típicos de um dialeto social culto ao lado de traços lingüísticos populares, tais como:

(...) combinações pronominais oblíquas, tratamento gramatical “correto”, colocação pronominal com o uso freqüente de mesóclise e ênclise, emprego de tempos verbais raros em língua oral, como por exemplo, o pretérito mais-que-perfeito; verbo haver impessoalizado no sentido de existir; regências indiretas, como assistir a, períodos longos, com perfeita distribuição de suas orações, em particular da subordinação etc. (op. cit. p. 82)

Traços semelhantes dessa linguagem culta também podem ser observados na linguagem de José Cândido de Carvalho, apontando uma mescla que torna rica e que colabora para tornar único o estilo desse autor.

Prosa ou poesia, a criação literária produz semelhante efeito. Paz, em suas reflexões, leva-nos a considerar a relação entre o homem e a poesia: um relacionamento íntimo, que o transpassa e o transforma:

A poesia coloca o homem fora de si e, simultaneamente, o faz regressar ao seu ser original: volta-o para si. O homem é sua imagem; ele mesmo e aquele outro. Através da frase que é ritmo, que é imagem, o homem – esse perpétuo chegar a ser – é. A poesia é entrar no ser. “ (Paz, 2006, p. 50)

Segundo o autor, é por meio da poesia que o homem reencontra a si mesmo ao incorporar o texto repleto de imagens múltiplas: metafóricas, sonoras, visuais; nele mergulha e dele emerge transformado, lapidado: um ser mais humano mais completo, mais capaz de compreender melhor a si mesmo e ao outro.

A literatura faz uso livre da língua que lhe serve de suporte e vincula-se à sociedade que cerca o artista, visto que ele participa sempre, de alguma forma do mundo em que vive. Ele recria essa realidade de modo a originar uma realidade ficccional, estabelecendo uma relação dinâmica entre o artista, o público e a vida real. É por meio da imaginação que se processa a criação livre dessa supra-realidade.

Como se pode depreender, a língua culta é naturalmente distinta da língua falada. Essa diferença decorre das diferenças vocabulares, tais como o vocabulário do cotidiano do vocabulário culto, das expressões vulgares, das gírias, dos regionalismos e outros mais; das construções frasais, de fatores decorrentes do contexto que determinam os diferentes modos de falar, dos usos que se faz dessa língua, das questões cinésicas, enfim, de muitas outras variantes aqui apresentadas. O escritor pode compor, da forma que lhe parece mais adequada, a linguagem que utilizará em sua obra, transformando-a em literatura. Lapa (1998, p. 57) observa que é tarefa do escritor transpor a linguagem de todos os dias para a obra literária, um trabalho “delicado” no qual “reside a marca do verdadeiro escritor”. O escrito literário é enriquecido pela aquisição da cultura que proporciona à pessoa que escreve uma maior possibilidade de utilização da língua culta, proporcionando- lhe uma maior capacidade de trabalhar com textos literários.

Coube aos escritores do Movimento Modernista na Literatura Brasileira, período literário ao qual pertenceu José Cândido de Carvalho, a utilização em seus textos, de uma linguagem que se aproximasse o máximo possível da linguagem do cotidiano, espontânea, natural e carregada de vocábulos e expressões populares, repleta de efeitos de sentido e de expressividade. Esses autores tiveram como precursores, os escritores do Romantismo, um dos quais, Joaquim Manuel de Macedo, já citado, e também alguns autores realistas, dentre

os quais destacamos Machado de Assis. É imprescindível lembrar também, que a narrativa é um dos gêneros mais populares, tanto na literatura oral, quanto na escrita, ainda em nossos dias. Servem-se dela os literatos, os cineastas, os contadores de histórias, o povo que conta e reconta suas tradições, lendas e crendices, perpetuando a memória e tornando perpétuo o passado histórico das nações.