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Provérbio, ditado, dito popular e dito sentencioso

PARTE I – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Capítulo 4. Variedades lingüísticas: variedades socioculturais e interacionais

4.2. Modismos lingüísticos

4.2.4. Provérbio, ditado, dito popular e dito sentencioso

• Provérbio

Serra e Gurgel (op. cit, p. 42) declara que o provérbio tem seu uso consagrado e está perfeitamente integrado aos costumes das pessoas e dos grupos sociais dos quais elas participam. Também está associado às influências do sistema político patriarcal, que impunha regras de conduta às sociedades. O provérbio não está limitado por fronteiras nacionais. Sua tradição deve-se às heranças de outras civilizações, de outras línguas e de outras culturas. Ele é difundido principalmente por meio da língua falada, apresentando uma “construção simples, direta e objetiva, estrutura de significados bastante acentuada e forte”. Na literatura, geralmente nota-se o uso desse recurso lingüístico em situações que reproduzem falas cotidianas, falas entre indivíduos de pouca cultura. Nesse sentido, concordamos com esse autor em sua afirmação:

Poder-se-ia situar num contexto de literatura popular, de cordel lingüístico, já que o provérbio e suas referências mais simples como a sentença e a máxima têm muito mais do que poderia ser classificado como manifestação de cultura popular com ampla penetração no folclore. (op. cit. p. 42)

Para Rocha (1995, p. 82), “o provérbio constitui um discurso de autoridade, ou um discurso autoritário: não apenas ele provém de uma sabedoria anônima incontestada, mas impõe-se pela força ao impedir a reciprocidade característica do intercâmbio lingüístico”. Na opinião de Authier-Révuz (1984), os provérbios constituem, por excelência, o discurso do outro, um discurso codificado e citado. Ong (1998, p. 17) complementa: “os provérbios são ricos de observações acerca desse espantoso fenômeno humano do discurso na sua forma original oral, acerca de seus poderes, sua beleza, seus perigos”.

Quando aparece em um discurso, o provérbio se constitui em um discurso autoritário porque tem origem em uma sabedoria anônima incontestada e porque não permite a reciprocidade característica de uma conversação, assim como o clichê, cuja força argumentativa e política foi estudada por Reboul (conforme item anterior). No provérbio não se apresentam marcas de espacialidade e de temporalidade específicas, generalização essa que permite sua repetição eterna. Assim, um provérbio como “Em terra de cego quem tem um olho é rei”, contém as verdades que permanecem válidas em qualquer tempo, espaço ou situação. Os provérbios podem ser encontrados nos mais diferentes tipos de discurso, entre falantes de diversas raças, faixa etária e classe sócio- econômica.

Urbano (2002, p. 253), observando o provérbio como enunciado inter-intra discurso dentro de interações, ressalta o caráter argumentativo, expressivo e a propriedade do seu uso em situações contextuais. Assim, ele se refere às diferentes definições de provérbio, à heterogeneidade do discurso de Authier-Revuz, às noções de polifonia de Ducrot e à intertextualidade de Barthes.

O provérbio é perpetuado por meio da repetição e de sua fixação na cultura dos povos através do tempo. Para que isso aconteça, o papel do “reenunciador” é fundamental. Rocha (1995) define o reenunciador como a pessoa que memoriza o provérbio, cita-o em proveito próprio, contextualizando-o adequadamente. Essa pessoa não é a criadora, a produtora do enunciado, apenas a emprega em situações diversas, da forma que lhe parece mais apropriada a seus propósitos.

Koch, Bentes e Cavalcanti (2007, p. 45) falam em détournement, vocábulo mantido em francês, de acordo com Grésillon e Maingueneau (1984, p. 114)21, que o definem da seguinte forma: “O détournement consiste em produzir um enunciado que possui as marcas lingüísticas de uma enunciação proverbial , mas que não pertence ao estoque dos provérbios reconhecidos”. O seu objetivo é fazer com que, ativado o sentido original do provérbio pelo interlocutor, ele o use como argumento, faça ironias ou o ridicularize, contradiga-o, ou que o modifique de alguma maneira, conservando sempre as características originais que permitam ao interlocutor recuperá-las em seu repertório discursivo. Para as autoras, o détournement é uma das diversas formas de

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intertextualidade, objetivando a produção de sentidos. Diversos são os exemplos de retextualização22 que aparecem em clichês, provérbios, (conforme constatamos em 4.2.3. e 4.2.4.), ditados, canções e poemas populares, em títulos de filmes ou de textos literários, de fábulas tradicionais, de hinos e outros mais. Essa retextualização pode ser constituída por meio de substituição de fonemas ou de palavras, por acréscimo, por supressão, por transposição.

Observamos que José Cândido de Carvalho utiliza esse recurso de retextualização com freqüência, embora não seja encontrado nos recortes que fizemos para análise, na PARTE II, capítulo 8. Entretanto, é o caso de:

Um homem é um homem, um gato é um gato! (CL, 64:4)

Do ponto de vista semântico esse provérbio corresponde a outro atualmente em moda: “Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.”, registrado por Lacerda et al (1999) em seu dicionário; entretanto, nessa obra não consta o provérbio enunciado pelo coronel. Os dois provérbios citados, cremos, têm o mesmo significado o que faz com que o leitor facilmente perceba a intertextualidade. No provérbio de José Cândido de Carvalho, as duas afirmações assemelham-se porque têm a mesma estrutura: são duas frases justapostas, separadas pela vírgula, ambas baseadas na repetição do artigo indefinido (um), seguido de substantivos que se repetem (homem, gato), tendo o mesmo conector (é). Esse tipo de construção de frase imprime um ritmo binário que facilita a memorização; lembra as parlendas infantis que são facilmente decoradas pelas crianças. Lembramos ainda Mota (1982, p. 249) que registra outro provérbio semelhante aos dois anteriormente citados: “Um homem é um homem e um bicho é um bicho”.

Como exemplo de retextualização por substituição de palavras, Koch, Bentes e Cavalcanti citam, entre outros, o provérbio “Quem espera sempre alcança.”, que foi retextualizado por Chico Buarque, em “Bom Conselho”, como: ”Quem espera nunca alcança.”

Uma outra forma de détournement aparece em:

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Marcuschi (2001) estuda a retextualização de textos falados para textos escritos, com vários exemplos de depoimentos jurídicos, entrevistas orais coletadas pelo NELFE (Núcleo de Estudos Lingüísticos da Fala e Escrita ) e do Projeto NURC (Dino Preti, 1984:75).

Melhor engorda do boi é o olho do dono. (CL, 17: 13)

O provérbio foi reformulado pelo autor que inverteu a ordem dos elementos (sujeito e predicado) do provérbio e acrescentou o adjetivo melhor; o provérbio é mais conhecido popularmente como: “O olho do dono engorda o boi”. É curioso notarmos que no Dicionário de provérbios, Lacerda et al registram “O olho do dono engorda o cavalo” (p. 249). Segundo a classificação de Koch, Bentes e Cavalcanti, cremos tratar-se de um exemplo de transposição, por ser semelhante ao exemplo citado pelas autoras:

E1: “Pense duas vezes antes de agir”. E2: “Aja duas vezes antes de pensar”.

(Chico Buarque, “Bom Conselho”)

• Ditado, dito popular e dito sentencioso

Ditado, dito popular e dito sentencioso são diferentes nomenclaturas dadas a expressões curtas, de caráter popular, de autoria desconhecida, próprias da cultura popular. Essas expressões têm como objetivo a revelação de uma verdade de modo parcial ou integral. Assemelham-se ao provérbio, quanto a suas características e uso, mas dele diferem pelo teor da mensagem.

Serra e Gurgel (op. cit., p. 61) define o ditado de maneira bem objetiva: ‘frase popular, curta e anônima que contém uma observação moral, um conceito ou um conselho; provérbio, adágio”. Percebe-se, nessa definição a semelhança entre o ditado e o provérbio, o que possibilita a confusão no uso das duas palavras, ou até mesmo o uso de uma pela outra, como sinônimos.

O Dicionário Michaelis constata que os ditados também apresentam semelhanças com os provérbios no sentido de impor-se pela força. A palavra ditado, substantivo masculino, significa “aquilo que se dita ou se ditou” (o verbo ditar aparece com

o significado de: “prescrever, impor”; “sugerir, inspirar”23). O termo dito, substantivo masculino, encontra-se registrado como “conceito, máxima, sentença”. O adjetivo

sentencioso tem a seguinte definição: “Diz-se da expressão ou escrito que encerra uma

lição moral ou um ponto de doutrina exposto com certa gravidade, laconismo ou agudeza”. Acrescentamos ainda que, cabe aqui o mesmo argumento defendido por Urbano em relação aos provérbios, concernente ao caráter argumentativo, expressivo e à propriedade do uso dos ditados nas situações contextuais, ou seja, podemos deduzir que as diferenças entre provérbio e ditado são pequenas, dificultando a identificação entre eles, em muitos casos.

A frase feita, conforme Serra e Gurgel, é definida como “um enunciado fixo, consagrado pelo uso”; uma “expressão consagrada pelo uso”.

No romance analisado, o estudo do provérbio, do ditado, do dito popular, do dito sentencioso e da frase feita mostra-se de grande interesse, pois o personagem central, Ponciano de Azeredo Furtado, utiliza-os com freqüência, como argumentos para a defesa de suas opiniões frente aos interlocutores. Ele deseja, assim, fazer prevalecer suas idéias mediante o aval imbatível e irrefutável do senso comum. Trata-se, portanto, de um dos traços definidores de sua personalidade.

Esses fenômenos lingüísticos são também importantes na criação da voz narrativa pois, segundo Cândido (2002, p. 350-352), definem “o ângulo, ou o enfoque do narrador, condicionando um certo tipo de estilo”, como em I Malavoglia em que um narrador neutro, em terceira pessoa, fala como os personagens rústicos cuja vida ele narra. É por meio do lugar-comum, da repetição e do provérbio que o discurso indireto livre da narrativa é “amarrado”, em função de um “mundo popular, fechado e recorrente”. São maneiras de “petrificar a língua”, evitando a surpresa e as novas experiências. “Eles formam um sistema coeso, na medida em que o provérbio é, na verdade, o lugar-comum elevado pela repetição a um alto grau de formalidade”.

Entretanto, reafirmamos que, como nos fragmentos dos textos 1, 2, 3 selecionados para análise, constantes da PARTE II do trabalho, não se registra nenhuma citação de ditados ou de provérbios, o fenômeno fica sem exploração. Acreditamos que os

exemplos citados constituam um pequeno, porém importante mostruário dessa característica de fala própria de Ponciano de Azeredo Furtado e, portanto, de seu autor.