PARTE I – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Capítulo 3. Recursos relacionados à conversação
3.1. Estratégias discursivas
3.1.1. Diálogo (em sentido restrito)
3.1.1.4. Discurso indireto (DI)
Martins (op. cit., p. 193) aponta uma segunda denominação para o discurso indireto: estilo indireto. Segundo ela, ao “transcrever o enunciado de outra pessoa”, ou dele mesmo, dito em outra ocasião, o emissor faz alterações, suprime parte ou todas as particularidades expressivas, tais como as exclamações, orações volitivas, gírias, ou outras que caracterizam a fala do locutor citado. Neste caso, o falante, ao não transmitir diretamente a fala da pessoa, repete o conteúdo do que foi dito por outra pessoa, ou seja, ele faz uma citação de fala. Trata-se, por conseguinte, de uma maneira de se transmitir o sentido daquilo que foi dito e não de se reproduzir a forma lingüística enunciada ipsis
enunciada. Cabe a ele supor e acreditar que a nuance atribuída à fala pelo narrador corresponde à intenção de seu enunciador.
Do mesmo modo, na narrativa escrita, o escritor “incorpora na sua linguagem a fala das personagens, transmitindo-nos apenas a essência do pensamento a elas atribuído.” (Garcia, op. cit., p. 111). Com essa idéia concorda Maingueneau (2002, p. 149) ao afirmar que no DI relata-se o “conteúdo do pensamento” e não as palavras tais quais foram enunciadas. Portanto, é o narrador quem informa ao leitor o conteúdo ou pensamento por meio do DI.
No discurso indireto (oratio obliqua) os verbos dicendi são o núcleo do predicado da oração principal, sendo seguidos por um complemento (objeto direto), representado por orações substantivas iniciadas por que ou se (conjunções integrantes): João disse que estava na casa de Maria. À oração subordinante que apresenta o verbo de elocução, pode seguir-se, também, uma oração infinitiva: João disse estar na casa de
Maria. Portanto podemos concluir que a característica dominante é a da subordinação.
A essas definições, cabe acrescentar Maingueneau (2002), para quem essa transformação mecânica do discurso direto em indireto é preconceituosa. É o sentido do verbo que introduz o DI (e, podemos acrescentar, ou da frase que introduz o DI) que faz com que percebamos a existência de um discurso relatado e, não uma simples oração subordinada substantiva objetiva direta:
As falas relatadas no DI são apresentadas sob a forma de uma oração subordinada substantiva objetiva direta, introduzida por um verbo dicendi (“contaram-nos que...”). Diferentemente do que acontece no discurso direto, é o sentido do verbo introdutor “contaram” que mostra haver um discurso relatado e não uma simples oração subordinada substantiva objetiva direta. De fato, do ponto de vista sintático, nada distingue “Paulo diz que está chovendo (discurso relatado) e “Paulo sabe que está chovendo” (sem discurso relatado). (op. cit., p.150)
Ainda conforme Martins, se o verbo de elocução for de interrogação, usa-se o
se (conjunção integrante, também considerado como partícula de interrogação indireta), ou
o vocábulo interrogativo (quem, o que, qual, quanto, onde, como, por que, quando): Ela perguntou quem estava á porta/ Ela perguntou quanto custava o pato. (op. cit., p. 194)
Alterações devem ser efetuadas nos seguintes casos:
a) A primeira pessoa passa à terceira pessoa, salvo se o enunciado for do próprio locutor.
b) Os advérbios de lugar e tempo correspondentes ao ato da enunciação sofrem alterações conforme o quadro a seguir:
Advérbio Substituído por
Aqui Lá
Agora Então, naquele momento
Hoje Naquele dia
Amanhã No dia seguinte
Ontem Na véspera, no dia anterior
Desse modo, o discurso direto, João diz: - Maria esteve aqui o dia todo, se enunciado no estilo indireto, passará a João disse que Maria estivera ali o dia todo.
c) Os tempos e modos verbais também sofrem alterações:
Tempo verbal Substituído por
Presente Passado
Futuro do presente/presente com valor de futuro
Futuro do pretérito
Pretérito perfeito Pretérito mais-que-perfeito
No exemplo anterior João disse que Maria estivera ali o dia todo, os verbos
dizer e estar sofreram as transformações presente/passado (diz/disse) e pretérito perfeito/
pretérito mais-que-perfeito (esteve/estivera).
d) os verbos ir/vir; levar/trazer também podem ser trocados, se o lugar da enunciação não for o mesmo. Desse modo, a frase em discurso direto Eu vou à escola, terá como seu correspondente em discurso indireto: Ele disse que irá à escola.
e) Quando a oração for subordinada a um substantivo correspondente a um verbo de elocução, ela é classificada como completiva nominal: Eles atenderam ao apelo de que
cessassem a greve de fome.
No texto de José Cândido de Carvalho nota-se, em relação aos discursos direto e indireto que o autor faz uma mescla do discurso direto com o discurso indireto de forma que a fala do narrador se mescla à do personagem. O discurso indireto narrativo prevalece enquanto o direto é usado como uma espécie de reforço, de ilustração, talvez para dar maior veracidade à história ou, talvez, para tornar a narrativa mais real e interessante ao ouvinte, como se pode constatar no trecho:
Na esteira da desavença, veio Pernambuco tirar a limpo o havido e acontecido. Refutei as ofensas do moço engenheiro e de Fontainha fiz gato- sapato:
- Um vira-bosta, doutor, um sujeitinho que a bem dizer peguei de fundilho rasgado, na porta do Banco da Província.
Nogueira virou, mexeu, mediu a saleta em passo de botina lustrosa, limpou a testa, e falou. Deixei o doutor soltar a língua, como fazia nas demandas da justiça. No fim, como quem presta um favor, disse que eu devia ter cuidado:
− Formas híbridas
Maingueneau (2002, p. 151) aponta a existência de formas híbridas em um texto que, no seu todo está em discurso indireto e que apresenta palavras enunciadas em discurso direto, atribuídas a enunciadores citados. A essas formas híbridas ele chama de “ilha textual” ou “ilha enunciativa”. O exemplo dado ilustra claramente a existência do discurso direto, que está isolado por aspas e que se encontra complementando um discurso indireto:
Em Dublin, no final de 1966, sr. Chirac declarou que o euro era necessário “para o trabalho e para o crescimento”.
Le Monde, 4 de março de 1977.
O leitor deduz que o trecho destacado por aspas, “para o trabalho e para o crescimento”, é a reprodução das palavras que Chirac pronunciou naquela ocasião.
Essa ilha textual pode ser representada pelo itálico e é, somente por meio tipográfico que ela pode ser identificada.
Uma outra forma híbrida de discurso direto, comum na mídia da atualidade é o discurso direto com “que”. O autor atribui essa forma, comum na Idade Média, que está retornando sob a influência da televisão, à vontade dos jornalistas de manterem um distanciamento das pessoas que falam e, ao mesmo tempo, de reproduzirem suas palavras, na busca de retratar a realidade. É o que mostra o exemplo:
Preso a uma onda de lembranças que ressurge, este último conta que o momento “era muito duro de suportar. Eu não tinha mais reflexo. Tinha me tornado espectador”.
France Soir, 19 de março de 1997.
Note-se que, além do sinal gráfico, nesse caso representado pelas aspas, o discurso direto pode ser identificado pela mudança do pronome pessoal. O relato que se inicia na terceira pessoa (este último) com um discurso indireto (conta que = v. dicendi + que) muda repentinamente, sem nenhuma indicação clara (não há sinais de pontuação,
mudança de parágrafo ou o anúncio da fala direta do interlocutor) para um relato em discurso direto em primeira pessoa (Eu não tinha; (eu) Tinha)