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Autor, interlocutor, narrador e personagem – o foco narrativo

PARTE I – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Capítulo 1. Da fala à narrativa falada e escrita

1.3. Autor, interlocutor, narrador e personagem – o foco narrativo

Autor, interlocutor, narrador e personagem enlaçam-se e se relacionam a partir do momento em que se cria (ou se conta) uma narrativa. No ato da criação o autor sempre pressupõe um interlocutor, seja um leitor, no caso da narrativa escrita, seja um ouvinte, quando a narrativa for oral. Também o narrador tem como destinatário um interlocutor (leitor/ouvinte).

O narrador, o interlocutor, o personagem e o autor são presenças obrigatórias no processo narrativo, ainda que nem sempre de forma explícita ou por estarem realizando algum ato de linguagem: o personagem ou suas ações podem estar sendo descritos pelo

narrador; outro personagem pode estar fazendo juízos de valor acerca do personagem principal e assim por diante. O autor pode se manifestar de formas diversas, tais como pela própria estruturação da narrativa, pela escolha vocabular, pela manifestação de suas idéias e convicções, traduzidas por um (ou por vários) personagem. O interlocutor pode ser interno ao texto, personificando-se em um dos personagens, ou pode-se constatar a existência do interlocutor representado pelo leitor, externo ao texto com o qual o autor sempre dialoga, seja de forma explícita, seja de forma velada, deixando pistas e com sua presença inferida por aquele que lê. O leitor interlocutor é contestado por Bronckart (1999, p. 93,94), para quem, embora haja interação, só há interlocutor se houver interlocução, isto é, respostas, trocas de turnos etc. Nesse sentido, o leitor não pode ser um interlocutor.

Depreendem-se, pois, dois planos narrativos: um plano interior no qual os fatos se passam no interior do personagem que analisa sentimentos, emoções, reflexões, conflitos e outro, um plano exterior, que permite ao narrador relatar fatos externos, referentes à realidade social, política econômica etc.; trata-se de um tipo de narrativa objetiva, enquanto o primeiro caso é um tipo de narrativa psicológica. Lembramos que denominações diversas são atribuídas aos diferentes tipos narrativos.

Nesse sentido, é de suma importância examinar-se o ponto de vista ou foco narrativo em que as situações se apresentam. Entenda-se aqui o termo “foco narrativo” na perspectiva de Leite (1985, p. 89) que faz constar no “Vocabulário Crítico” de seu livro, a seguinte definição:

Foco narrativo: - problema técnico da ficção que supõe questionar “quem

narra?”, “como?”, “de que ângulo?”. Para muitos é sinônimo de ponto de vista, perspectiva, situação narrativa ou mesmo narrador. O termo ficou conhecido a partir do livro de Cleanth Brooks e R. P. Warren, Understanding Fiction, de 1943, onde aparece em inglês, como focus of narration.

Em uma das perspectivas possíveis, o narrador pode ficar oculto. Ele não se apresenta. É o narrador em terceira pessoa. Ele conhece tudo o que se passa na alma das pessoas e os fatos. Sua visão é ampla, menos parcial, por estar “fora” dos acontecimentos. É o narrador onisciente que tudo vê e tudo sabe e que Friedman (1967), cuidadosamente resenhada por Leite (op. cit. p. 26), chama de “autor onisciente intruso”. Esse modelo leva

em consideração a “cena” e o “sumário narrativo”. Este, segundo a autora é um “relato generalizado” ou uma série de eventos expostos que abrangem certo período de tempo e vários locais, e parece ser o modo simples de narrar; a cena imediata é a que surge assim que os detalhes de personagens, ação, tempo e lugar aparecem; é, portanto, gerada por esses elementos, que fazem parte inerente dessa cena.

Tal narrador pode também narrar os fatos em diversos ângulos: do centro dos acontecimentos, de sua periferia, frente a eles, mudando essas posições a seu bel prazer. Ele é um “intruso” nos momentos em que tece comentários diversos; sobre a vida, a moral, os costumes de forma integrada (ou não) aos acontecimentos. Esse posicionamento gera um distanciamento do leitor em relação ao que está sendo narrado, a um só tempo, menor, pois o leitor conhece os pensamentos do personagem e maior, porque o narrador se interpõe entre o narrado e o leitor, permitindo pausas para a reflexão crítica e erguendo uma barreira que não permite ao leitor identificar-se com qualquer personagem.

Esse tipo de narrador foi deixado de lado a partir da metade do século XX, predominando a “neutralidade”7 naturalista, ou o discurso indireto livre em que a história se narra por ela mesma. Como exemplo do “narrador omnisciente8 intruso”, Leite cita Machado de Assis que utiliza essa técnica como forma de romper a verossimilhança, lembrando sempre ao leitor que ele está diante de uma obra de ficção, em que a realidade não passa de literatura.

Um outro tipo é o “narrador onisciente neutro”, ou “narrador onisciente” que se expressa na 3ª pessoa. Utiliza o “sumário”, mas recorre com maior freqüência à “cena”. Apresenta as mesmas características de ângulo, distância e canais que o “narrador onisciente intruso”, mas dele se diferencia por não apresentar comentários, porém sua presença é sempre sentida e clara na narrativa. O discurso indireto prevalece na maior parte desse tipo de narração e Leite menciona, a título de ilustração, o romance Madame Bovary de Gustave Flaubert.

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O termo “neutralidade” é passível de discussão, pois cremos que dificilmente o autor consiga manter-se “neutro” durante toda a narrativa. Um dos exemplos seria a própria escolha lexical que pode traduzir o sentimento de simpatia ou de antipatia do narrador por um personagem.

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Onisciente. O termo consta no Dicionário Eletrônico Houaiss grafado sem o m, antes do n , conforme consta na obra de Leite (omnisciente). Consta no dicionário com a seguinte definição: adj.2g. (1858 cf. MS6) que tem saber absoluto, pleno; que tem conhecimento infinito sobre todas as coisas ETIM oni- + lat. sciente, de sciens,entis 'que sabe, que está informado, ciente'; ver cien(c/t)-; f.hist. 1858 omnisciente SIN/VAR enciclopedista, erudito, onissapiente. Observe-se que preferimos manter a grafia que consta do Dicionário Eletrônico Houaiss..

Uma terceira situação é aquela em que o narrador diz “eu” e se apresenta diretamente ao leitor. Friedman desdobra esse narrador em “narrador-testemunha” e “narrador protagonista”. A diferença entre eles é que no primeiro caso, trata-se de um personagem secundário que narra os fatos dando-nos o testemunho de algo que se passou e, nesse sentido, sua narrativa é mais verossímil. Em ambos os casos, há um narrador interno que procura observar de dentro de si, os acontecimentos.

Em nossa opinião a questão da veracidade do que é relatado em relação ao “narrador- protagonista” em primeira pessoa é discutível, uma vez que essa verdade pode ser relativizada: o narrador pode acreditar que está sendo sincero e mascarar os fatos até para si mesmo, o que resultaria em uma inverdade. É o caso de Ponciano Azeredo Furtado que, em muitas situações, procura preservar sua imagem; ele tenta amenizar suas imperfeições e fraquezas, usando recursos diversos por meio do uso de eufemismos, de hipérboles ou de outros recursos lingüísticos que deixam transparecer suas boas qualidades, ou adotando determinadas atitudes e posturas, ou ainda, aceitando as opiniões das pessoas a seu respeito pelo simples motivo de que ele ficará engrandecido aos olhos dos outros. Ainda que pareça ser apenas uma narração de fatos, existe, conforme Morin9 (1966), uma manifestação do sujeito que se considera autônomo, independente, mas que tem, ao mesmo tempo a consciência de que ele não está só e, portanto, insere-se em um contexto no qual depende sempre da existência do outro. A consciência do eu, está, nesse caso, condicionada à existência do outro. (você). Também está presente “o conceito de identidade, ou seja, a consciência que o indivíduo tem de si mesmo, de suas particularidades” (Galembeck 2002, p. 68). É, um ser que se comunica, interage e se complementa com o outro.

Esse narrador em primeira pessoa é o “eu-narrador”, isto é, o personagem principal, de que fala Moisés (1967, p. 107)10. A história, em geral é uma confissão, um diário ou autobiografia. A visão desse narrador é parcial, limitada a sua vivência dos fatos.

Quanto ao narrador de uma biografia (ou de outro texto pertencente ao mesmo gênero textual), ele pode estar ausente em uma narrativa; isto é, pode não aparecer marcas de sua enunciação no enunciado, uma vez que o próprio personagem é que exerce a função

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Segundo Morin, 1966, p.45ss) o sujeito é o indivíduo considerado em suas duas dimensões: a autonomia e a dependência. Lembramos que as considerações de Morin se referem a textos orais o que não impede, porém, que sejam válidos também para os textos escritos.

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Moisés fala também em narrador observador e narrador-testemunha, este geralmente representado pelo personagem secundário, que correspondem, a nosso ver, ao narrador-protagonista e ao narrador-testemunha.

de relatar os acontecimentos. É o que acontece no romance que analisamos, pois o personagem central é quem narra sua própria vida, em primeira pessoa. Assim, personagem e narrador aparecem ora de forma individualizada, ora se mesclam, confundindo-se (ou fundindo-se) de tal maneira que fica difícil ao leitor distingui-los. Por se tratar de uma autobiografia ficcional, o narrador é protagonista de seu próprio relato. É, portanto, uma visão unilateral dos acontecimentos, uma reconstrução do passado feita de modo parcial, já que o prisma é somente o do narrador que apenas pode supor os sentimentos e pensamentos dos demais personagens, ou relatá-los à luz de seu próprio enfoque, ou de sua própria interpretação dos acontecimentos apresentados.

Na “onisciência seletiva múltipla” ou “multisseletiva”, não há um narrador propriamente dito. A narrativa decorre na mente dos personagens e, segundo Leite (op. cit., p. 48) há o predomínio do discurso indireto livre. Neste caso, o ângulo pelo qual o autor enfoca os acontecimentos é central e as idéias, sentimentos e emoções do personagem são vistos diretamente.

Friedman aborda, ainda, outras espécies de enfoque, que citamos, de forma breve, uma vez que não serão utilizados na análise do corpus selecionado. Esses enfoques são: o modo dramático, que consiste em se fornecer apenas informações sobre os atos ou os dizeres dos personagens, entremeando-os com descrições de cenas. O texto é composto por uma seqüência de cenas que se desenrolam focalizadas por um ângulo frontal e fixo.

A “câmera”, outra categoria narrativa, exclui totalmente o autor e, como o próprio nome diz, funciona como se fosse uma câmera que captasse flashes da realidade, dos personagens.

O estudo do foco narrativo, assim como o dos demais aspectos aqui relacionados, têm, portanto, importante papel, uma vez que estão intrinsecamente ligados ao conteúdo e à compreensão dos fatos narrados tecidos por meio dos aspectos lingüísticos caracterizadores do estilo do escritor. É dessa forma que adentramos o universo interior e exterior dos personagens, o ambiente em que se situam e os acontecimentos que os envolvem, desvelando as muitas significações da obra de José Cândido de Carvalho.