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PARTE I – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Capítulo 2. Língua, escrita e oralidade

2.1. Língua falada e língua escrita

Conforme os estudos de Marcuschi (2001:23), a escrita surgiu há cerca de 3.000 anos antes de Cristo, ou seja, explica ele, há 5.000 anos. Em contrapartida, o homo sapiens surgiu a cerca de um milhão de anos. Esses fatos comprovam a primazia cronológica da fala sobre a escrita, admitida a hipótese óbvia que o homem “falava” desde os primórdios de sua história. Rocco (1999, p. 64) lembra Nisa (379 d.C.) que, em seu Tratado da

Criação discorria sobre a importância das mãos em um ato de fala. Posteriormente, essa

teoria foi, analisada em profundidade, pelo filósofo vietnamita, Tran Duc Thao (1973), que, por meio de pesquisas comparando o desenvolvimento de um chimpanzé com o de um bebê de 18 meses, chegou à conclusão de que, enquanto o gesto do animal não é consciente, o da criança, ao contrário, é consciente quando executa um gesto indicador (reto ou em arco). Ela consegue associar esse gesto ao olhar e às manifestações verbais, tais como Ah! Dá!

Lá! Segundo o filósofo, estaria aí a origem da consciência e da linguagem. Urbano (2006,

p. 25) imagina que a gênese e evolução da linguagem deva ter tido seu início com a “criação/aparecimento natural da fala como instrumento sonoro de comunicação entre os indivíduos”.

A escrita, por sua vez, somente se tornou conhecida no Ocidente por volta de 600 A.C., há cerca de 2.500 anos, enquanto a imprensa surgiu em 1450 anos com Guttenberg. Santaella (1996, p. 209) frisa a importância do registro para perpetuar a memória, iniciado com os desenhos nas cavernas, seguidas da criação de hieróglifos e da escrita alfabética. Zumthor descreve a evolução da língua escrita nos seguintes termos:

Uma série de mutações lentas se produziu, de fato, ao longo do tempo, mais devidas ao deslizamento do que às rupturas. Convém considerá-las menos como tais do que relativamente a um longínquo ponto de fuga, pós-medieval, que as põe em perspectiva. Recuo de um vasto espaço memorial em proveito

do Arquivo; exteriorização das relações sociais; emergência de uma noção explícita da história; gramaticalização da língua vulgar e, como conseqüência, dissociação entre um código oral e o código escrito; distinção pouco a pouco adquirida, entre um código oral e o código escrito; distinção pouco a pouco admitida, entre a langue e a parole. Mas as linhas de evolução assim desenhadas só começam a convergir antes da época (na virada dos séculos XIV e XV) em que apareceu na Europa a primeira pintura de cavalete, anunciando a iminente predominância, neste universo, do sentido da vista e da percepção do espaço.” (op. cit. p. 98)

Saussure (1973, p.34 e 35) acredita que em todas as épocas existiu o conceito ilusório de que a escrita seria mais importante do que a fala. Os humanistas, bem como posteriormente, os primeiros lingüistas adotavam essa crença, como, por exemplo, Bopp, que não distinguia claramente a letra e o som e, para quem, língua e alfabeto eram inseparáveis.

Essa superioridade da escrita seria explicada por quatro motivos:

a) a imagem gráfica das palavras impressiona como um “objeto sólido, mais adequado do que o som para constituir a unidade da língua através dos tempos”, sendo mais fácil de ser apreendido do que o som.

b) as impressões visuais são mais “nítidas e duradouras” do que as impressões acústicas para a maior parte dos indivíduos, facilitando sua imposição.

c) a língua literária contribui para o aumento do prestígio da escrita que é ensinada nas escolas. Além disso, ela possui um regulamento, um código escrito, que lhe proporciona maior prestígio. Para Saussure “acabamos por esquecer que aprendemos a falar antes de aprender a escrever”, invertendo-se, dessa forma, a relação natural.

d) o desacordo entre a língua e a ortografia contribui para ampliar o debate sobre a superioridade da escrita, uma vez que nem sempre os lingüistas estão envolvidos e podem dirimir as dúvidas surgidas.

Saussure classifica os sistemas de escrita como:

1) Sistema ideográfico no qual a palavra é representada por um signo único, relacionado com o conjunto da palavra e, portanto com a idéia que ela exprime. O exemplo é o da escrita chinesa sobre cujos caracteres teceremos considerações na PARTE III da tese.

2) Sistema “fonético” que procura reproduzir “a série de sons que se sucedem na palavra”. As escritas fonéticas são silábicas e alfabéticas.

O enfoque enviesado e até preconceituoso na identificação e avaliação das semelhanças e diferenças entre a fala e a escrita foi, juntamente com a aplicação de metodologia inadequada, um dos motivos do aparecimento de visões contraditórias sobre essa questão. Segundo Marcuschi (op. cit. p.37), como se estudou a fala na perspectiva da escrita, com o predomínio do “paradigma teórico da análise imanente ao código¨, a escrita foi considerada pela maioria dos estudiosos como “estruturalmente elaborada, complexa, formal e abstrata”, ao passo que a fala foi considerada como “concreta, contextual e estruturalmente simples (cf. Chafe, 1982; Ochs, 1979; Kroll & Vann, 1981)”. Outros estudiosos, porém, acreditam o contrário, afirmando a maior complexidade da fala em relação à escrita (cf. Halliday, 1979 e Poole & Field, 1976, citados por Marcuschi). Uma terceira posição é colocada por Biber (1986, 1988, 1997) que “mostrou que nada é claro e conclusivo nesse terreno”. Marcuschi defende o ponto de vista de que fala e escrita tornam- se diferenciadas, “dentro do continuum tipológico das práticas sociais e não na realidade

dicotômica de dois pólos opostos”.

Dias (1996) também menciona o preconceito existente até alguns anos atrás, com relação à língua falada, tida como “errada”, “imperfeita”:

Estudos dessa ordem permitiram rever afirmações impróprias feitas em relação à língua falada e que promoviam inadequados paralelos com a língua escrita. Até recentemente, estudava-se tal modalidade a partir de parâmetros da língua escrita, havendo, inclusive, certo preconceito dos estudos lingüísticos

em relação à fala que, de modo geral, era vista como o lugar das imperfeições e das incorreções. (p. 52)

Por meio de exemplos e gráficos diversos, Marcuschi chega ao entendimento de que a língua se fundamenta na heterogeneidade e na indeterminação, pois se trata de:

(...) um fenômeno heterogêneo (com múltiplas formas de manifestação), variável (dinâmico, suscetível a mudanças), histórico e

social (fruto de práticas sociais e históricas), indeterminado sob o ponto

de vista semântico e sintático (submetido às condições de produção) e que se manifesta em situações de uso concretas como texto e discurso. (op. cit. p.43)

Em contrapartida, Benveniste (1991, p. 55) já havia tecido considerações de que as diferenças de natureza entre a língua oral e a língua escrita somente existem em relação ao material gráfico e fônico utilizados por cada uma delas. Assim, os estudos até então realizados mostraram existir sempre manifestações de características da língua oral no escrito e vice-versa. Em seu artigo essa autora observa, também, que existem contradições entre o que se estabeleceu como oposição comum entre língua escrita e língua falada.

A propósito dessas diferenças, Saussure (1973: 34) declara:

(...) língua e escrita são dois sistemas distintos de signos; a única razão de ser do segundo é representar o primeiro; o objeto lingüístico não se define pela combinação da palavra escrita e da palavra falada; esta última, por si só, constitui tal objeto. Mas a palavra escrita se mistura tão intimamente com a palavra falada, da qual é a imagem, que acaba por usurpar-lhe o papel principal; (...)”.

Quando combinadas e manifestadas em forma de textos, língua e escrita não deixam de apresentar as características que lhes são próprias, o que nos permite separá-las (às vezes com dificuldade) e estudá-las distintamente.

Para Ong (op. cit., p. 97) a escrita é inteiramente artificial e por isso não é possível escrever-se de forma natural (em oposição à linguagem oral que é natural e

espontânea). Ressalve-se que isso não impede que se possam fazer simulações da linguagem oral, sobretudo em textos literários. Com referência à fala, Ong observa que, apesar de ser parte da vida consciente, ela nasce no inconsciente do individuo contando com “a cooperação tanto consciente quanto inconsciente da sociedade”. As regras gramaticais vivem no inconsciente e delas fazemos uso relacionando palavras, conjugando verbos, fazendo concordâncias, muitas vezes sem conseguirmos definir suas regras de maneira sistemática. Para isso, recorremos à gramática. A escrita, porém, não brota de maneira inconsciente. O registro da linguagem falada ou de um texto criado ficcionalmente segue regras conscientemente planejadas e inter-relacionadas. Trata-se de uma tecnologia visto que ela se utiliza de ferramentas e equipamentos tais como canetas, pincéis, peles de animais, tiras de madeira etc. Das três tecnologias (escrita, impressão e computação) ela é a mais “drástica“, pois “iniciou o que a impressão e os computadores apenas continuam: a redução do som dinâmico a um espaço mudo, o afastamento da palavra em relação ao presente vivo, único lugar em que as palavras faladas podem existir”.

Marcuschi (2001, p.17), ao discorrer sobre a primazia da oralidade sobre a escrita, afirma que essa é uma “primazia cronológica”; porém, os usos da escrita, quando enraizados em uma sociedade, muitas vezes podem adquirir um valor superior ao da oralidade. No entanto, adiante (p. 18), ao abordar o advento do bate-papo na Internet, esse autor o caracteriza como um texto misto, em que oralidade e escrita se misturam, pois nele há uma simultaneidade temporal, porque se trata de uma comunicação “sincronal”.

Urbano (2006), com fundamento na teoria de Koch, Peter e Oesterreicher, Wulf (1985) e Oesterreicher (1996 e 1997), vale-se do enfoque da oralidade e discute a relação entre língua falada e língua escrita com base em dois critérios conceituais: a perspectiva do “meio” e a perspectiva da “concepção”. A primeira leva em consideração os meios físicos de produção (boca), de recepção (ouvidos), de produção e transmissão (mãos) em um suporte físico (papel) e, por fim, de recepção visual (olhos). A perspectiva da concepção para a qual Urbano apresenta diversas reflexões, é conceituada, levando-se em conta as condições de comunicação do texto e as estratégias adotadas para sua formulação. (op. cit., p.29). Ele considera de um lado a “língua falada prototípica”, uma atividade social de produção de texto, de caráter oral, “graças a um sistema de sons articuláveis, em tempo real, em contextos naturais de produção, incluídos outros elementos de natureza

corporal, que preenchem, em teoria, ‘todas as condições lingüístico-textual-discursivas’ concebidas para um texto falado”; de outro lado, “a língua escrita prototípica”, uma atividade social verbal de produção de textos escritos por meio de recursos gráficos e alfabéticos, com “todas as condições lingüístico-textual-discursivas” próprias de um texto escrito. Portanto, é a realização da língua manifestada por meio fônico ou gráfico uma das condições para que um texto possa ser considerado como texto de língua falada ou de língua escrita (idem, p. 42, 43).

Em relação à escrita, Eco (1984, p.15) vai além ao conceituar o texto como um meio de comunicação e, portanto, estendendo esse conceito para além das fronteiras do campo da significação:

(...) o conceito de texto já é um conceito misto, porque um texto não é um sistema de significação, é uma realização comunicativa. Não se pode, creio, falar de texto em puros termos de sistema de significação. Certos estudiosos do texto buscam uma gramática gerativa do texto, do tipo da chomskyana, isto é, as regras para gerar um texto; entretanto, se, como veremos adiante, é fundamental, ao enfrentar um texto, o elemento pragmático, isto é, as circunstâncias em que o texto foi emitido, a posição do enunciador do texto e assim por diante, o conceito de texto não pode, portanto, ser reservado apenas a uma análise em termos de sistema de significação, pois se trata já de um problema de comunicação.

Machado (1999, p. 41-62) aborda a mesma questão em seu artigo “Texto & gêneros: fronteiras”, no qual discorre sobre o conceito semiótico-dialógico de texto. Em sua versão sobre o assunto, na mesma linha de Eco, ela afirma:

Na era da informação tudo é texto. Um slogan político ou publicitário, um anúncio visual sem nenhuma palavra, uma canção, um filme, um gráfico,um discurso oral que nunca foi escrito, enfim, os mais variados arranjos organizados para informar, comunicar, veicular sentidos são texto. O texto não é, pois, exclusividade da palavra. (p.41)

Vivemos uma época em que a escrita tem um caráter notacional, isto é, combina uma diversidade de sinais que não são exclusividade do código alfabético. Num tempo como este, seria muito estranho se a noção de texto se limitasse apenas à organização comunicativa derivada do código verbal. Além de ser um desagravo à própria etimologia, seria um não-reconhecimento da dinâmica da significação do ato comunicativo.

Com base nessas afirmações de Eco e de Machado, a palavra “texto” é utilizada neste estudo como um termo genérico que se refere a toda e qualquer manifestação (oral, escrita, visual) que represente e constitua um modelo abstrato de aspectos do mundo. Nesse sentido, um texto pode ser um poema, uma narrativa escrita, um mapa, uma obra de arte, uma ilustração, uma história em quadrinhos, uma charge, um filme, uma canção, o discurso proferido por um indivíduo, ou seja, esse conceito apresenta uma abrangência maior, não se restringindo à palavra, e sim, como quer Eco, envolvendo não apenas o sistema de significação, ou seja, o conjunto ordenado de idéias a que se atribuem significação, mas também, a questão de maior amplitude que é a comunicação. Chamamos a atenção para a palavra “sistema”, citada por Saussure: “língua e escrita são dois sistemas distintos de signos; a única razão de ser do segundo é representar o primeiro” (1973, p. 34) que, nesse caso, entendemos referir-se a um conjunto de elementos sígnicos que se relacionam e que funcionam como uma estrutura organizada.

A adoção desse conceito de texto nos permite estender a análise da obra de José Cândido de Carvalho para além do texto escrito, conforme estudos realizados principalmente na Parte III do trabalho, em que serão analisadas as ilustrações que compõem o romance. Colocamo-nos, pela mesma razão, no enfoque apontado por Barros (1996, p. 184) para quem os estudos da linguagem trouxeram mudanças significativas de posicionamentos, um dos quais interessa em especial aos nossos estudos: a colocação da intersujetividade como anterior à subjetividade, ou seja, a relação entre interlocutores não apenas funda a linguagem e dá sentido ao texto, como também constrói os próprios sujeitos produtores do texto (vejam-se os estudos de Bakthin, as diversas teorias da Pragmática e da Análise da Conversação).

Não há dúvida de que, há ainda outras diferenças entre língua falada e a língua escrita: o texto escrito, cuja elaboração é prévia à transmissão, opõe-se à espontaneidade, à

naturalidade e à coloquialidade da língua falada11. Por poder ser previamente preparado e pensado, o texto escrito permite a sua reescritura tantas vezes quantas forem necessárias, antes que seu autor se dê por satisfeito e publique a forma final. O leitor geralmente só conhecerá esse produto final. Se compararmos com a língua falada, esta é planejada localmente e correções e reparações são permitidas, porém em menor escala, pois uma vez proferido o discurso, o ouvinte já o apreendeu e não é mais possível revê-lo totalmente.

Dias (2006), em um artigo sobre a questão da interação na mídia escrita, lembra, com propriedade que, na comunicação escrita midiática, o enunciador não encontra seu interlocutor in praesentia, como na conversação face-a-face e, por esse motivo seu texto deve pressupor a existência de um leitor que “potencialmente, irá atualizar seus sentidos”. (p. 112). Em outra obra, O discurso da violência (1996, p. 51), a autora, discorrendo sobre língua falada e língua escrita, tece considerações sobre o trabalho de Kato a respeito da influência que fala e escrita exercem uma sobre a outra. Enquanto na fase de pré-letramento, a escrita representa a fala de forma natural, na fase do pós-letramento a escrita assimila os conhecimentos adquiridos por meio da aprendizagem e torna-se independente da fala. Dessa maneira, ocorre um fenômeno inverso - a fala passa a receber influência da escrita (sobretudo em relação à norma culta, ensinada nas escolas).