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PARTE I – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Capítulo 3. Recursos relacionados à conversação

3.1. Estratégias discursivas

3.1.1. Diálogo (em sentido restrito)

3.1.1.6. Fala implícita (FI)

Conforme Urbano (1980, p. 24) caracteriza-se a fala implícita principalmente quando há um verbo de elocução, seguido do conteúdo da fala, sem que haja, entretanto, discurso direto ou indireto. É o caso, por exemplo, de “O falso Perpétuo sentou-se e pediu cerveja, sem olhar para os jogadores (...)” no conto “O jogo”, de Rubem Fonseca, onde se conclui claramente a ocorrência de uma fala, que expressa um conteúdo até certo ponto facilmente explicitável em um DD, como: “Rapaz, me dá uma cerveja”.

Na ocorrência acima, trata-se de um exemplo bastante simples, o que, todavia, nem sempre ocorre desta maneira. Na verdade, a fala implícita fica nos limites do DI e do DIL, perfazendo, com o DD, um conjunto de estratégias para a citação de discurso próprio ou alheio, de dimensões diversas quanto à forma e quanto ao conteúdo.

Conforme visto até o momento, o DD é perfeitamente identificável pela forma, graças ao verbo de elocução explícito ou implícito, graças aos sinais de pontuação como os dois pontos, graças à representação da entonação presumível etc. Ele é identificável pelo conteúdo graças à reprodução fiel das palavras do locutor ou emissor da mensagem.

Por sua vez, o DI é identificável pela forma, graças ao verbo de elocução explícito, à conexão entre este verbo e uma oração subordinada integrante pela conjunção

que, incorporando a fala no relato do narrador, pelas características verbais e dêiticas de

transformação da fala do locutor para incorporar-se na narração, incluindo entonação, ritmo etc. Ele é identificável pelo conteúdo, graças à reprodução fiel, em teoria, do conteúdo expresso pelo locutor ou emissor respeitada, naturalmente, a nova forma usada.

O DIL pode revelar certa ambigüidade, até quanto à natureza do discurso: se “fala” realmente expressa ou “pensamento” apenas, por causa da inexistência de verbo de elocução característico do DI e inexistência do DD característico, podendo, entretanto, ocorrerem alguns fenômenos desse recurso como aspectos entonacionais, palavras típicas da fala viva etc.

Na estratégia da FI, o leitor tem certeza da ocorrência da fala, seja por um verbo de elocução ou por um contexto introdutor denunciador dessa fala, seja pelo conteúdo sugerido e/ou normalmente sintetizado, sem uma certeza de sua possível explicitação integral por conta do leitor, abrindo, porém, um leque controlado de opções interpretativas possíveis.

Exemplificamos com um trecho da narrativa do coronel Ponciano:

Já em sela, estrada de barro na frente, falou Nicanor de umas idas e vindas que fez a Mata-Cavalo, onde foi pedir a Juquinha Quintanilha, bom compadre do coronel, receita contra boqueira de égua. (161: 28-31)

Observamos duas ocorrências de FI no relato, as duas enunciadas por Nicanor do Espírito-Santo, afilhado de Caetano de Melo, antigo vizinho de Ponciano. Na primeira

FI, ele narra, em uma conversação face-a-face com seu interlocutor, o coronel, as viagens feitas a Mata-Cavalos. Em nenhum momento se reproduzem as palavras que ele teria pronunciado para falar de suas idas e vindas; apenas o assunto fica evidenciado. Na seqüência, um outra fala implícita em que aparece o verbo pedir, quando Nicanor narra que fora pedir uma receita contra boqueira de égua a Juquinha Quintanilha, entendedor de mazelas. Também nessa fala, não se conhecem as palavras ditas por Nicanor. Sabe-se o que ele falou, mas não sua entonação, nem que vocábulos ele teria escolhido para compor sua narrativa.

No exemplo a seguir, novamente aparece o verbo pedir na expressão verbal “pediu desculpas”:

A dona da casa, toda agitada, pediu desculpas. Ela e Mocinha estavam de saída, em visita a uns parentes de Nogueira que moravam em chácara afastada (236:10-12)

Nesse caso, o leitor pode pressupor outras maneiras com que esse discurso poderia ter sido enunciado. As possibilidades de reprodução da FI “pediu desculpas” podem ser:

(1) - Desculpe-nos, coronel. (2) - O Sr. nos desculpe, coronel! (3) - Peço-lhe mil desculpas, coronel!

Nos três casos, as diferenças existentes podem levar o leitor/ouvinte a interpretações diversas dessa fala: em (1) a entonação do pedido de desculpas é normal. Trata-se de um simples pedido de desculpas, reproduzido em DD. Em (2) o ponto de exclamação revela uma ênfase maior no pedido de desculpas; o enunciador quase suplica para que seu pedido seja atendido. Há maior ênfase na pronúncia da fala, uma quase subserviência por parte do enunciador. Essa subserviência é reforçada pelo uso do pronome de tratamento cerimonioso, “Sr.”. A fala (3), por sua vez, enfatiza o pedido mediante o reforço da expressão “mil desculpas”, uma hipérbole de uso freqüente na linguagem popular, que também demonstra o forte desejo de que o pedido seja atendido. O ponto de

exclamação sugere a veemência com que a fala foi enunciada. Deduz-se dessa maneira, que a interpretação de cada ouvinte/leitor, aliado ao contexto situacional é que dará à fala o adequado (ou inadequado) entendimento, como é comum acontecer nas conversações cotidianas. Esse pedido é reforçado e complementado, na seqüência, por um DIl, facilmente identificável (o verbo de elocução está omisso e, da mesma forma não se explicita a conjunção que): na tentativa de justificar sua agitação, D. Esmeraldina complementa dizendo que ela e Mocinha estavam de saída para visitar uns parentes.

Essa técnica da fala implícita é empregada por José Cândido de Carvalho de maneira adequada à situação sempre visando à expressividade da narração.

A observação dos três casos analisados, dois com o verbo comum pedir, que implica emitir alguma fala (pois quem pede, precisa falar para poder pedir), outro com o verbo de elocução falar (em que o ato elocutório está implícito), permite-nos levantar algumas observações importantes e conseqüentes em relação a essa técnica que Urbano denomina “fala implícita”:

− a estratégia da reprodução de fala, dentro dessa técnica, é mais um recurso de grande efeito de que dispõe o narrador;

− as FI despertam particularmente a imaginação e participação interpretativa do leitor, envolvendo-o na própria opção narrativa do narrador;

− como se percebe, de tudo o que se diz dos DI, DIL e FI, estas nem sempre são facilmente identificáveis taxionomicamente;

− nos discursos citados em geral, como em particular nas FI, há vários graus a serem considerados, em termos de maior ou menor fidelidade ao conteúdo da fala real ou ao aspecto formal;

− na narrativa escrita, elaborada, o narrador usa da estratégia conscientemente, enquanto na narrativa oral ocorre normalmente um uso inconsciente;

− os DD, DI, DIL e FI representam uma linha contínua de maior ou menor intromissão do narrador na fala, nas enunciações/enunciados de seus personagens.