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PARTE I – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Capítulo 2. Língua, escrita e oralidade

2.2. A oralidade na língua falada e escrita; a língua escrita literária

2.2.2. A expressividade

Urbano (2002, p. 261), ao discorrer sobre expressividade/criatividade lembra a possibilidade de transcendência da língua por meio da capacidade de criação do ser humano:

Na língua como um todo há uma parte cristalizada no sistema e há uma língua que se elabora, uma língua que lança mão de recursos expressivos da linguagem para criar novas aplicações. Então há sempre possibilidade de se transcender o esquema lingüístico, caindo naquilo que se chama criatividade humana.

A ciência que tem por objeto o estudo da expressividade obtida com as palavras em seus aspectos gramaticais, semânticos, sintáticos e contextuais é a Estilística. Dela vamos nos valer para os estudos da linguagem utilizada por José Cândido de Carvalho em

O coronel e o lobisomem.

Ao falar, o indivíduo realiza um ato individual de seleção e de combinações, usando o código lingüístico para exprimir seus pensamentos, emoções e sentimentos. É necessário que as regras gramaticais se aliem a palavras que tenham afinidades semânticas. Além disso, o falante não utiliza apenas as formas cristalizadas; ele usa sua criatividade para se expressar, podendo produzir um número infinito de novas palavras e frases compreendidas por seu interlocutor, com o objetivo de fazer entender o objeto de sua comunicação, em seus mínimos detalhes. Sobre o asssunto, Urbano (2002, p. 264) se alinha ao pensamento de Joly e Roulland (apud Cervoni): “no mínimo de expressividade (mínimo, mas nunca zero) estamos colados na expressão, isto é, no instituído; no extremo oposto, estamos colados no máximo de expressividade, isto é, colados no improvisado.” Essa posição dual reflete o fenômeno que se processa no ato comunicativo, seja ele oral, escrito ou, levando esse pensamento um pouco mais além, nas suas mais diversas formas da comunicação. Geralmente, trata-se de um processo inconsciente.

Em particular, no caso da oralidade, podemos constatar que ela apresenta fortes recursos de expressividade como parte inerente de sua natureza. Urbano (1999, p. 115) considera a expressividade como “ingrediente” da própria língua falada e que é, também, um recurso utilizado na literatura:

Em qualquer linha de estudos sobre a língua falada, há de se reconhecer que a expressividade é um ingrediente da sua própria natureza, quer da linguagem culta ou popular, quer da linguagem formal ou informal; naturalmente em graus, motivações e propósitos diferentes. Na língua escrita ela é contingencial, embora freqüente, ela é explorada como recurso disponível, sobretudo na linguagem literária.

A frase é construída conforme as regras gramaticais; as palavras que a compõem devem ser selecionadas e escolhidas dentro de um campo semântico que apresente certa afinidade. Portanto, na língua, considerada como um todo há uma parte cristalizada e outra em que o falante exercita toda sua criatividade com vistas a se comunicar melhor e de modo mais eficaz (Urbano 2002, p. 261). Essa afirmação leva a uma reflexão sobre a importância da escolha vocabular, da construção de orações, dos vários tipos de recursos lingüísticos utilizados na literatura especificamente com o objetivo de reproduzir a linguagem oral.

Garcia (1973, p.141) afirma que, quanto ao sentido, as palavras estão compreendidas em duas ordens: referencial ou denotativa e afetiva ou conotativa. Se a palavra é tomada em seu sentido literal, ela tem valor referencial ou denotativo; se ela não se refere diretamente a coisas, objetos ou seres reais, mas sugere ou evoca “idéias associadas de ordem abstrata”, seu valor é conotativo.

Segundo Lapa (1998, p. 3), as palavras podem ser reais, fundamentais, quando concentram nelas mesmas o sentido da frase: são os lexemas (substantivo, adjetivo, verbo e, conforme o contexto discursivo, o advérbio, o numeral e o pronome). Por sua vez, os

morfemas são instrumentos gramaticais que estabelecem a ligação (artigos, preposições,

conjunções e, de acordo com o contexto discursivo, advérbios, numerais e pronomes), constituindo a forma mais simples do pensamento (e da comunicação). Lapa considera que, a rigor, apenas os substantivos, designando os agentes da ação, e os verbos, que exprimem a própria ação, podem ser denominados de lexemas, como nas frases: “Rei ordena”, “Deus punirá” (exemplos do autor).

Adiante, esse autor enfatiza a importância da palavra:

As palavras reais distinguem-se, como vimos, pela sua força expressiva. Despertam a imagem das coisas mais energicamente; e essa imagem viva ilumina o pensamento, dispensando outros acessórios de que se serve a frase logicamente constituída. E como elas podem revestir vários aspectos, cada um de nós apreende na palavra o seu aspecto pessoal, aquele que particularmente lhe interessa. (op. cit. p. 4)

Para ilustrar sua afirmativa, Lapa cita a palavra sino que pode evocar as imagens sonoras, motriz e visual.

Realizando uma experiência com pessoas da família, Lapa elencou uma série de palavras, preferencialmente substantivos. Ao ouvi-las as pessoas deveriam relatar as imagens que elas lhes evocavam. A título de ilustração, reproduzimos duas delas, escolhidas por evocarem um maior número de imagens:

a) CHUVA

A: imagem visual (poeira escura levantada) + imagem olfativa (cheiro da terra).

B: imagem térmica (arrepio de frio).

C: imagem visual (cordas de água) + imagem auditiva (ruído abafado de chuva no chão).

D: o mesmo complexo de imagens que em C. B )GÁS

A: imagem visual (vê um fumo acinzentado).

B: imagem visual e motriz (bombardeamento, gente a correr) + imagem olfativa (cheiro a gás).

C: imagem auditiva (escapar ruidoso do gás).

D: imagem visual (chama azulada) + imagem olfativa (cheiro do gás).

(op. cit, p. 6)

Constatou-se que, por serem provas de caráter pessoal, o resultado pode variar conforme a pessoa e que verbos e adjetivos também suscitam imagens por apresentarem um “caráter mais ou menos concreto” (op. cit., p. 6, 7).

Tais constatações interessam-nos de perto, pois reforçam e corroboram que a palavra, transformada em som, quando de sua realização na fala, pode evocar imagens de diferentes categorias (visual, motriz, olfativa, auditiva, tátil) que ampliam sua virtualidade metafórica. Essa é uma das perspectivas sobre a qual nos debruçamos na tese.

Lapa emprega o termo “parafantasia” para o fenômeno que ocorre quando uma pessoa, ao ouvir uma palavra vê o objeto que ela representa; na literatura esse fenômeno é denominado de linguagem figurada; quando se associam cores às palavras ouvidas, fala-se em sinestesia e, por fim, como um dos meios de expressão dos sentimentos, capaz de avivar a imaginação, pode-se recorrer à obra de arte.

Lembramos também que o som, com seus diferentes tons e timbres, pode evocar imagens poéticas transformando as palavras em poemas; os ruídos, murmúrios, risadas, choros e outras manifestações sentimentais da alma humana podem ser concretizados por meio de onomatopéias, recursos usuais nas histórias em quadrinhos. Também a poesia cria imagens sonoras que provocam o imaginário e alcançam a alma das pessoas por meio da sonoridade das palavras, do ritmo, da entonação com que é lida.

Há expressividade também nos recursos visuais: letras, ícones, imagens transmitem emoções e sentimentos assim como os sons e as palavras os evocam. Claro

exemplo são as histórias em quadrinhos. É por meio do desenho que, na maior parte das vezes, o quadrinista narra o que acontece e expressa os mínimos detalhes emocionais dos personagens. São os trejeitos, os gestos, a expressão facial, o movimento corporal que, sozinhos, ou associados à expressividade das palavras, conduzem esse gênero narrativo. Da mesma forma, nas ilustrações de livros, a expressividade se manifesta por meio de imagens visuais complementadas, ou não, por palavras, assunto que é objeto de estudo da Parte III desta tese.

Outro recurso estilístico expressivo empregado por muitos autores, entre os quais podemos citar José Cândido de Carvalho, é o eufemismo que atenua a dureza de certas expressões brutais, grosseiras, inconvenientes, ou para criar um estilo particular de fala: “desprevenido de pecúnia” (= sem dinheiro); “mandava ensabonetar” (= lavar); “cresci em formato de palmeira” (= cresci e fiquei alto). O eufemismo pode ser empregado para caracterizar certas camadas sociais; o exemplo dado por Lapa, entre outros, é o de um homem pobre que comete um furto, que é chamado de ladrão, de gatuno, ao passo que o mesmo delito cometido por um homem da alta sociedade é denominado desvio de fundos,

fraude, apropriação indébita (op. cit, p. 22). Portanto, nota-se na linguagem uma espécie de

hipocrisia relativa à vida em sociedade. Na obra de José Cândido de Carvalho, essa mesma hipocrisia leva o narrador a usar expressões eufemísticas ao se referir aos temas sexuais: “prendas e esmerada guarnição traseira da menina Branca dos Anjos” (7:36, 37); “todas as bondades de nascença de Dona Isabel – um morenão puxado a canela, olho de água e beiço de colchão. Se eu caísse nessas benfeitorias e recurvados” (70:3-6); “casa de moça-de-vira- e-mexe” (139: 10); “teúda e manteúda” (193: 1).

Urbano (2002, p.262 e 263) afirma, com propriedade, que essas palavras e construções estão sujeitas à aceitação dos interlocutores, sempre condicionadas ás variedades sociais, culturais e de uso; ele se preocupa, também, juntamente com Chun, com os aspectos da produção vocal em termos de sua sonoridade e do ineditismo de sua construção sem deixar de conservar as características particulares de cada emissor. Em seu artigo “A citação direta de fala como marca de expressividade” (1997b), Urbano fala sobre a força dos recursos de expressividade da fala de um narrador ao reproduzir a fala de outra pessoa, ou a sua própria, enunciada em um tempo anterior. Em geral essa reprodução de fala

vem acompanhada de gestos, às vezes de mímica e outras “soluções construídas localmente”.

Trata-se de fala muitas vezes “teatralizada” pelo próprio narrador da narrativa de experiência pessoal, que carrega de grande expressividade não só esse procedimento, mas toda a sua linguagem conversacional, e, em particular, sua narrativa ou certos lances dela, manifestando seu grau de emoção e obtendo um grau especial de envolvimento de seu interlocutor. (p.65)

Nessa fala “teatralizada” identificamos a utilização dos recursos cinésicos, proxêmicos e lingüísticos sobre os quais falaremos adiante. Urbano chama a atenção para o uso dos recursos de expressividade com vistas a prender a atenção do interlocutor, envolvendo-o na conversação que é, assim, mantida.

A citação de fala ou citação direta de fala (discurso direto) faz parte da estrutura da narrativa oral e, muitas vezes da narrativa escrita, não somente como recurso de expressividade, mas também como uma tentativa de reproduzir as palavras da forma com que foram enunciadas. Por sua importância nesse estudo, aprofundaremos o assunto no Capítulo 3. Recursos relacionados à conversação, adiante formulado.