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A reprodução da cena do crime: os Peritos

CAPÍTULO 5 – A TESSITURA D O PROCESSO: PASSOS IN ICIAIS D A CONSTRUÇÃO DO CASO

5.1 A fase Policial do Processo: o caso sob o viés do Inquérito Policial

5.1.2 A reprodução da cena do crime: os Peritos

O relatório d o Policial ap resenta algu m as p istas sobre o crim e, m as é a p artir d os d ad os ap resentad os p elos Peritos, encarregad os d e analisar m ais d etid am ente a cena d o crim e, as cond ições d a m orte d a vítim a, a arm a u sad a etc, qu e se p od e encontrar vias d e acesso u m p ou co m ais segu ras ao caso. Estes su jeitos são convocad os p elo Delegad o qu e tem , d e início, 30 d ias p ara ou vir as testem u nhas e investigar o crim e. É a p artir d essa investigação qu e se levantará ind ícios d a “m aterialid ad e d o crim e”, o qu e torna essa fase d ecisória d a alegação d a cu lp a e d o grau d e cu lp a d o sujeito, que até então é denominado “indiciado”.

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--- Constam d as p eças p rocessu ais analisad as na tese, d u rante o IP, seis lau d os d a p erícia técnica. O p rim eiro se refere ao “levantam ento d e local ond e ocorreu hom icíd io”, no qu al foram relatad as as características d o am biente, inform ações sobre m óveis e objetos e com o se encontrava o corp o d a vítim a. A ele segu em as fotos d o corp o, d o côm od o d a casa em qu e o corp o foi encontrad o, d os objetos qu e lá estavam e os croqu is d escrevend o o p ercu rso d as balas e a relação d o corp o com o local em qu e foi encontrad o. O segu nd o relatório refere-se ao exam e d e balística, no qu al o Perito fez u m a análise d os p rojéteis encontrad os no local d o crim e, já qu e a arm a não fora ap reend id a. N o terceiro lau d o p ericial o resu ltad o d o exam e im u nológico feito nos p rojéteis foi ap resentad o. O qu arto lau d o forneceu u m a leitu ra d a cam isola d e V e d o sangue encontrad o nela. Através d o exam e im u no-hem atológico o Perito constatou qu e o sangu e era d e u m tip o esp ecífico, o qu e coincid ia com o tip o sangü íneo d e V. O qu into lau d o relaciona-se a u m a p esqu isa com ercial sobre firm as “p ronta-entregas”. E, p or fim , o ú ltim o relatório solicitad o d u rante o IP, ap resentou u m a análise d a arm a d o crime em comparação a uma outra arma que o réu possuía.

Através d e u m a lingu agem bem técnica os su jeitos d escreveram o qu e lhes era evid ente sem tecer consid erações sobre o crim e a fim d e atend er às regras d aqu ele contrato. A im p essoalid ad e, exp licitad a através d o u so d a p assiva, m arcou a d istância necessária com a situ ação retratad a. Essa isenção, cientificam ente calcu lad a, contribu iu para fornecer as pistas necessárias à continuidade da investigação.

É interessante observar qu e, em u m a circu nstância com o essa, a au sência d e u m a exp ressivid ad e d e em oção é m ais im p ortante d o qu e su a exp ressão, p orqu e p od e m elhor evocar rep resentações p atêm icas nos d estinatários. Por ou tro lad o, é p reciso salientar qu e a lingu agem técnica, fria e objetiva não consegu iu ap agar as m arcas d a bru talid ad e d o crim e. N em m esm o u m a constru ção d iscu rsiva d esse tip o p od e im p ed ir

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172 qu e em oções sejam su scitad as no leitor, p ois a p róp ria referência ao corp o d e V com o “cadáver” já nos d esloca d e nosso u niverso. O sentid o d o item lexical rem ete à m orte, a u m corp o gelad o e inerte, o qu e p or si só já incita d eterm inad as relações qu e p or ventura possamos fazer a partir da descrição da cena do crime:

Estendido no piso do cômodo descrito, com a cabeça em ângulo posterior direito junto ao cabide anteriormente citado, os Peritos encontraram um cadáver de pessoa adulta, do sexo feminino, de cútis branca, cabelos castanhos e lisos, identificado através da Carteira de Identidade, registro geral M-555.555, como sendo o de V (...).

O seu corpo estava na posição de decúbito dorsal, com a cabeça apoiada ao piso pela região parietal direita, os membros inferiores e o superior direito estendidos, enquanto o membro superior esquerdo estava semifletido e com o antebraço apoiado na região abdominal.

Trajava camisola de tergal de cor azul e calça íntima de cor beje.

Usava aliança de platina, com brilhantes, no dedo angular esquerdo, uma corrente no pescoço e um par de brincos que foram retirados pelos Peritos e entregues, no local, ao Sr. D.

Ao d escrever, em d etalhes, o côm od o em qu e V foi encontrad a, ao ap resentá-la em seu s trajes d e d orm ir (cam isola d e tergal, calça íntim a d e m alha) o Perito nos coloca na cena d o crim e, fazend o-nos entrar naqu ele u niverso p articu lar. Mesm o com u m a d escrição basead a em elem entos técnicos, som os incitad os a sentir d iversas em oções, com o ind ignação e p ena. As jóias u sad as p ela vítim a, e d escritas no relatório, são signos d e seu estatu to social e tornam m ais cru a a cena d o crim e, u m a vez qu e se exp licita o fato incontestável d e qu e tod os estão su jeitos a m ortes violentas d aqu ele tip o. N em m esm o os ricos escap am às m ortes trágicas. Essa d escrição p od e incitar até m esm o u m a esp écie d e tem or. Além d isso, a m enção ao p ercu rso d as balas no corp o d e V é índ ice d a violência d o ato d o m arid o, p ois foram cinco tiros qu e p rovocaram d ez p erfu rações. O corp o d essa m u lher foi qu ase tod o violad o p elas balas. Tu d o isso é ap resentad o em lingu agem técnica, científica, a fim d e ap agar as m arcas d os su jeitos e garantir a credibilidade necessária.

--- A visão d e m u nd o qu e se verifica, a p artir d essa constru ção textu al, só p od e ser avaliad a em relação ao lu gar ocu p ad o p or esses ind ivíd u os qu e, ao se esp ecializarem em avaliações d e d eterm inad as ord ens, d e acord o com d eterm inad as técnicas (as d iversas p erícias), fazem u so d e recu rsos referentes a u m gênero d iscu rsivo esp ecífico. Através d o u so d e certos recu rsos lingü ísticos e sem ióticos verifica-se a constru ção d e u m a verd ad e sobre o crim e. Tal verd ad e p od eria ser vista com o relacionad a à intencionalid ad e d esses su jeitos enu nciad ores, m as tam bém d o com u nicante, qu e, nesse caso, p od eria ser lid o com o send o o p róp rio Delegad o. Isto p orqu e é p ara ele qu e a p erícia é realizad a, é a p artir d e su a d em and a qu e o trabalho d esses su jeitos é anexad o às p eças d o Processo263. Desse m od o, se os Peritos p esqu isaram e com p araram

as arm as qu e R p ossu ía, isto foi feito em virtu d e d e u m a d em and a. Se eles fizeram u m a análise d o qu e seria necessário p ara m ontar u m a p ronta-entrega, isso tam bém foi feito d e m od o a atend er a u m a solicitação. Porém , o p rod u to d o trabalho realizad o servirá d e argu m ento p ara d irecionar a avaliação d o MP e, ind o m ais longe, d o p róp rio jú ri, que julgará o acusado.

Assim , d e certo m od o, ap esar d e não agirem p or conta p róp ria, os Peritos servem d e instru m ento p ara a constru ção d a verd ad e ju ríd ica. A p artir d isso é p ossível se verificar, por exemplo, elementos de uma primeira visão dos fatos que se delineia no texto referente à avaliação da arma usada pelo criminoso:

Conclusão:

Admitindo-se que o atirador não seja “expert” no assunto, mas as conheça e as tenha há algum tempo, “os Peritos Criminais, signatários do presente laudo são de parecer que o REVÓLVER “TAURUS2 T. A. 38”, apresenta melhores condições de manuseio e precisão, tendo em vista o resultado acima enumerado e ainda, porque a mesma pode ser utilizada com uma só mão desde o primeiro disparo. (...)

263 No relatório redigido pelo Delegado, como se poderá verificar, o resultado das perícias serviu de

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174 Através d essa avaliação, o Perito afirm ou ser a arm a u sad a no crim e d e m elhor qu alid ad e qu e a ou tra qu e o réu p ossu ía, fornecend o elem entos p ara a constru ção d a tese d e qu e a m elhor arm a foi calcu lad am ente escolhid a p or R. Consid erand o qu e há inform ações nos au tos acerca d o razoável conhecim ento d o réu acerca d e arm as d e fogo, inclu sive em term os d e cam p eonatos d e tiro ao alvo, esta conclu são lança u m a semente para se afirmar a gravidade da culpa.

É interessante qu e a p red om inância calcu lad a d e elem entos relativos à d im ensão d em onstrativa – d escrição d a cena d o crim e, exam e d e corp o d e d elito, exam e d e balística, fotografias, croqu is –, p or u m lad o, e a au sência d e u m a exp ressivid ad e p atêm ica, p or ou tro, p arece fu ncionar argu m entativam ente. Essa p ostu ra revelaria u m a constru ção d e u m a im agem d e si no d iscu rso, a qu al estaria relacionad a à seried ad e e à com p etência. Para qu e os Peritos sejam d ignos d e créd ito é p reciso d em onstrar p ossu ir as qu alid ad es necessárias, assim com o é p reciso su p rir as demandas esperadas.

Nas trilhas de Charaudeau264, é possível observar que a credibilidade, resultante

d e u m a constru ção d e u m a id entid ad e d iscu rsiva, p od e ser observad a através d e d iversos índ ices e d eve satisfazer ao m enos às cond ições d e sincerid ad e e d e eficácia. Em su a análise d o d iscu rso p olítico, este au tor afirm a qu e a cond ição d e sincerid ad e se justifica p elo d izer a verd ad e, ou seja, o su jeito é obrigad o a d izer a verd ad e (ou a fazer p arecer qu e d iz a verd ad e), enqu anto a cond ição d e eficácia p ressiona o su jeito a provar que dispõe de recursos para realizar tal tarefa da forma como se espera.

N o caso d os Peritos, eles d evem , então, constru ir os lau d os d e form a a d em onstrar d izer a verd ad e sobre a cena, sobre a arm a, além d e exp licitarem su a cap acid ad e p ara realizar os resp ectivos exam es: avaliação d a arm a, avaliação balística,

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--- avaliação d o trajeto d as balas, avaliação d a entrad a e saíd a d as balas no corp o d a vítim a etc. Parece haver m esm o, nesses term os, u m a “ju sta m ed id a” na u tilização d os recu rsos p ara a constru ção d os relatórios. Se, no caso d o p olítico, o enu nciad or d eve d em onstrar d isp or d e m eios p ara realizar seu intento, no caso d os Peritos, eles p recisam m ostrar-se com p etentes não necessariam ente com o objetivo d e p rovar qu e são cap azes d e fazer algo sobre o caso, m as no sentid o d e qu e estão ap tos a contribu ir com a investigação. A com p etência é d em onstrad a através d e d ad os bem p recisos e d e recu rsos relativos à argu m entação d e au torid ad e (lau d o d o IML, realizad o p or m éd icos legistas, p or exem p lo) e visa a reforçar qu e eles são su jeitos cap acitad os p ara colaborar na constru ção d e u m a verd ad e sobre o crim e. Além d isso, já é p ossível se vislu m brar uma certa imagem da vítima e do acusado a partir dessa cientificidade.

É im p ortante d estacar m ais u m a vez qu e eles agem sob a tu tela d o Delegad o, o qu al ind ica, através d e su as su p osições, os p assos a serem segu id os, p ois antes d e d ar início às investigações, ele já ou viu o réu e algu m as testem u nhas, o qu e já lhe p erm ite tecer algu m as consid erações sobre o caso, as qu ais são fu nd ad as em su a exp eriência. Através d os relatórios p rod u zid os p elos Peritos, o Delegad o p od e confirm ar ou não su as hip óteses sobre o crim e, o qu e faz com qu e o trabalho d esenvolvid o p or esses sujeitos funcione como argumento de autoridade, legitimando a tese a ser defendida.