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3.1 – O QUE É ARGUMENTAÇÃO?

3.2 UM BREVE PASSEIO PELAS ORIGENS

Enfim é p elo d iscu rso qu e

p ersu ad im os, sem p re qu e

d em onstram os a verd ad e ou o qu e p arece ser a verd ad e, d e acord o com o qu e, sobre cad a assu nto, é su scetível de persuadir.

Aristóteles.

A argu m entação está no coração d a retórica e ju stam ente p or isso foi alvo d e d esconfiança e m esm o d e d escréd ito p or u m longo p eríod o. O interesse p elo u so d o d iscu rso com d eterm inad os fins rem onta aos gregos, d os qu ais tem os os p rim eiros registros d esse m od o d e organização d iscu rsiva. Segu nd o consta nas obras d estinad as a retom ar a história d a retórica102, ela teve início p ossivelm ente com Empédocles,

ap roxim ad am ente no sécu lo 5 – 465 -, m as se im p ôs som ente com a criação d o m anu al de Córax. Foi Córax que, com seu discípulo Tísias, elaborou preceitos práticos p ara qu e os ind ivíd u os p u d essem recorrer d evid am ente à Ju stiça em casos d e p osses ind evid as d e terras. Isto p orqu e, ap ós a qu ed a d a tirania, o p ovo tentava anu lar as exp rop riações resolvid as p elos jú ris p op u lares. O conju nto d e p receitos p ráticos d e Córax consistia

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PLANTIN, 1996: 24. Minha tradução do original em francês: “o conjunto de técnicas (conscientes ou inconscientes) de legitimação de crenças e de comportamentos. Ela busca influenciar, transformar ou reforçar crenças e comportamentos (conscientes ou inconscientes) de seu ou de seus alvos”.

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É preciso destacar que a produção discursiva do Tribunal do Júri se constitui de um alto grau de argumentatividade.

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--- em fórm u las a serem u tilizad as p ara tornar o d iscu rso verossím il, p ois não se visava, necessariam ente, à constru ção ou à ap resentação d a verd ad e, m as à retom ad a d e u m d eterm inad o bem . De u m m od o geral, as inform ações acerca d o su rgim ento d a retórica se relacionam à literatu ra, m as, com o se vê, ela em erge em estreitas relações com as questões judiciárias, sem ainda nenhum alcance filosófico.

Ap enas sécu los m ais tard e, os p rim eiros registros d e qu e se tem notícia su rgiram com os sofistas. Segu nd o Plantin, o legad o d os sofistas é fu nd am ental p ara tu d o qu e se d esenvolveu em term os d e argu m entação e u ns d os p ontos d ecisivos d e su as contribu ições aos estu d os d a argu m entação são: a noção d e antifonia, o sentid o d e

paradoxo, a noção d o provável e a dialética com o d eterm inante d a interação

argumentativa. 103

Platão, consid erad o u m d os m aiores op ositores aos sofistas, acred itava qu e eles falseavam a realid ad e e, p or isso, p rop ôs a filosofia com o d iscu rso, d estacand o o conceito d e verd ad e. Para o filósofo era su a retórica qu e d izia resp eito à filosofia e à d ialética e não à sofística. Essa form a d e p ensar a retórica aliad a à id éia d e qu e há, p or u m lad o, o exercício rigoroso d o p ensam ento e, p or ou tro, “u m a aventu ra sem p rincíp ios d e u m a lingu agem qu e com and a, sobretu d o o p razer”104, p rovocou u m a

p rim eira cisão entre filosofia e retórica, e entre razão e em oção. Desse m od o, enqu anto a filosofia assegu rava o acesso à verd ad e, a sofística p assou a ser encarad a com o o d om ínio d esvalorizad o d o ú til. Com esse m od o d e enxergar a filosofia e a retórica, Platão acabou p or contribu ir com a d ecad ência d esta ú ltim a no fu tu ro. Além d isso, ele foi o resp onsável p ela m á rep u tação d a sofística, graças às su as críticas e d eform ações d o p ensam ento d estes filósofos. Talvez p or tu d o isso, a retórica d e Platão aind a seja muito criticada, por ser vista como propaganda e manipulação. Isto porque foi nela que

102

Ver REBOUL (1998), MEYER (1999), DECLERQ (1992) e outros.

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90 se encontrou su p orte p ara a afirm ação d e qu e a retórica consiste ap enas em u m a arte decorativa, nos séculos posteriores.

Ap ós Platão, foi seu d iscíp u lo Aristóteles qu em reestru tu rou tod a a retórica. É im p ortante d estacar qu e, ap esar d e os su cessores d este filósofo terem d esenvolvid o os estu d os nesse terreno, foi ele qu em ap resentou os elem entos fu nd am entais resp onsáveis p or em basar os m anu ais d id áticos e as d iscu ssões em torno d o tem a a p artir d e então. Isto p orqu e foi Aristóteles qu em rep ensou e reestru tu rou totalm ente a retórica, ao integrá-la em um sistema, através do texto fundador da disciplina. Com ele, a argu m entação retórica p assou a ser m ais rigorosa e m enos p rop agand ística, p ois, ao conferir u m a d efinição m ais m od esta à d iscip lina, o m estre a tornou m ais p lau sível e, portanto, mais eficaz.

O abandono da teoria platônica das idéias foi decisivo para Aristóteles, uma vez que a retórica p assou a não m ais ficar su bm etid a à filosofia. Ela p assou a ocu p ar, a p artir d e então, u m esp aço p rivilegiad o e ú nico. Tod avia, o d iscíp u lo não contrad iz o m estre no qu e se refere à m aneira com o su p õe a ap reensão d o real, através d o logos como d iscu rso ap od íctico, no qu al o conceito d e verd ad e constitu i u m elem ento central. Como atesta Meyer105, talvez p or cau sa d e Aristóteles a retórica foi d ivid id a em

duas: retórica dos conflitos qu e se ocu p a d a argu m entação, d a d ialética, d a intersubjetividade e d os conflitos e a retórica das figuras, qu e rem ete ao estilo. Enqu anto a p rim eira é associad a ao d ireito, a segu nd a é associad a à literatu ra. Porém , m esm o tratand o d a retórica dos conflitos e d a retórica das figuras, Aristóteles acred itava na superioridad e d o m od elo científico com o norm a d e saber e d o d iscu rso – no logos.106

Ele segu e os p assos d e Platão na m ed id a em qu e se p rop õe a d iferenciar retórica d e d ialética e d e sofística, conferind o au tonom ia a p rim eira. Porém , com o afirm a

104

CARRILHO, 1999: 171.

105

--- Carrilho107, essa au tonom ia é lim itad a. Esse id eal d e ap od iticid ad e acabará p or

contribu ir p ara qu e a retórica se transform e em u m a d iscip lina interessad a ap enas p elas figu ras, p ois, com raras exceções (Qu intiliano e Cícero), os au tores p rivilegiaram o discurso, deixando de lado os argumentos e as paixões.

Além d e tornar clara a “u tilid ad e d a retórica”108, o filósofo m ostrou qu e a

verd ad eira tarefa d a retórica consiste em ver teoricam ente o qu e, em cad a caso, p od e ser capaz de gerar a persuasão:

N enhu m a ou tra arte p ossu i esta fu nção, p orqu e as d em ais artes têm , sobre o objeto qu e lhes é p róp rio, a p ossibilid ad e d e instru ir e d e p ersu ad ir; p or exem p lo, a Med icina, sobre o qu e interessa à saú d e e à d oença, a Geom etria, sobre as variações d as grand ezas, a Aritm ética, sobre o nú m ero; e o m esm o acontece com as ou tras artes e ciências. Mas a retórica p arece ser cap az d e, p or assim d izer, no concernente a u m a d ad a qu estão, d escobrir o qu e é p róp rio p ara p ersu ad ir. Por isso d izem os qu e ela não ap lica su as regras a u m gênero p róp rio determinado.109

Segu nd o Meyer, além d o d estaqu e ao asp ecto p ersu asivo, a retórica d e Aristóteles consiste na d iscip lina qu e estu d a os m eios u tilizad os p elo hom em p ara negociar a d istância qu e o sep ara d o ou tro, acentu and o-a ou atenu and o-a.110 Desse

ângu lo, vê-se qu e su a inserção no social é m u ito grand e; os assu ntos d a polis sem p re estavam em jogo, eram eles qu e interessavam aos d ebated ores e aos filósofos e a retórica ainda não estava restrita à análise das figuras.

Este arcabou ço d esenvolvid o e sistem atizad o p or Aristóteles serviu d e base p ara o d esenvolvim ento d e tod as as teorias d e argu m entação qu e su rgiram d ep ois d ele, m esm o com as contrad ições e lim itações qu e p u d erem ser id entificad as. Para os 106 MEYER, 1991: 11. 107 CARRILHO, 1999. 108

Segundo Aristóteles, a retórica é útil; o verdadeiro e o justo são por natureza mais fortes que seus contrários; é preciso ser capaz de defender tão bem o contra quanto o pró, evidentemente, não para torná- los equivalentes; se a palavra é característica do homem, é mais desonroso ser vencido pela palavra que pela força física.

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92 p rop ósitos d esta tese centro-m e nas p rovas inerentes ao d iscu rso: pathos, ethos e logos. É a p artir d essa tríad e qu e intento refletir sobre o fu ncionam ento d a argu m entação nos d iscu rsos p rod u zid os p or e no Tribu nal d o Jú ri. Isto p orqu e, com p artilho com Carrilho e, evidentemente com Aristóteles, a idéia segundo a qual

Le succès d’une quelconque argumentation dépend toujours du mode selon lequel le discours de l’orateur (logos) tient compte des dispositions et caractéristiques de l’auditoire (pathos) et réussit à interférer avec celles-ci, compte tenu de la manière dont l’orateur révèle ou met en avant ses traits de caractère pertinents (ethos).111

Tod avia, o fato d e Aristóteles d istribu ir a retórica d e acord o com o trip lo eixo –

pathos, ethos e logos – não a torna m enos centrad a no terceiro elem ento. Isto p orqu e, em

su a em p reitad a, ele p rivilegiou o raciocínio d em onstrativo com o entimema (raciocínio incom p leto qu e p roced e d a d ed u ção) e o exemplo (rep ou sa sobre a analogia e p roced e da indução que opera a passagem do particular para o geral). Eggs defende o mestre ao afirm ar qu e ele não d esconsid erou os afetos e os caracteres d o orad or, e não d estacou o

logos, m as ap enas criticou seu s p red ecessores p or eles terem se calad o sobre o

verd ad eiro corp o d a p ersu asão qu e são os argu m entos.112 Em m eio a acu sações e

d efesas, a verd ad e é qu e o p róp rio d esenvolvim ento d as obras d e Aristóteles – Arte

retórica e A rte poética – m ostra bem os interesses d o filósofo. Enqu anto a p rim eira p arte

refere-se ao entim em a ou a u m a retórica d em onstrativa, o segu nd o caracteriza-se p ela p rim azia d o com p onente em otivo. As p aixões, segu nd o Aristóteles, “são as cau sas qu e introd u zem m u d anças em nossos ju ízos, e qu e são segu id as d e p ena e d e p razer; tais

110

MEYER, 2005.

111

CARRILHO, 1999:51. Minha tradução do original em francês: “O sucesso de qualquer argumentação depende sempre do modo segundo o qual o discurso do orador (logos) leva em conta as disposições e as características do auditório (pathos) e tem êxito ao interferir com eles, considerando a maneira que o orador revela ou coloca em evidência seus traços de caráter pertinentes (ethos)”.

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--- com o a cólera, a com p aixão, o tem or e tod as as ou tras em oções semelhante, bem com o seus contrários”.113

De acord o com Carrilho114 a originalid ad e d a obra d e Aristóteles está

ju stam ente nesse tratam ento d as p aixões, qu e cond u zirá a u m a visão acerca d a d inâm ica d a intersu bjetivid ad e. Tod as as qu atorze p aixões (cólera, d esd ém , confiança, calm a, terror, vergonha, im p ru d ência, am or, ód io, tem or, raiva, cobiça, em u lação, ind ignação) fu ncionariam com o p rem issas d a argu m entação. Entretanto, é p reciso ressaltar m ais u m a vez qu e elas são, na p ersp ectiva d e Aristóteles, entend id as sob o viés d o logos. Além d isso, essa visão taxonôm ica não atend e, a m eu ver, às necessid ad es d e u m a análise d a com p lexid ad e d os d iscu rsos argu m entativos, u m a vez qu e não m e p arece p ossível listar p aixões com o se elas fossem d eterm inantes d e tu d o qu e se refere à em oção. Parece-m e, aind a, m u ito d ifícil d iscriminá-las em em oções, ou sensações, ou paixões, e mais difícil seria, a meu ver, criar uma hierarquia.

Ou tros elem entos esp eciais d o arcabou ço d esenvolvid o p or Aristóteles são os

topoï ou lugares comuns (leis d e p assagem ) e su a im p ortância d ecorre d o fato d e qu e são

eles os resp onsáveis p or m arcar a esp ecificid ad e d os silogism os não científicos, u m a vez qu e trazem inform ações sobre com o algo su ced eu ou com o algo su ced erá.115

Enqu anto os lugares específicos rem etem ao tem a d o d iscu rso, os lugares comuns designam as form as arqu etíp icas d o raciocínio em língu a natu ral. Eles p od em se referir à tem p oralid ad e (real/ não real), à p ossibilid ad e (p ossível/ não p ossível), à qu antid ad e (m ais/ m enos). Sejam com u ns ou não, os topoï têm a característica d e som ente serem eficazes em razão d e su a articu lação com a doxa, com os valores e op iniões d o au d itório, nos qu ais o orad or d eve tocar p ara d ep ois ap resentar os novos valores e

113 ARISTÓTELES, 1998: 97. 114 CARRILHO, 1999. 115 ARISTÓTELES, 1998: 139.

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94 alcançar, a p artir d esse jogo, a ad esão à su a cau sa. Esta id éia foi retom ad a p or au tores como Ducrot que repensou o topos sob uma perspectiva lingüística.116

Finalm ente, no terceiro tom o d o livro, Aristóteles se d eteve no estilo, o qu e será exau stivam ente d estacad o p elo gru p o d e Mu e p or Barthes, na d écad a d e 1960. N essa p arte d e seu sistem a, o filósofo se d ebru ça sobre a invenção, a d isp osição, a elocu ção e a ação.117

A obra d e Aristóteles p od e ser com p reend id a, assim , a p artir d e qu atro instâncias – lógica, ética, p atética e estética – e, ap esar d e não ter m antid o o equ ilíbrio entre elas, é a p artir d este filósofo qu e os latinos elaboram su as contribu ições, relend o e ad ap tand o p ara o seu tem p o as relações entre o pathos, o ethos e o logos. Desse m od o, nas trilhas d os gregos e, sobretu d o, d e Aristóteles, o p eríod o retórico latino é m arcad o p elas obras Do orador e Instituição oratória. A p rim eira d elas foi escrita p or Cícero, p ara qu em as receitas e os tru qu es retóricos são ineficazes, u m a vez qu e o bom orad or d eve ser exp eriente e cu lto. Para ele, o estilo nad a tem d e artificial, p ois a escolha d as palavras, d as frases, d os ritm os é qu e ilu m ina o d iscu rso. O tip o d e ensino p rop osto p or Cícero consistia em algo p rofu nd o, qu e form aria o bom orad or d esd e su a infância, através d a cu ltu ra geral, paideia, em grego, e humanitas, em latim . Assim com o Aristóteles, Cícero é a figu ra m ais im p ortante d e seu p eríod o. É ele o resp onsável p or ap resentar u m a visão nova, a qu al, d e u m lad o, conhece a articu lação entre filosofia e retórica e, de outro, oferece uma compreensão da tríade: pathos, ethos e logos.

Tod avia, contrariam ente a Aristóteles, Cícero afirm ou a su p eriorid ad e d a retórica em relação à d ialética e, através d a articu lação entre retórica e filosofia, foi contra as id éias d e Platão. Teoria e p rática and am ju ntas e a retórica engloba tod a a vid a d o cid ad ão. Com o grand e ju rista e rep u blicano, em bora conferisse d estaqu e e

116 Para saber mais sobre o assunto, ver DUCROT, 1995. 117

--- ap resentasse algo d e novo em relação ao pathos, ele p rivilegiava o ethos, a virtu d e d o orad or, o qu e o levou a acentu ar o d iscu rso p ersu asivo em op osição ao p u ro raciocínio. O hom em eloqü ente seria aqu ele cap az d e falar d e m od o a p rovar – ética – e encantar, excitar emoções – patética. Cícero

[...] associe de manière étroite la portée persuasive de la parole et les multiples pouvoirs expressifs du corps et de la voix de l’homme, non à une relation de froide manipulation mais, plutôt, à l’authenticité, comme si la force et les effets du discours dépendaient entièrement de la conviction qui irradie l’orateur, dans un moment de théâtralisation de la vérité [...]118

Desse m od o, é p ossível verificar qu e a força conferid a ao pathos ap arece aqu i e será retom ad a m ais ad iante no cu rso d a história. Entretanto, segu nd o Meyer119, com

Cícero a retórica se red u ziu à lingu agem estilizad a, freqü entem ente conveniente e ornamental, que é destinada a agradar.

Ou tro im p ortante nom e d esse p eríod o é Qu intiliano, u m grand e ad vogad o assim com o Cícero, qu e tam bém teorizou sobre o tem a na obra Instituição oratória. Seu tratad o, d e acord o com Rebou l120, abre o cam p o d o ensino retórico, p orqu e nele inclu i a

gram ática com o exp licação d os textos e a d ialética com o técnica d e argu m entação. Em bora não forneça nenhu m a contribu ição exp ressiva à retórica, Qu intiliano teve o m érito d e se esforçar p or conciliar em su a obra a retórica e a ética, d im ensões qu e Aristóteles havia sep arad o. De seu s escritos, em erge a id éia d e u m a retórica qu e valoriza mais os efeitos que os fundamentos.

118

CARRILHO, 1999: 68. Minha tradução do original em francês: “[...] associa de maneira estreita a propensão persuasiva e os múltiplos poderes expressivos do corpo e da voz do homem, não em uma relação de fria manipulação, mas, sobretudo, de autenticidade como se a força e os efeitos do discurso dependeriam inteiramente da convicção que irradia do orador, em um momento de teatralização da verdade [...]”.

119 MEYER, 2005: 12. 120

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