• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 5 – A TESSITURA D O PROCESSO: PASSOS IN ICIAIS D A CONSTRUÇÃO DO CASO

5.1 A fase Policial do Processo: o caso sob o viés do Inquérito Policial

5.1.3 O Delegado: um olhar avaliador

A apresentação do caso ou a construção de uma tese?

Os p roced im entos d a fase Policial são orientad os p elo Delegad o, o qu al é encarregad o d e reu nir os ind ícios d a cu lp a d o acu sad o através d as p rovas d o crim e, d a

---

176 inqu irição d as testem u nhas e d as p erícias. Os d ocu m entos colhid os nessa fase têm p or finalid ad e fornecer as bases p ara qu e o Ministério Pú blico p ossa “d enu nciar” o su jeito. Desse modo, o IP deve auxiliar os trabalhos da Justiça e mesmo depois que eles tenham sid o conclu íd os e enviad os p ara o Fóru m , a Delegacia p od e ser acionad a em qu alqu er m om ento d o Processo. N as p eças em análise, segu ind o as norm as d o contrato, ap ós as d evid as investigações, o Delegad o d e Polícia elaborou , a p artir d os d ad os colhid os, u m relatório. Este d ocu m ento foi enviad o ao Ju iz a fim d e ser avaliad o e d e se verificar a necessid ad e d e ou tros p roced im entos investigativos. Em segu id a, o Ju iz Su m ariante decidiu pelo julgamento do caso pelo júri popular.

Um a p rim eira leitu ra d o texto ap resentad o ao Ju iz ap onta p ara a p ercep ção d e qu e, m ais qu e u m relatório final acerca d e p rocesso investigativo, u m a tese acerca d a cu lp a d e R foi d efend id a. Pod e-se p erceber esse d irecionam ento logo nas p rim eiras linhas d o texto, através d e u m a avaliação d e com o as notícias sobre o crim e tiveram uma grande repercussão: “abalou a op inião p ú blica m ineira”. Com essa afirm ação, este su jeito enu nciad or já trabalha em favor d a constru ção d e u m a im agem acerca d o p róp rio caso: trata-se d e u m crim e p ertencente ao rol d os crim es em blem áticos. É p ossível observar, aind a, u m ju lgam ento d e valor no u so d a exp ressão ad jetiva “ad m inistrad ora d e em p resa”, a qu al realça tanto a p osição social d e V qu anto a im p ortância d e su a ocu p ação p rofissional. Tod avia, é p reciso ap arentar u m a certa neutralidade, a qual, através do uso da modalidade delocutiva, p ôd e ser efetivad a. Pois ele apresenta o que é dito como se a palavra dada não fosse de sua responsabilidade:

O crime, que a todos colheu de intensa surpresa, terminou monopolizando as atenções não apenas dos mineiros, mas, também, a opinião de grande maioria dos brasileiros, já em virtude do próprio acontecimento, já também, e principalmente, porque reabria em todos – e particularmente na sociedade de Belo Horizonte – a recente e dolorosa chaga deixada em cada um por ocasião do julgamento do matador de outra mineira, Ângela Diniz, no Estado do Rio de Janeiro.

--- A alu são ao assassinato d e Ângela Diniz traz à tona u m a d iscu ssão relativa tanto à violência contra a m u lher qu anto u m a recorrente d iscu ssão acerca d o caráter absu rd o d a p ena im p u tad a a Doca Street. Desse m od o, levand o em conta qu e, em Processos Ju d iciais d esse tip o, tu d o se constrói tend o em vista não som ente o Ju iz – seu interlocu tor d ireto – m as u m tiers – relativo ao corp o d e ju rad os – já se lança u m a sem ente p ara a ap licação d e u m a p ena m ais rigorosa. A p roteção d a face d a vítim a d os ataqu es já sofrid os p ela socied ad e m ineira e a criação d e u m a im agem p ositiva acerca d ela se verifica em tod o o relatório, o qu e antecip a a refu tação a novos ju lgam entos d e caráter moral:

Logo nos primeiros dias após o ocorrido com V, já brandiam no ar as espadas cruéis dos maledicentes e pululavam aflitas as línguas e a mesquinhez daqueles que não sabem viver sem os sabores apimentados dos escândalos, os quais, em suas mentes, devem envolver sempre a morte violenta de uma mulher jóvem, bonita e de boa posição social.

Também o fato gerou a revolta e o protesto. Não o conflito, mas a justa preocupação e a legítima preocupação e a legítima precaução de tantos quantos aguardavam e têm viva na memória a retaliação sofrida por outra mulher, vítima também de assassinato, e o inexplicável endeusamento de seu criminoso, naquele triste espetáculo armado na tão aprazível cidade de Cabo Frio.

Ao m encionar a “ju sta p reocu p ação”, a “legítim a p reocu p ação” e a “legítim a precaução”, o enu nciad or p rotege tam bém su a face, u m a vez qu e não se m ostra u m d efensor fervoroso, m as se p osiciona na ju sta m ed id a p ara u m caso d e crim e tão absu rd o. A p róp ria rep etição d o item lexical “p reocu p ação”, acentu ad o p elos ad jetivos, evid encia a coloração d esejad a. A d efesa à im agem d e V se exp licita em tod o o fragm ento, p ois aqu eles qu e se p rop u seram a criticá-la são consid erad os “m aled icentes”. Term os lexicais com o “brand iam ”, “esp ad as”, “p u lu lavam ” evid enciam o d irecionam ento p atêm ico d o trecho, p ois su p erd im ensionam a indignação que ele deseja incitar em seu interlocutor.

---

178 Os estereótip os acerca d e u m a m u lher com o V são evocad os ao lad o d a cond enação sofrid a p or Ângela Diniz, p ois tanto u m a qu anto a ou tra foram consideradas femme fatales; send o tod os os clichês acerca d esse p erfil d e m u lher u tilizad os p ara d esigná-las. O p ior é qu e essa im agem criad a em torno d essas figu ras p erm aneceu forte, u m a vez qu e se com p ôs u m a red e d e significações sim bólicas, d ensa e rica. Daí se verifica com o, ap esar d e p arecer absu rd o, se p ossa aind a fu nd ar o julgamento de criminosos nessas imagens pautadas em julgamentos morais arcaicos.265

Se, p or u m lad o, a im agem qu e se d elineia d e V é p ositiva, d e form a a se d estacar o estatu to d e vítim a, p or ou tro, R é cu lp abilizad o, assim com o, d e u m m od o geral, faz a Acu sação na tribu na. Parecend o m esm o antecip ar o ju lgam ento d o réu , o enu nciad or se esforça p or criar u m a im agem negativa d ele. Aind a no trecho anterior, é p ossível se verificar qu e a ironia m arca u m a refu tação p or antecip ação à p ossibilid ad e de R ser também apoiado pela sociedade: “inexplicável endeusamento”.

É interessante observar qu e a ap resentação e d efesa d e u m a im agem p ositiva d e V em contrap osição a u m a negativa d e R faz p arte d o rol d as estratégias ritu alísticas usadas em ju lgam entos d e Tribu nal d o Jú ri.266 A evocação ao “caso Ângela Diniz”

fu nd am enta a argu m entação p or analogia267, p ois a situ ação d e réu e vítim a é

relacionad a àqu ela d os p rotagonistas d o ou tro crim e. Assim com o Ângela Diniz, a vítim a foi criad a em Minas Gerais, era u m a m u lher d e p osses e ind ep end ente. O réu ,

265

Vale lembrar aqui um caso recente (2001) referente ao assassinato de uma síndica, na zona sul de Belo Horizonte, por um dos condôminos do prédio em que ela residia. O sujeito assassinou essa mulher com 27 facadas, além de atingir seu filho adolescente. Por incrível que possa parecer, em seu julgamento, no Tribunal do Júri, ele foi absolvido por alegação de “legítima defesa do lar”. Todas as notícias divulgadas na mídia destacaram a imagem de uma mulher impetuosa, intransigente, enfim, fora de controle. Essa rede simbólica criada e amplamente divulgada, certamente contribuiu com essa decisão absurda. Tão absurda que se trata de um erro judicial, o qual levará o assassino a um novo julgamento. (informações obtidas a partir de entrevistas informais com serventuários da justiça)

266

Em LIMA (2001) procedo a uma análise dessa bipolaridade com destaque para as figuras do réu e da vítima, através da observação das teses sustentadas pela Defesa e pela Acusação, em um outro julgamento.

--- p or su a vez, assim com o Doca Street, é m em bro d e u m a elite, além d e ser rep resentad o com o u m bon vivant. O “inexp licável end eu sam ento” d e Doca Street, em seu p rim eiro ju lgam ento, coloca em xequ e p or antecip ação a avaliação d a socied ad e m ineira sobre o crim e com etid o p or R. Além d isso, ao se referir à m orte d e Ângela com o “triste esp etácu lo” faz alu são ao p róp rio caráter esp etacu lar qu e o crim inoso d e V qu is conferir ao caso268, o qu e ganha u m a conotação em ocional ao ser acom p anhad o d o

term o axiológico “triste”. N essa em p reitad a, o Delegad o retom a a voz d o crim inoso, através do discurso relatado em estilo indireto no intuito de arranhar sua face:

R, a essa altura, encontrava-se em fuga, no interior de seu carro, numa estradinha secundária e sem pavimentação, que dá acesso a uma mineração, bem próximo do Retiro das Pedras ... segundo ele.

Tanto o u so d as reticências qu anto a p róp ria evocação exp lícita à voz d o crim inoso (“segu nd o ele”) ironizam d e form a a qu estionar a valid ad e d a afirm ação feita p elo réu no m om ento d e seu d ep oim ento na Delegacia. A incitação d e d ú vid a acerca d a valid ad e d essa tese sobre o crim e fica evid ente tam bém na m enção ao fato d e qu e, no m om ento em qu e chegaram à resid ência d o casal, no d ia d o crim e, os Policiais Militares já encontraram am igos e p arentes seu s no local269. Qu and o se refere à

confissão feita p or R, na Delegacia, algu ns d ias ap ós a tragéd ia, ironiza o fato d e qu e ele se ap resenta em com p anhia d e u m brilhante ad vogad o, o qu e incita, nas entrelinhas, u m a avaliação sobre a m eticu losa constru ção d a tese d a d efesa ao criminoso.

267

Este tipo de argumento é inserido por Perelman no rol dos argumentos fundados na estrutura do real. O autor não desenvolve uma reflexão voltada para o papel do pathos, mas é possível verificar no uso de um argumento como este um desejo, nas entrelinhas, de suscitar algum sentimento no auditório.

268

A defesa de R parece mesmo copiar a estratégia usada no julgamento de Doca Street. Pois, além da imagem da figura feminina que se criou, há uma alusão a um possível relacionamento homossexual entre ela e uma amiga, que vivia no Rio de Janeiro.

---

180 N esse p rocesso d e d iscu rsivização, os d ad os colhid os nas investigações e o p róp rio d ep oim ento d o réu e d as testem u nhas serviram p ara constru ir a im agem de u m su jeito frio, m alicioso, d em asiad am ente calad o, m esm o recalcad o, qu e p lanejou inteligente e friam ente a violenta a m orte d a esp osa. A “costu ra” d o texto se realiza tanto com os elem entos colhid os p ela p erícia qu anto a p artir d os p roferim entos d o criminoso. Su a op ção p elo u so d e u m a d eterm inad a arm a é d estacad a em vários m om entos, a fim d e d efend er a tese d e qu e, em bora este su jeito p ossu ísse três arm as diferentes, optou pela arma com maior poder de fogo e mais precisão:

(...) utilizando para isso de um revólver “Taurus”, calibre 38, tipo TA (especial para tiro ao alvo) (...) disparando toda a carga existente na arma.

(...) confirmou ter tido outra discussão com a esposa, V, sobre o que disse ter visto no estacionamento do Shoping Center no horário do almoço, quando estava armado de sua ‘Beretta’, carregada e com bala na agulha; quando estava imensamente nervoso (...)

Acha que deu uma cochilada e, ‘de repente’ acordou ‘assustado com gritos’. Disse que sem saber do que se tratava, teve como primeira reação ir apanhar o revólver, exatamente o especial para tiro ao alvo, calibre 38, o utilizado no crime, que estava carregado, no interior de sua capad e napa e fechada com um ziper(sic), no ‘closed’, no alto do armário do quarto de casal (fls. 41 V). Veio com a arma sem capa à mão (...)

Também falou sobre as três armas de sua propriedade, entre as quais a ‘Beretta’, da qual nunca se separava, mas que não usou no crime (...)

A tese d a livre e calcu lad a escolha d a arm a d o crim e, ju stificad a p elo p róp rio depoimento d o réu , alia-se a ou tros elem entos relativos à p ersonalid ad e d esse su jeito, que se delineia como perversa. O percurso relatado por ele na busca da arma, no dia do crim e, revela bem esse caráter obstinad o p ara o m al, qu e o Delegad o d eseja lhe conferir. O ad jetivo “esp ecial” ganha u m a coloração qu e o transform a em m ais u m índ ice d o calcu lism o. Assim , a inteligência d e R, tão realçad a p or tod as as testemunhas270, acaba p or fu ncionar com o u m im p ortante d ad o na constru ção d e seu

p erfil. Isto p orqu e ela contribu i p ara agravar su a cu lp a, na m ed id a em qu e se evid encia

269

Consta dos depoimentos, que, em vez de avisar à polícia sobre a morte de V, a babá, T6, optou por convocar os parentes do réu para irem ao local do crime. Somente depois de avaliar a situação, eles contactaram a polícia.

270

--- a constru ção m eticu losa d o assassinato, através d e su a p róp ria enu nciação271. Ou tros

traços d e su a p ersonalid ad e relativos à p ontu alid ad e, ao com p rom isso com o trabalho, à d iscrição e à sim p atia, com u m ente tom ad os em seu asp ecto p ositivo, tam bém su rgem conferindo a coloração de crueldade ao caso:

Na noite do crime (isso depois de trabalhar normalmente no período da tarde, no horário pontual como sempre, e após ter ido cortar cabelo), R confirmou ter tido outra discussão com a esposa (...)

R diz que, enquanto bebericava, como sempre o fazia à noite, fez macarrão na manteiga, ‘um prato um pouco complicado e demorado’, telefonou a um amigo de Brasília (fls. 41) e orientou a cozinheira sobre o ‘menu’ do dia seguinte.

(...) logo saiu para chegar, pontualmente, a seu emprego (...) Trabalhou, depois, normal e intensamente durante toda a tarde(...)

(...) a cordialidade no trato com a cozinheira, a ponto de convidá-la a comer o macarrão.

Desse m od o, o d estaqu e conferid o a tais elem entos e até m esm o a excessiva rep etição ao longo d e tod o relatório d esses d ad os cond u z a leitu ra em d ireção a u m a p ersonalid ad e d oentia. A cena qu e se ap resenta é d e u m p lano m u ito bem arqu itetad o qu e, sob u m a falsa ap arência d o am or traíd o, visava a fins bastante concretos. O fato é qu e, em m eio aos ataqu es à figu ra d e R, u m a versão d o crim e se ap resenta. Pois, essa constru ção d e su a im agem no d iscu rso (e m esm o d a vítim a e d e algu m as testem u nhas) exp licita a coloração em ocional alm ejad a. Isto porque tais imagens são usadas de modo estratégico p ara tocar m ais p rofu nd am ente seu interlocu tor d ireto, o Ju iz, e, sobretu d o, o tiers qu e será resp onsável p elo d esfecho d o caso, qu e p od e ser lid o com o send o o jú ri popular.

Como já afirmei, a argumentação por analogia fu nciona com o forte estratégia, u m a vez qu e o enu nciad or cria, aos p ou cos, u m a relação entre R e Doca Street, a qu al cu lm ina em u m ju lgam ento d efinitivo. Ele d eseja levar seu interlocu tor a acred itar qu e, assim com o Doca, R p ossivelm ente assassinou V p or não su p ortar a id éia d e p erd er a “boa vida” à qual estava acostumado:

271

---

182

(...) foi bebericar, comer e ver as Olimpíadas pela televisão (...) enquanto bebericava, como sempre fazia à noite (...)

(...) fumando nada menos que nove (9) cigarros importados (...)

R, confessadamente um apreciador e consumidor de caros “wiskies”, de vodka e vinhos importados (...)

(...) como excelente profissional que é, da impossibilidade de tal empreendimento ser realizado assim tão de imediato, quando não tinha condições financeiras ou tempo para a isso se dedicar.

A rotina p rivilegiad a é d estacad a com o form a d e evid enciar qu e u m p ossível em p obrecim ento não seria su p ortável p ara algu ém acostu m ad o a tais lu xos, o qu e é agravad o p elo fato d e qu e ele era u m “bom p rofissional”. A m enção ao fato d e qu e o réu estava acostu m ad o a beber d iariam ente serve, aind a, com o estratégia p ara refu tar p or antecip ação u m a p rovável tese relativa ao fato d e qu e o crim e teria sid o com etid o em u m estad o d e em briagu ez com p leta e sob violenta em oção. Com o já afirm ei, há aind a u m a tentativa d e d esbancar a tese qu e se assem elha àqu ela u sad a no caso d os anos d e 1970, referente à constru ção d a im agem d e u m a m u lher d evassa qu e teria a cap acid ad e d e, além d e ter relações extraconju gais com hom ens, ser atraíd a tam bém por mulheres:

(...) dúvidas tais como a provocada por um corrimento não venéreo e muito comum a qualquer mulher (documentos de fls. 19 a 152), ao qual ele, maliciosamente, em suas declarações, afirmou que ela ‘o havia contraído com a amiga T2’ (...)

Possivelm ente, é a exp eriência d o Delegad o qu e lhe p erm ite su p or o u so d essa tese, a p artir d o d ep oim ento p restad o p elo réu em com p anhia d e seu ad vogad o, na Delegacia. É interessante qu e o u so d essa estratégia se faz recorrente em d efesas d esse tip o talvez m esm o p ara reafirm ar nas entrelinhas a virilid ad e d o crim inoso. O qu e se lê d isso é qu e a p otência e o vigor sexu al d e R nad a teriam a ver com a d evassid ão d a vítim a. Isto se confirm a, com o se verá, em seu d ep oim ento, qu and o ele se esforça p or destacar que seu desejo sexual por V era imenso, enquanto ela se mostrava fria.

--- O u so d a m od alid ad e verbal no fu tu ro d o p retérito – “havia” e “teria” – incita, tanto no fragm ento aind a em análise, qu anto no segu inte, a d ú vid a acerca d as id éias defendidas pelo réu, colocando-as em xeque:

(...) onde a mulher teria confessado ter outro homem e o acordo da separação se estabelecera entre os dois; ali, na imensa sala da residência do casal, cerca de três (3) a quatro (4) horas antes do crime, V teria confessado ao marido, R, que o outro homem que ela teria na vida não era o antigo namorado (...)

A referência à “im ensa” sala d a resid ência alu d e novam ente a u m estilo d e vid a, a u m a p osição social, qu e é reafirm ad a p elos trechos nos qu ais se nota os hábitos ostentad ores d o crim inoso: cigarros e bebid as im p ortad os tod as as noites; cozinheira; escolha d o menu... A ironia ap arece tam bém com o m ais u m elem ento qu e refu ta o d iscu rso d o réu e aind a torna p ú blica a arm ação d e su a d efesa: “Acha que deu uma cochilada e, ‘de repente’ acordou ‘assustado com gritos’”. A incerteza p resente no verbo “achar” p arece ser p rop ositalm ente d estacad a a fim d e se rid icu larizar, com o u so d a locu ção ad verbial “d e rep ente”, o qu e o ad jetivo “assu stad o” exp licita. Isto p orqu e, conform e as p eças p rocessu ais, logo em segu id a, bem m etod icam ente, o réu vai ao qu arto, p ega a arm a d entro d o arm ário, retira a cap a p rotetora p ara, som ente d ep ois d essa esp écie d e ritu al, p rocu rar o tal lad rão qu e o levou a se assu star. Ap enas a p artir d o m om ento em qu e está d e p osse d a arm a é qu e p ercebe serem os gritos ou vid os p or ele, os de V, a qual estava incomodada com o barulho da televisão.

O crim inoso p od eria ser ap resentad o, assim , com o u m su jeito extrem am ente m eticu loso, o qu e, aliad o às inform ações sobre o m om ento d o crim e, revela u m a au sência d e em oção. É interessante p ensar qu e esse argu m ento é m u ito eficaz nesse contexto, p ois d e acord o com o im aginário sócio-cu ltu ral d o brasileiro, em bora haja bastante p reconceito em relação às d em onstrações exagerad as d e em oção, a au sência d ela seria u m a ofensa aind a m ais grave à boa m archa d as relações sociais. N o m esm o

---

184 sentid o, há ou tro elem ento bastante exp lorad o, relativo à p rofissão d o réu ; ele era engenheiro. H á, em nossa socied ad e, u m a im agem , am p lam ente d ivu lgad a e aceita, a resp eito d os p rofissionais d a área d e exatas, a qu al p arte d o p ressu p osto d e qu e existe u m a frieza, u m a falta d e sensibilid ad e, qu e seria p róp ria a esses su jeitos. Ciente d isso, o enu nciad or faz u so d essa visão estereotip ad a e a p rivilegia p ara d estacar essa im agem negativa e amparar sua tese da culpabilidade.

Estava ela no quarto e ‘devia estar deitada’ (fls. 41 V), enquanto R estaria na pequena passagem (...). Uma porta fechada, segundo o próprio criminoso, separava os dois discutindo e ofendendo-se mutualmente, com palavras.

’A certa altura da discussão’, confessa R, ele ‘entrou bruscamente no quarto e já começou a atirar contra V’ (fls. 42).

Sem qualquer outro gesto, com a arma na mão, do local onde estava à entrada do quarto de onde matara a mulher, R apenas se voltou. Apanhou as chaves de seu carro na sala de televisão, onde estivera antes, e com a mesma absoluta certeza de que teve de não ter remuniciado sua arma após descarrega-la contra a esposa, desceu até a garagem e saiu normalmente, dirigindo seu veículo, moderadamente, sem cantar pneus... ‘prá quê?’, como ele próprio afirmou (fls. 42).

A p ergu nta esboçad a p elo réu a resp eito d o fato d e não “cantar p neu s” ao aband onar su a resid ência, ap ós o assassinato, colabora com a ap resentação, a p artir d esse p rocesso d e estereotip ização, d e u m su jeito qu e calcu lou a m orte d a esp osa. Se ele saiu d e casa d irigind o seu veícu lo, d e form a natu ral e m od erad a, isto significa qu e