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A TEORIA DOS MODELOS JURÍDICOS: a modelagem da experência jurídica

2 OS MODELOS JURÍDICOS E SUAS MODALIDADES

2.1 A TEORIA DOS MODELOS JURÍDICOS: a modelagem da experência jurídica

A construção de modelos diz respeito à investigação científica em geral, e não somente em relação a determinadas modalidades de discursos ou para certos âmbitos disciplinares. A modelagem para fins de análise conceitual de determinados problemas, porém, consubstancia apenas uma das estratégias cientificamente relevantes, porquanto existem concepções que pretendem dar conta dos fenômenos estudados sem a intermediação da análise conceitual. O objetivo principal da construção de modelos é expor de forma fecunda os conceitos e relações conceituais relevantes para a compreensão de determinados problemas e práticas; é dizer: é uma reconstrução racional destes problemas e práticas. Todo modelo implica simplificação e abstração de múltiplos elementos e/ou de fenômenos a partir da fixação de determinados critérios de relevância: não há como o modelo (porque tal pretensão mostra-se irrealizável) reproduzir (ou identificar-se com) a realidade estudada. Assim, a existência de “distância” entre modelo e realidade consubstancia-se como uma exigência epistemológica; entretanto, esta distância conceitual não pode ser tão ampla que torne irrelevante a reconstrução racional que se oferece, e essa questão mostra-se particularmente problemática em relação aos modelos dogmáticos: trata-se da tensão entre a

abstração como critério para estabelecimento das condições para que a dogmática exerça sua função social e a abstração como perda do(s) critério(s) para que a dogmática cumpra seu papel na decidibilidade de conflitos. Isso porque se a dogmática jurídica se articula em modelos referidos a modelos-objetos, ela se apresenta, pois, como “abstração de abstração” (metalinguagem referida a uma linguagem-objeto que já se apresenta abstrata em virtude da diferenciação do sistema jurídico em relação ao sistema social). O ponto é importante porque a função social da dogmática vincula-se com a possibilidade de “distância crítica” na organização e conexão de razões, fundamentos e relações, com os quais o material normativo torna-se controlável e aplicável, para além do seu caráter de mero dado “bruto” do qual se parte. A incumbência da dogmática, assim, inclui a própria determinação do grau de abstração em que os pontos de partida devam ser fixados como condições de funcionalidade dos enunciados dogmáticos (componentes da metalinguagem dogmática).74

Nesse contexto, e segundo Alchourrón e Bulygin,75 um modelo abstrato não pode reproduzir toda a realidade, mas não há aspecto da realidade que não possa ser reproduzido em algum modelo. Assim, para todo aspecto do conceito ou do objeto que interessa elucidar (explicandum) pode construir-se um explicatum adequado76 (aos propósitos da elucidação). A compreensão de determinada parcela do real ou de certo objeto exige a intermediação de um modelo que contenha as características pragmaticamente relevantes para o propósito almejado com a compreensão. A simplificação e abstração inerentes às imagens conceituais contidas nos modelos permitem a apreensão de segmentos da complexidade do objeto, para fins de comparação de características: os modelos consubstanciam, assim, instrumentos de comparação fundados em determinados critérios de relevância,77 em cujo âmbito se pode

74 FERRAZ JUNIOR, 1980, p. 96. 75

ALCHOURRÓN, Carlos; BULYGIN, Eugenio. Introducción a la metodologia de las ciencias jurídicas e

sociales. Buenos Aires: Astrea, 2006. p. 31.

76 Mario Bunge faz a distinção entre objeto-modelo e modelo teórico: o objeto-modelo M representa os traços-

chave (ou supostos-chave) de um objeto concreto O (ou suposto concreto); o modelo teórico T especifica o comportamento e/ou o(s) mecanismo(s) interno(s) de O por meio de seu modelo M; e a teoria geral G acolhendo T e que deriva seu valor-de-verdade, bem como sua utilidade de diversos modelos teóricos que podem ser construídos com seu auxílio, mas jamais sem suposições e dados que a extravasam (e recolhidos pelo objeto- modelo M). Assim, Bunge distingue o modelo enquanto representação esquemática de um objeto e o modelo enquanto teoria relativa a esta idealização. A formulação explícita das hipóteses semânticas de uma teoria científica exige a relação de representação por um modelo. BUNGE, Mario. Teoria e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2008. p. 30.

77 O conceito (ou o sistema conceitual) integrante do modelo inclui uma nota valorativa, no sentido de que

relaciona os propósitos do observador com a seleção das características a apreender. Tal relação exerce-se mediante os critérios de relevância, e um critério de relevância mostra-se adequado na medida em que permita selecionar características que satisfaçam aqueles propósitos. Os modelos teóricos têm as funções de previsão (criar condições para a passagem do registro de fatos relevantes para outros eventualmente relevantes), heurística (possibilitar a descoberta de algo relevante e criar condições de orientação das expectativas acerca do que será considerado relevante), organizatória (criar condições para classificação, tipificação e sistematização de fatos

aferir a verofuncionalidade dos respectivos enunciados. A modelagem, assim, exige relação de adequação com a natureza das características a descrever. Conforme assinala Ricardo Guibourg,78 o próprio conceito de compreensão implica um juízo de relevância, equivalente à afirmação ou à aceitação de que as características representadas no modelo são adequadas aos nossos objetivos (com preferência a outras características não representadas).

Os modelos do direito, para Miguel Reale, dividem-se em modelos jurídicos e modelos dogmáticos (como discurso sobre os modelos jurídicos: sua estrutura lógica e axiológica, suas variações semânticas e pragmáticas e sua lacunosidade no ordenamento). A função dos modelos dogmáticos é determinar: a) como as fontes podem produzir modelos jurídicos válidos; b) o significado dos modelos jurídicos; c) como é que eles se correlacionam entre si para compor figuras, institutos, subsistemas e sistemas, tudo na unidade lógico- axiológica do ordenamento jurídico.79 Para Reale, o conceito de modelo de direito implica a articulação dos pressupostos teoréticos com a atualização (e objetivação) da experiência jurídica em termos operacionais, a partir da correlação do momento abstrativo da estatuição volitiva da norma com o momento dogmático de sua compreensão, tendo em vista que a aplicação prática do direito exige a correlação entre estrutura e função das categorias normativas.

Assim, o modelo jurídico capta os fins concretos que se inserem no dever-ser do direito correspondente a um dado complexo de normas objetivadas ou formalizadas segundo os requisitos exigidos pelo ordenamento jurídico para cada modalidade de fonte do direito; a modelagem da experiência jurídica, por seu turno, corresponde ao resultado da ordenação racional do conteúdo das normas reveladas ou formalizadas pelas fontes do direito, para atender aos característicos da validade objetiva autônoma e de atualização prospectiva dessas mesmas normas.80

Importa destacar, no que tange à função social da dogmática, que o ponto de partida para a explicação do conceito de sistema jurídico é a construção de um modelo destinado a reproduzir, abstratamente, os problemas normativos exsurgentes da experiência jurídica.

relevantes) e avaliativa (propiciar o encontro de indicadores para uma compreensão parcial ou total das relações investigadas).

78 GUIBOURG, Ricardo. La construcción del pensamiento. Buenos Aires: Colihue, 2006. p. 59.

79 REALE, 2002, p. 29. Reale alude, ainda, a modelos hermenêuticos (hermenêutico-metodológicos,

hermenêutico-axiológicos e hermenêutico-supletivos/complementares); enquadra, ademais, o ordenamento jurídico como um macromodelo.

80 REALE, 1994, p. 40. Reale apresenta o modelo jurídico como estrutura normativa de atos e fatos pertinentes

unitariamente a dado campo da experiência social, prescrevendo a atualização racional e garantida dos valores que lhes são próprios. A partir disso, a estrutura de tal modelo pressupõe: a) dado campo de atos e fatos da experiência social; b) uma ordenação normativa racionalmente garantida; e c) o propósito de realizar valores ou impedir desvalores, de conformidade com a natureza de cada porção de realidade objeto da investigação.

Significa dizer: a reconstrução racional da prática jurídica depende de um esquema conceitual para identificar o conteúdo de um determinado conjunto normativo, porquanto somente a partir de determinado esquema conceitual se pode definir quais são os conjuntos normativos delimitados espacial e temporalmente. A identificação de uma “origem” ao conjunto normativo levado em consideração põe em funcionamento o modelo em um tempo T e um espaço E para, a partir desse ponto de partida, possibilitar a aferição dos fatos tidos por relevantes, no âmbito da experiência jurídica, para fins de qualificação normativa. Isso viabiliza a distinção, no que diz respeito à “existência empírica do direito”, com outros critérios de identificação (por exemplo, o critério que indica a prática de aceitação de normas). Assim, a idéia segundo a qual os “usuários” do direito aceitam normas que satisfazem determinados critérios de identificação permite separar os fatos em que consiste a aceitação, dos critérios que satisfazem as normas aceitas pela comunidade considerada. O modelo de sistema jurídico, como construção dogmática, presta-se, assim, à reconstrução do conjunto normativo a ser tratado como sendo o direito D, a partir da hipótese de acordo com o qual os aceitantes de suas normas apresentam atitudes consistentes quanto ao uso destes critérios conceituais. Nesses moldes, a própria construção conceitual de sistema fornece os critérios para elaborar o conjunto normativo que funciona como um modelo teórico, ou seja, como uma idealização dos resultados eventuais de uma prática de identificação, em uma definida localização espacial e temporal.81 Essa particularidade mostra-se relevante para a visualização dos critérios conceituais de identificação (de normas do sistema) como independentes da constatação de fatos empíricos (como, verbi gratia, a conduta, reiterada no tempo, dos juízes); tal constatação, por outro lado, pode se mostrar relevante para outros propósitos correlatos, como, por exemplo, para se estabelecer se a ordem jurídica, identificada por meio de certo critério conceitual fornecido pelo modelo, é ou não vigente (“encontra-se em funcionamento”) em um tempo e lugar determinados. Segue-se disso que os critérios conceituais decorrentes dos modelos dogmáticos (e a partir dos quais estes modelos assentam seus pontos de partida) não dependem apenas da existência de práticas jurídico-institucionais: dependem de como se reconstruam, conceitualmente, tais práticas. É a partir desta particularidade - no que tange à prática jurídico-institucional da tutela jurisdicional - que deve ser analisada a função social da processualística.

81

CARACCIOLO, Ricardo. Sistema jurídico. In: VALDÉS, Ernesto Garzón; LAPORTA, Francisco (Org.). El

A modelagem dogmática da experiência jurídica pode ser assimilada à “inferência explicitante”82 (da qual resulta uma “objetivação normativo-dogmática”) da implicitude ínsita à relação entre legislação e jurisdição existente na complexidade do conjunto dos casos jurídicos.