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2 OS MODELOS JURÍDICOS E SUAS MODALIDADES

2.3 POSTULADOS DA CONSTRUÇÃO DOGMÁTICA DE MODELOS

A dogmática ostenta uma faceta destacamente tecnológica,91 e tal característica corresponde ao primeiro postulado da construção dogmática de modelos. Em sua faceta de tecnologia de decidibilidade de conflitos, o pensamento dogmático tem como problema fundamental a necessidade de interrupção da possibilidade de indagação, no sentido de que a tecnologia fixa seus pontos de partida e problematiza apenas a sua aplicabilidade na solução de conflitos. Assim, os enunciados dogmáticos põem-se a serviço da problemática da realizabilidade prática de modelos de comportamento e, até determinado ponto, das consequências da sua realização para a vida social. Como pensamento tecnológico, a dogmática racionaliza a experiência jurídica, a partir da explicitação da implicitude embebida em tal experiência; para tanto, “é preciso obter-se decisões sobre fins e meios não-dedutíveis do próprio saber dogmático, embora conseguidas em consideração dele”.92 Segundo Sampaio Ferraz, as questões da dogmática (postas “fora de dúvida”, para que os pontos de partida funcionem como dogmas) “podem também ser submetidos a um processo (zetético) de questionamento através do qual se exige uma fundamentação e uma justificação”93,

89 FERRAZ JUNIOR, 1980, p. 99.

90 ATIENZA, Manuel; MANERO, Juan Ruiz. Las piezas del derecho. Barcelona: Ariel, 2007. p. 44. 91 FERRAZ JUNIOR, op. cit., p. 89.

92

Ibidem, p. 90.

93 Ibidem, p. 92. Assinala o autor que a dogmática não se exaure na tarefa de interpretação, construção e

sistematização de modelos, numa análise de todos os processos que integram a técnica jurídica. Assim, “quando dizemos que a dogmática jurídica é um pensamento tecnológico, não devemos confundi-la com a atividade jurisdicional de modo amplo - o trabalho de advogados, juízes, promotores, pareceristas - num sentido de técnica jurídica. A técnica é um dado importante, mas não é a própria dogmática”. Ibidem, p. 94. Acrescentamos: a técnica jurídica não é a própria dogmática porque seus modelos buscam a unidade prático-funcional entre técnicas e valores, e é esta busca de unidade prático-funcional entre técnicas e valores que caracteriza a dogmática como pensamento tecnológico. O ponto é importante para se evitar que a noção de pensamento tecnológico seja vista como pensamento refratário a valores.

objetivando, por meio do estabelecimento de novas conexões, condicionar a obtenção de decisão e a orientação da ação.

Estreitamente vinculado à característica da dogmática como pensamento tecnológico está, no que toca à construção de modelos, o postulado da inegabilidade dos pontos de partida: a decidibilidade depende da interrupção da indagação (por fundamentos) para fins de fixar pontos de partida cuja problematização dar-se-á quando da perquirição acerca de sua aplicabilidade como solução aos casos jurídicos. Essa questão guarda uma relação de paralelismo com aquela, discutida no âmbito da teoria do direito, acerca da regra de reconhecimento hartiana como critério de identificação de normas válidas: (1) para justificar uma ação não é suficiente mencionar uma norma, é necessário usá-la; (2) o questionamento “porque devo obedecer esta norma?” remete a outra norma, perante a qual sempre cabe formular o mesmo questionamento: a série de perguntas pelo fundamento é infinita (frente a qualquer norma pode-se reiterar a indagação; os juízes podem, por exemplo, indagar a razão para obedecer a regra de reconhecimento). Assim, se alguém, em determinado ponto da cadeia de indagação, pretende saber o que deve fazer, deverá usar uma norma, e não indagar acerca do fundamento para obedecer a esta norma,94 e essa é a razão da imprescindibilidade dos critérios conceituais de identificação do sistema jurídico (e de suas normas), critérios estes cujo delineamento viabiliza, a partir deles, a diferenciação dos modelos dogmáticos como metalinguagem em relação às normas jurídicas como linguagem-objeto. Significa dizer: tendo em vista a inegabilidade dos pontos de partida das séries de indagações acerca dos fundamentos das normas é que o “pensamento dogmático guarda sua unidade pela referência ao problema da decidibilidade”.95 Por isso que a interrupção da indagação conecta-se com a determinação de critérios conceituais de identificação de normas jurídicas.

A funcionalidade dos modelos dogmáticos, portanto, depende de critérios conceituais correspondentes a pontos de partida excludentes da perquirição por fundamentos das normas, critérios que possibilitam a abstração, ínsita aos modelos, exigida pela função social da dogmática jurídica, porquanto a decidibilidade só tem sentido como seu problema central a partir da conceptualidade como linguagem de sobrenível em relação aos textos normativos. Nesses moldes “a dogmática deriva da vinculação a sua própria liberdade”: seus modelos aumentam incertezas de modo controlado, “a um grau de suportabilidade social tendo em

94 BULYGIN, Eugenio. Algunas consideraciones sobre los sistemas jurídicos. Alicante, Doxa, n. 09, 1991. p.

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vista a decidibilidade de conflitos”.96 Esse aumento das incertezas ocorre de modo que “elas sejam compatíveis com duas exigências centrais do sistema jurídico: a vinculação a normas e a pressão para decidir em caso de um conflito dado”.97 A dogmática, nesses moldes, configura-se como discurso legitimador de mediação - como controle racional, portanto - entre a generalidade das normas e a singularidade dos casos concretos, mas em termos de mediação entre as normas como premissa de decisão e a tomada de decisão a respeito de um caso jurídico, à luz de critérios conceituais que acabam se identificando como condições de controle racional. Essa é a razão pela qual a decidibilidade confere sentido à função social da dogmática como construção de modelos de tomada de decisão jurídica, modelos que se interpõem entre as normas como premissas de decisão e o caso objeto de decisão.98 Os modelos dogmáticos, assim, correlacionam autolimitação com virtualidades de abstração (flexibilidade em relação às normas a que se reporta a autolimitação), abstração por meio da qual “o material jurídico é elaborado e controlado num plano que se situa para além daquele em que esse material se apresenta de imediato como dado, aí mesmo sendo preparado por forma a tornar-se aplicável aos casos da vida”.99 Nesse sentido é que a modelagem dogmática conecta-se com a própria configuração do caso jurídico, e desse modo opera um “corte” na sequência ininterrupta dos fatos considerados no processo explicativo das ciências em geral, e das ciências sociais em particular. Conforme João Baptista Machado, três são as razões pelas quais se dá tal “corte” no modelo de decisão jurídica: a) razão de ordem normativa; b) razão de ordem pragmático-funcional; e c) pela necessidade de recorrer à noção de imputação jurídico-subjetiva.100

Por fim, a construção dogmática de modelos vincula-se à viabilização das condições do juridicamente possível, a partir da visualização do ordenamento jurídico como mecanismo

96 FERRAZ JUNIOR, 1980, p. 97. 97 FERRAZ JUNIOR, loc. cit.

98 Por isso é que os modelos dogmáticos não se caracterizam como simples “eixos de mediação” entre normas e

fatos (nem a simples “técnicas de subsunção”): conforme Sampaio Ferraz (ob. cit., p. 99), “sua função repousa, outrossim, no controle da consistência de decisões tendo em vista outras decisões; em outras palavras, no controle de consistência da decidibilidade, sendo, então, a partir dela que se torna viável definir as condições do juridicamente possível”.

99

MACHADO, 2008, p. 369.

100 Baptista Machado expõe que cabe à ordem jurídica exprimir o que é exigível: procura, portanto, submeter os

fatos a normas (intenção modeladora) e não subordinar estas à força dos fatos (pura adaptação) - razão de ordem normativa. Por outro lado, a resolução de conflitos exige o atendimento a certos critérios determináveis (com reconhecimento da relevância somente daqueles argumentos inseridos no contexto normativo assim delimitado), e que seja possível a tutela jurídica de determinados interesses - razão de ordem pragmático-funcional. Por fim, o discurso jurídico erige o sujeito de direito como categoria central para a imputação e atribuição de direitos, deveres, obrigações, pretensões, sujeições, faculdades, competências, poderes, ônus e responsabilidades como marco nuclear para a conversão de problemas sociais em problemas jurídicos - necessidade de recorrer à noção de imputação jurídico-subjetiva. Ibidem, p. 261.

de coordenação entre as normas, a institucionalização e os instrumentos identificadores (e garantidores) de sentido socialmente cognoscível: o ordenamento jurídico, nesses moldes, corresponde ao mecanismo coordenador de expectativas normativas de comportamento generalizadas congruentemente em relação a instituições, normas e identificações sociais de sentido, congruência seletiva de expectativas normativas generalizadas que torna a ordem jurídica institucionalmente diferenciada e autônoma no âmbito das estruturas dos sistemas sociais em geral. Essa diferenciação corresponde à capacidade seletiva e de compatibilização da ordem jurídica quanto às expectativas de conduta que são normativamente generalizadas na dimensão temporal (duração às expectativas normativas), dimensão social (institucionalização como mecanismo de substituição de efetivos consensos sociais, de obtenção impossível) e na dimensão do conteúdo das expectativas (unidade e conexão de sentido às expectativas normativas objeto de institucionalização seletiva). A partir desse contexto, a dogmática jurídica em geral (e a processualística em particular) coloca-se como uma “instância instrumental de viabilização do direito, na medida em que atua como veículo de alta abstração capaz de proporcionar uma congruência estável entre os mecanismos de controle social, mesmo quando, aparentemente, eles não se afinam”;101 a dogmática, assim, não se confunde com a ordem jurídica e suas normas, nem com as expectativas normativas, nem com as instituições, e nem com os valores, porquanto “ela os atravessa todos diagonalmente, possibilitando uma identificação do direito contra as incongruências de fato”.102

Em última análise, a viabilização das condições do juridicamente possível pode, diante do exposto, ser dissociada em dois níveis de análise: a) no tocante aos modelos como critérios conceituais de identificação de normas jurídicas; e b) no tocante aos modelos como critérios de tomada de decisão jurídica.

101

FERRAZ JUNIOR, 1980, p. 117.

102 Ibidem, p. 117. Segundo Sampaio Ferraz, a função da dogmática “é preenchida de vários modos, como, por

exemplo, pelo estabelecimento de princípios para a compreensão da congruência, de guias de ação na aplicação do direito, na hierarquização das fontes, permitindo, assim, a integração de normas e instituições pela determinação de finalidades programáticas, pela constituição de premissas e postulados da argumentação jurídica, o que conduz à identificação de requisitos razoáveis da ordem jurídica, etc.”. Ibidem, p. 117.

3 FORMALISMO-VALORATIVO COMO MODELAGEM DA EXPERIÊNCIA