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Parte II – Função social da processualística como construção da unidade da ordem jurídica

5 A UNIDADE DA ORDEM JURÍDICA E A DOGMÁTICA PROCESSUAL

5.1 NORMAS PRIMÁRIAS E SECUNDÁRIAS

A distinção entre os planos da ordem jurídica deve levar em consideração a diferenciação entre normas primárias e normas secundárias. Segundo Hart, uma estrutura social simples ou rudimentar seria aquela regulada apenas por normas primárias de obrigação (ou imposição de deveres). Uma estrutura social nesses moldes apresentaria uma série de “carências”: a absoluta falta de certeza, o caráter estático das normas e a insuficiência de

181 HART, Herbert. El concepto del derecho. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1963. Para Hart, as normas

primárias prescrevem que os indivíduos façam ou omitam determinadas ações; as normas secundárias, por seu turno, estabelecem que os indivíduos, a partir de determinadas condições, podem introduzir novas normas de tipo primário, extinguir ou modificar as normas anteriores, ou determinar de diversas maneiras os efeitos destas (ou controlar sua atuação). Sabe-se que a classificação de Hart é defeituosa porque utiliza distintos critérios para a diferenciação entre os tipos de normas: por um lado, baseia a distinção a partir do critério entre normas que impõem deveres e normas que conferem poderes (critério coextensivo a ambas as modalidades normativas); por outro lado, baseia a distinção na circunstância - como critério de diferenciação, portanto - de que as normas secundárias referem-se às normas primárias. Hart refere, ainda, que a distinção diz respeito ao fato de que as normas primárias regulam ações que implicam alterações “físicas” e as normas secundárias regulam ações que implicam alterações normativas.

pressão social difusa. O “remédio” para tais “carências” ou “defeitos” de uma estrutura social regulada apenas por normas primárias de obrigação consiste na complementação de tais normas com as normas secundárias, cuja tripartição em normas de alteração de normas, normas de adjudicação e regra de reconhecimento possibilita a passagem de uma “ordem rudimentar” para um genuíno sistema jurídico. Quanto ao caráter estático das normas, uma estrutura social formada somente por normas primárias não teria formas institucionais de adaptação da regulação, de modo deliberado, de acordo com as mudanças das circunstâncias sociais cambiantes (exigentes de alterações na regulação a elas referidas): não existiria meio de, deliberadamente, eliminar normas (antigas) e introduzir normas (novas). A possibilidade de introdução e de eliminação de normas, tendo em vista a alteração das circunstâncias que as normas intentam regular, pressupõe a existência de normas de alteração de normas, que facultem a determinados indivíduos a introdução de novas normas ou a eliminação das normas existentes. Quanto à insuficiência da pressão social difusa, a estrutura social formada somente por normas de obrigação não possibilitaria a emissão de decisões que impedisse a “eternização” de conflitos sociais a respeito da violação das normas primárias: para dar por terminadas tais discussões acerca da violação de normas mostra-se imprescindível a existência de órgãos específicos institucionais com competência e poderes para determinar de forma autoritativa e definitiva a existência de violação e a correspondente imposição de sanções ou consequências jurídicas. De seu turno, a possibilidade de emissão de decisões autoritativas a respeito das infringências das normas primárias pressupõe a existência de normas de adjudicação que, desse modo, facultam a determinados agentes normativos determinar, de forma revestida de autoridade, se em uma ocasião particular ocorreu uma transgressão a uma norma primária. Quanto à absoluta falta de certeza, a estrutura social formada somente por normas primárias seria “carente” de procedimento para solucionar as dúvidas que surjam a respeito de quais são as normas aplicáveis em determinado tempo e lugar, assim como a respeito de alcance das normas de obrigação. A solução em relação a tais dúvidas exige a existência de uma regra que remeta a algum texto ou pessoa revestida de autoridade que resolva de forma definitiva a questão. Tal função é cumprida pela regra de reconhecimento, especificadora de determinado requisito de cujo preenchimento por certa norma decorre a indicação afirmativa de que se trata de uma norma componente do sistema jurídico.

Os três tipos de normas secundárias mantêm estreita vinculação: onde existem as normas de alteração de normas, a regra de reconhecimento necessariamente incorpora uma referência aos atos de introdução, modificação e eliminação de normas como característica identificatória das normas jurídicas do sistema, mesmo que não haja referência expressa de

todas as condições de tais atos de alteração de normas. Assim, se a estrutura social mostra-se simples no sentido de, por exemplo, incorporar a legislação como única fonte do direito, a regra de reconhecimento limitar-se-á a especificar a promulgação legislativa como único critério de validade (validade como pertinência de normas ao conjunto normativo). Por outro lado, se os tribunais estão facultados a emitir decisões revestidas de autoridade acerca da determinação de que uma norma foi violada, tais decisões também estarão revestidas de autoridade acerca de quais são as normas do sistema. Nesses moldes, a norma que confere poder jurisdicional é também uma norma secundária que identifica as normas primárias por meio das decisões dos tribunais, e tais decisões convertem-se em fonte do direito. Dessa forma, uma regra de reconhecimento restrita a esse conteúdo incorporaria um critério de validade limitado ao reconhecimento de normas que não podem ser formuladas em termos gerais (decisões dos tribunais) - ao contrário do critério especificador da promulgação legislativa como fonte -, e o uso de tais normas como guia para indicar as normas do sistema ficaria na dependência da inferência a ser feita a partir de decisões particulares, de modo que a certeza a respeito de quais são as normas do sistema reportar-se-ia, em última instância, à consistência das decisões dos juízes.

Juan Ruiz Manero182 delimita o conceito de normas secundárias asseverando que o âmbito de tais normas conforma não somente as disposições que conferem poderes, aquelas que guiam o exercício de tais poderes e as que estabelecem sanções (ou impõem consequências jurídicas em geral) para o caso de descumprimento das normas de dever ou de obrigação, mas também aquelas que estipulam o dever de cumprir as normas estabelecidas de acordo com uma determinada norma que confere poder para estabelecê-las. Assim, Ruiz Maneiro defende que (1) as normas que conferem poderes são funcionalmente menos básicas do que as normas que impõem deveres - no sentido de que as primeiras são funcionalmente operativas somente porque mantêm relações, de diversos tipos, com as segundas -; e (2) que nem todas as normas secundárias são normas que conferem poderes, uma vez que parte delas são normas que impõem deveres. Nessa ordem de ideias, determinados critérios devem ser levados em consideração no que tange à distinção entre normas primárias e secundárias: “as normas devem ser unidades relativamente manejáveis para diferentes fins”; “as normas jurídicas devem ter certa independência mútua, de modo que cada uma delas possa ser manejada para diferentes finalidades sem necessariamente recorrer a outras”; “as normas jurídicas devem apresentar uma relativa uniformidade de estrutura”; e “as normas jurídicas

devem refletir, em suas distintas variedades, os diferentes mecanismos por meio dos quais o direito opera na sociedade”. Tais critérios mostram-se importantes porque qualquer intento reducionista que os desconsidere acaba deformando as diferentes funções sociais que os distintos tipos de normas cumprem, obscurecendo as características distintivas do direito e das atividades possíveis dentro de sua estrutura.

A distinção hartiana entre normas primárias e secundárias serve à especificação do lugar da dogmática processual, no que tange à unidade da ordem jurídica a partir da dualidade de planos, justamente no ponto problemático atinente à relação entre regra de reconhecimento e normas de adjudicação (ou normas de aplicação judicial das normas primárias). Segundo Hart, a existência da regra de reconhecimento tem como condição necessária e suficiente o fato de que ela seja geralmente aceita pelos juízes como um critério comum e público de decisões judiciais corretas, de forma que os desvios a respeito de tal regra sejam apreciados de modo crítico, em geral, pelos tribunais, no sentido de desvios a respeito dos critérios vigentes. Para poder determinar se a regra de reconhecimento existe - e qual seu conteúdo - é preciso determinar, previamente, quais pessoas, ou grupo de pessoas, são os juízes ou tribunais do sistema jurídico em questão. Entretanto, os juízes são assim caracterizados em virtude das normas de adjudicação, porquanto, consoante a formulação hartiana, a existência de um tribunal implica a existência de normas secundárias que conferem poderes jurisdicionais a uma sucessão cambiante de indivíduos e, a partir dessa atribuição de poderes jurisdicionais, tais normas secundárias conferem autoridade às decisões emitidas por tais indivíduos (ou grupo de indivíduos). Nesses moldes, para determinar se uma norma de adjudicação (ou norma de aplicação judicial de normas primárias) - assim como qualquer outra norma - pertence ao sistema, mostra-se necessário acudir à regra de reconhecimento, mas só se pode determinar o conteúdo de tal regra observando quais os critérios de validade jurídica que são aceitos como tais pelos juízes ou tribunais, ou seja, pelas pessoas (ou grupo de pessoas) para quem as normas de aplicação judicial de normas conferem poderes jurisdicionais, com o que se coloca o ponto problemático atinente à circularidade.183

No tema, de ressaltar, ainda, que Hart distingue dois tipos de enunciados acerca do caráter jurídico de uma conduta: a) enunciados internos ou normativos, a partir dos quais uma norma é usada para valorar (exigir, criticar ou aprovar) o comportamento de um indivíduo

183 As normas que identificam as pessoas com poderes jurisdicionais (quem “adjudica” normas jurídicas) e

definem os procedimentos que devem ser observados no processo adjudicatório são, segundo Hart, normas de adjudicação (tipo de normas secundárias). Como tais normas definem os procedimentos que os juízes devem seguir, tais normas impõem deveres a estas autoridades, motivo pelo qual as normas secundárias não podem ser vistas como sendo aquelas que apenas conferem poderes jurisdicionais. HART, 1963.

segundo este adote, ou não adote, a conduta devida. Tais enunciados pressupõem o enunciado fático externo de que o sistema em geral (e não determinada norma em particular) é eficaz; além disso, os enunciados internos não são verdadeiros nem falsos, pois são normativos (e não descritivos); b) enunciados externos ou descritivos, a partir dos quais se faz referência a uma norma para afirmar que, de acordo com ela, determinada conduta é obrigatória, permitida ou proibida (caso se trate de norma primária) ou para afirmar que certa conduta ajusta-se, ou não se ajusta, aos requisitos por ela estabelecidos para lograr objetivos juridicamente definidos. O significado dos enunciados externos corresponde à existência de uma norma - ou da pertinência da norma em um sistema jurídico existente -, e são verdadeiros quando informam adequadamente o conteúdo das normas, e falsos em caso contrário, podendo haver casos em que não se possa predicar nem verdade nem falsidade a determinados enunciados externos nas hipóteses em que conteúdo das normas for indeterminado.

Importa destacar que, além da circunstância de que a distinção entre regra de reconhecimento, normas de adjudicação e normas de alteração de normas consubstancia uma distinção entre modalidades normativas (e não meramente entre funções normativas), tal distinção entre as modalidades de normas destacadas pela teoria jurídica hartiana resulta como a opção teoricamente preferível às demais concepções do direito, porque, além de apresentar a reconstrução mais adequada da complexidade do fenômeno jurídico, serve como premissa à especificação da função da dogmática processual no que tange à reconstrução da unidade da ordem jurídica a partir da dualidade de planos (material e processual). Entretanto, o delineamento da regra de reconhecimento deve ser feito de molde a infirmar a circularidade anteriormente apontada, com base naquilo que pode ser compreendido como práticas de identificação do direito.

5.2 REGRA DE RECONHECIMENTO

Do exposto, conclui-se que, para a teoria jurídica hartiana, um sistema jurídico consiste em uma regra de reconhecimento mais todas as normas identificadas a partir dos critérios fornecidos por esta regra que, assim, constitui a base que permite predicar unidade ao conjunto normativo - à luz dos critérios de pertinência das normas ao conjunto normativo. Assim, asseverar a validade de determinada norma significa reconhecer que ela satisfaz os requisitos estabelecidos pela regra de reconhecimento; ou seja, para que se possa saber se uma