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2 OS MODELOS JURÍDICOS E SUAS MODALIDADES

2.2 MODELOS DOGMÁTICOS E SUAS FUNÇÕES

Robert Alexy especifica três dimensões da dogmática jurídica: analítica, empírica e normativa.83 A dimensão analítica diz respeito à sistematização conceitual do direito válido, incluindo a análise dos conceitos fundamentais, a investigação da estrutura do sistema jurídico e a fundamentação dos modelos de decisão jurídica. A dimensão empírica, por seu turno, pode ser compreendida em dois sentidos: ora em relação ao conhecimento do direito positivamente válido84, ora em relação à utilização de premissas empíricas no âmbito do raciocínio jurídico em geral e do raciocínio judicial em particular (incluindo os argumentos consequencialistas). Por fim, a dimensão normativa diz respeito à orientação da prática jurídica: trata-se do intento de fornecer respostas racionalmente fundamentadas a questões axiológicas pendentes de solução no material autoritativamente dado e empiricamente constatável. A dimensão normativa associa-se ao desempenho da tarefa prática da dogmática. Tal dimensão, todavia, exige uma especificação cuidadosa acerca das condições em que se pode predicar “normatividade” aos enunciados da dogmática (que são enunciados sobre normas). As

82 NEVES, 1994, p. 277. Segundo o autor português, o pensamento dogmático opera não apenas em termos

dogmaticamente complementares, mas também em termos heurístico-normativamente antecipantes à realização jurisdicional do direito. A construção do sistema jurídico, assim, depende, também, do pensamento dogmático que, apoiado nessa reconstrução sistemática do direito, fornece os critérios de mensuração de plausibilidade (em termos sistemáticos) da realização jurisdicional do direito, nos moldes de um “controle dogmático de concordância” (que o pensamento dogmático desempenha relativamente à função jurisdicional). A face complementar ou de continuação da normatividade jurisdicional e a face antecipante ou autônoma perante a realização jurisdicional do direito encontram-se num continuum dogmático; a articulação destas duas faces conforma o sentido integral da dogmática jurídica.

83

ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. p. 29.

84 Assinala Alexy que a eficácia do direito como conjunto normativo (e não das normas vistas individualmente),

na medida em que consubstancia condição de validade do direito legislado e judicial, é objeto da dimensão empírica da dogmática. A respeito, Pablo Navarro destaca que estabelecer se um determinado conjunto normativo é eficaz em um tempo T requer uma investigação empírica acerca do comportamento dos indivíduos do grupo social no tempo T; entretanto, determinar as condições de verdade dos enunciados que predicam eficácia de um conjunto normativo é uma tarefa conceitual. NAVARRO, Pablo. Validez y eficacia de las normas jurídicas. In: VALDÉS, Ernesto Garzón; LAPORTA, Francisco (Org.). El derecho y la justicia. Madrid: Trotta, 2000. p. 210.

dimensões da dogmática jurídica, delineadas por Alexy, são vistas, no presente contexto, em termos de modelos (e suas respectivas funções).

Nessa senda, Tercio Sampaio Sampaio Ferraz, de seu turno, distingue, a partir da decidibilidade como problema básico da dogmática, três modelos dogmáticos: analítico, hermenêutico e empírico.85 O modelo analítico toma a decidibilidade como necessidade de determinação das condições de adequação das relações entre hipóteses de conflito e hipóteses de decisão, a partir de proposições capazes de operacionalização ou compatibilização entre tais relações. O modelo analítico, assim, corresponde à sistematização de normas para a obtenção de decisões possíveis. Este modelo executa sua função heurística privilegiando a função organizatória (sistematização e classificação). Tal modelo presta-se à sistematização no sentido de oferecimento de critérios para a estandardização e classificação de casos jurídicos hipotéticos (e/ou de suas propriedades relevantes). Desse modo, o modelo dogmático serve para garantir a capacidade de decisão para cada caso jurídico (e não para a produção de um efeito concreto na realidade externa ao sistema jurídico).86 Isso decorre da circunstância de que o modelo analítico toma o sistema como ponto de partida, em direção à realidade externa a ele; como vetor explícito para fins de unificação de critérios (universalizáveis) de decidibilidade e, de conseguinte, para a reconstrução do sistema jurídico como unidade, no intuito de proporcionar uma congruência dinâmica entre os mecanismos de controle.

O modelo hermenêutico, por seu turno, toma a decidibilidade do ângulo de sua relevância significativa, como relação entre hipótese de conflito e hipótese de decisão, tendo em vista o seu sentido. Este modelo, assim, confere o suporte à atividade dogmático- interpretativa, construindo-se, conforme Sampaio Ferraz, como um modelo teórico compreensivo do comportamento humano (abstração de conflitos, definidos em termos juridicamente interpretáveis e decidíveis). Este modelo executa sua função heurística privilegiando a função avaliativo-semântica. O modelo hermenêutico perspectiva a decidibilidade - como criação das condições de possibilidade decisória - a partir da necessidade de existência de uma interpretação (sentido) preponderante, que ponha um fim prático à cadeia das múltiplas possibilidades interpretativas. Significa dizer: o modelo intenta oferecer critérios objetivos de correção às decisões interpretativas, intento este que, evidentemente, não tem a pretensão de oferecer critérios para toda e qualquer escolha decisória dentre as múltiplas possibilidades interpretativas exsurgentes de determinadas textos

85

FERRAZ JUNIOR, 1980, p. 120.

normativos. O modelo hermenêutico confronta-se com a necessidade de internalização do problema das consequências externas ao sistema jurídico, colocando-as em termos de efeitos jurídicos das decisões juridicamente fixadas, como modo de reconstruir o vetor que parte das consequências para o sistema quando a decidibilidade é vista a partir do ângulo de sua relevância significativo-teleológica. Conforme Sampaio Ferraz, a função do modelo dogmático, assim, reside no relacionamento de relações de aplicação do direito, isto é, na construção das condições do juridicamente possível, correspondente à construção de casos jurídicos hipotéticos.87

O modelo empírico, por fim, toma a decidibilidade - “transmutação de incompatibilidades indecidíveis em alternativas decidíveis” - como uma questão de condições empíricas de possibilidade de uma decisão hipotética para um conflito hipotético, condições estas buscadas na estrutura da situação, que o modelo intenta generalizar. O modelo empírico, então, confere suporte ao procedimento de decisão jurídica, constituindo-se como modelo explicativo da conduta enquanto controlada por normas. Este modelo executa a função heurística privilegiando a função pragmática de previsão. As construções dogmáticas das correlações entre casos genéricos e soluções normativas permitem a sistematização dos conflitos segundo critérios de relevância jurídica. Tais construções fornecem os elementos para a qualificação jurídica dos fatos submetidos à apreciação decisória e, por conseguinte, fornecem os elementos capazes de dar consistência jurídica à prova dos fatos. O modelo empírico, no intuito de possibilitar a decisão, serve de parâmetro para traduzir a vinculação do decididor à ordem jurídica especialmente no tocante à qualificação jurídica de fatos, à luz de critérios de relevância destes fatos.88 Tal modelo, colocando-se de forma intermediária entre as premissas e as consequências, também serve de veículo capaz de proporcionar uma congruência estável entre os mecanismos jurídicos de controle social, limitando-os às possibilidades de variação na relação de aplicação cujos polos (normas e casos) são contingentes (diversas possibilidades de construção de casos e diversas possibilidades de positivação e de significação das normas). Assim, quando ambos os polos (normas e casos) da relação de aplicação do direito revelam-se contingentes, a própria relação de aplicação torna- se contingente (diversas possibilidades de aplicação das normas jurídicas): a dogmática adquire função social como instrumento estabilizador desta dupla contingência, em termos de delineamento de critérios de relacionamento entre os polos (normas e casos) da relação de

87

FERRAZ JUNIOR, 1980, p. 158.

aplicação do direito89, como controle da variabilidade das possibilidades jurídico-aplicativas. Dentro desse contexto, pode-se dizer que a dogmática ostenta um caráter que Sampaio Ferraz chama de “criptonormativo”: com efeito, “la sistematización de un cierto material normativo es una tarea central, pero que no constituye un fin em si mesma, sino un medio para realizar lo que constituye su función social más relevante: suministrar criterios para la aplicación, interpretación y modificación del derecho”.90