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A terceira pauta do modelo destaca a importância dos princípios.

OS PRINCÍPIOS E A INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

71. A terceira pauta do modelo destaca a importância dos princípios.

E que cada direito não é mero agregado de normas, porém um conjunto dotado de unidade e coerência — unidade e coe- rência que repousam precisamente sobre os seus (dele = de um determinado direito) princípios. Daí a ênfase que imprimi à afir- mação de que são normas jurídicas os princípios, elementos in- ternos ao sistema; isto é, estão nele integrados e inseridos.

Por isso a interpretação da Constituição é dominada pela for- ça dos princípios.

Complexidade e gravidade da interpretação constitucional, no entanto, maiores se tornam em razão da circunstância de, além de os princípios serem tomados como critério dominante para ela — a interpretação —, comporem-se também como objeto da interpretação.

72. Além disso, desejo também lembrar que o direito, como observou von Ihering,17 existe em função da sociedade e não a

sociedade em função dele. Ademais, como tenho reiteradamente afirmado,18 e penso ter demonstrado, especialmente nos dois

primeiros capítulos deste ensaio, é, o direito, um nível da reali- dade social.

Mais não é preciso considerar para que se comprove a insufi- ciência da ideologia estática da interpretação jurídica19 e do pen-

samento voltado à "vontade do legislador". A realidade social é o presente; o presente é vida — e vida é movimento.

Nem a "vontade do legislador", nem o "espírito da lei" vin- culam o intérprete.

A aplicação do direito — e este ato supõe interpretação — não é mera dedução dele, mas, sim, processo de contínua adap- tação de suas normas à realidade e seus conflitos. Da mesma for- ma, a ordem jurídica, no seu evolver em coerência com as neces- sidades reais, embora haja de respeitar a Constituição, não se re- sume a uma mera dedução dela.

A Constituição é um dinamismo.

É do presente, na vida real, que se tomam as forças que con- ferem vida ao direito — e à Constituição. Assim, o significado válido dos princípios é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente.

72a. Como a interpretação/aplicação se dá no quadro de uma situação determinada, expõe o enunciado semântico do texto no contexto histórico presente, não no contexto da redação do texto. Assim se opera também, em linhas gerais, a interpretação da Cons- tituição. Compreendemos necessariamente, ao interpretá-la, além

17. Ob. cit., p. 424.

18. Veja-se o primeiro capítulo deste livro e meu O direito posto e o direito

pressuposto.

O S P R I N C Í P I O S E A I N T E R P R E T A Ç Ã O D A C O N S T I T U I Ç Ã O 167

dos seus textos, a realidade. A interpretação da Constituição não é exclusivamente do texto da Constituição formal.

Se por um momento suspendermos a concepção de Consti- tuição em sentido for mal, substituindo-a por outra, realista, ela será entendida como manifestação de uma estrutura político-social concreta; escapará então ao plano do dever-ser, de sorte a passar a expressar o ser político do Estado; nesse sentido ela é a constitui- ção política do Estado. A constituição de cada povo depende da natureza e da consciência desse povo, no qual — diz Hegel no § 274 do Princípios da filosofia do direito20 -— reside a liberdade subje-

tiva do Estado, e, portanto, a realidade da constituição.

A oposição entre o dever-ser constitucional [= concepção for- mal] e o ser constitucional [= concepção material] dá lugar à ins- talada entre a Constituição formal e a Constituição material. Ferdinand Lassalle21 diz que a Constituição é a expressão escrita da soma

dos fatores reais do poder que regem uma nação; incorporados a um papel, já não são simples fatores reais do poder, mas fatores jurídicos; são instituição jurídica. A Constituição escrita será boa e

duradoura enquanto corresponder à constituição material e encon- trar suas raízes rios fatores reais do poder hegemônicos no país; onde a Constituição escrita já não corresponder à Constituição material instalar-se-á um conflito, no qual a primeira sucumbirá.22 Lem-

bre-se o que Marx ensina no conhecido trecho do "Prólogo" da Contribuição à crítica da economia política:23

"Em um determinado estado do seu desenvolvimento, as forças materiais produtivas da sociedade entram em contradição com as rela- 20. Príncipes de la philosophie du droit, trad. Jean-François Kervégan, PUF, Paris, 2003, p. 371.

21. A essência da Constituição, tradução original de Walter Stõnner, Editora Liber Júris, Rio de Janeiro, 1985, p. 19; a conferência Über die Verfassung foi também editada, em tradução de Walter Stõnner, pela Kairós Livraria Editora (2a ed., 1985), sob o título Que é uma Constituição; a tradução, na edição de que me utilizo, é mais aprimorada.

22. Lassalle, ob.cit., p. 41.

23. Confrontei, para a tradução ao português, as seguintes edições: Zur Kritik

der Politischen Okonomie, Erstes Heft, Berlin, Dietz Verlag, 1987, pp. 12-13; A con-

tribution to the critique of political economy, 5a ed., trad. de S. W. Ryazanskaya, Moscou, Progress Publishers; Contribution à la critique de Véconomie politique, Paris, 1977, pp. 2-3; e Contribución a la crítica de la economia política, 2a ed., trad. de Léon Mames, México, Siglo Veintiuno, 1986, esta última veiculando injustificável erro do tradutor.

ções de produção existentes ou — o que não constitui senão uma ex- pressão jurídica delas — com as relações de propriedade no seio das quais vinham se movendo até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram, essas relações se tornam entraves de- las. Inicia-se então uma época de revolução social. A transformação da base econômica altera mais ou menos rapidamente toda a enorme super- estrutura".24

Cada povo, ensina ainda Hegel, no mesmo § 274 Princípios da filosofia do direito, tem a constituição que lhe convém e lhe seja

adequada.

A distinção entre Constituição escrita e Constituição material não é assumida pelo pensamento liberal, dado que a passagem de um para o outro plano importaria insuportável invasão da esfera de liberdade dos indivíduos — a Constituição serve para impedir que a liberdade individual seja violada: não pode, ela mesma, comprometê-la. Essa a razão pela qual a distinção foi relegada a segundo plano. A Constituição consubstanciando o mais conspí- cuo testemunho do liberalismo e do pensamento liberal, não há de exceder o plano do dever-ser. O pensamento liberal, predomi- nante na instância da Dogmática Jurídica, conhece apenas a positividade da Constituição formal, colocando-se inteiramente à margem, de modo a ignorá-la, da constituição material.

O que ora desejo observar é a circunstância de a Constituição — como o direito, no seu todo — demandar permanente atuali- zação, sem a qual não obterá efetividade. O discurso do texto normativo está parcialmente aberto à inovação, mesmo porque o que lhe confere contemporaneidade é a sua transformação em discurso normativo, isto é, em norma (transformação do texto em norma). Daí que ela há de ser atualizada pelos chamados intérpre- tes autênticos, os juizes, para que se apresente dotada de força normativa.

Por isso a interpretação não é apenas do texto da constituição formal, mas também da constituição real, hegelianamente conside-

rada. O intérprete da Constituição não se limita a compreender textos que participam do mundo do dever-ser; há de interpretar também a realidade, os movimentos dos fatores reais do poder, com- preender o momento histórico no qual as normas da Constitui-

ção são produzidas, vale dizer, momento da passagem da dimen- são textual para a dimensão normativa.

O fato é que, como observou percuciente e incisivamente o general Charles de Gaulle,25 a Constituição é um envelope. O que

está contido dentro dele surge no e do dinamismo da vida políti- co-social. O intérprete há de ser capaz de apreender esse dina- mismo. E de modo tal que, ainda que não tenha consciência dis- so, o movimento das coisas o conduzirá a essa apreensão.

O intérprete da Constituição não se movimenta no mundo das abstrações, freqüentando intimamente a constituição do povo ao qual ela corresponde.26 A práxis da interpretação constitucio-

nal, praticada pelo Poder Judiciário, ocorre no plano da realidade político-social, no qual a separação entre a dimensão textual e a dimensão normativa da Constituição desafia a generalidade das ex- posições hermenêutico-jurídicas ancoradas na teoria da sub- sunção. Ainda que afirmá-lo desafie a doutrina e escandalize nos- sos constitucionalistas mais bem-comportados, o fato é que a Cons- tituição formal está sendo, enquanto norma, cotidianamente reelaborada, re-produzida. Adquire força normativa apenas na medida em que isso se dê.

Dizendo-o de outro modo: o texto constitucional regula uma or-

dem histórica concreta e a definição da Constituição só pode ser obtida a partir de sua inserção na realidade histórica.27 A Constituição é a

ordem jurídica fundamental de uma sociedade em um determinado momen- to histórico e, como ela é um dinamismo, é contemporânea à realidade. Assim, porque quem escreveu o texto da Constituição não é o mesmo que o interpreta/aplica, que o concretiza,28 em verdade não existe a Constituição, do Brasil, de 1988. O que realmente hoje existe, aqui e agora, é a Constituição do Brasil, tal como hoje, aqui e agora, está sendo

in terpretada/aplicada.

25. Discours et messages - Pour Veffort (Aout 1962 - Décembre 1965), Plon. Paris, 1970, p. 453.

26. Ainda que o faça sem plena consciência disso.

27. V. Gilberto Bercovici, "A problemática da constituição dirigente: algu- mas considerações sobre o caso brasileiro", in Revista de Informação Legislativa, ano 36, n. 142, abril/junho 1999.

28. Vide meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, cit., item 37; quem interpreta/aplica não é o mesmo sujeito que escreveu o texto.

73. Por fim, uma observação sobre a ideologia constitucional. O direito — e, muito especialmente, a Constituição — é não apenas ideologia, mas também nível no qual se opera a cristali- zação de mensagens ideológicas.29 Por isso as soluções de que

cogitamos somente poderão ser tidas como corretas quando e se adequadas e coerentes com a ideologia constitucionalmente ado- tada.

A alusão a uma ideologia adotada na ordem jurídica é encontra- da no conceito de Direito Econômico formulado por Washington Peluso Albino de Souza.30 Cuida-se, então, de ideologia que se

expressa nos "princípios adotados na ordem jurídica, significando que esta é a que se comprometerá com o aspecto político, quando tomada enquanto Direito Positivo".31

Ideologia, aí, tem o sentido de "conjunto harmônico de princípios que vão inspirar a própria organização da vida social, segundo o regi- me que irá regê-la" (Washington Peluso Albino de Souza, Direito Eco-

nômico, cit., p. 32). O direito positivo está condicionado à ideologia cons-

titucionalmente adotada, que, em se tratando de Direito Econômico, Washington refere nos "princípios fundamentais e norteadores da vida econômica, que nas Constituições modernas já vêm tratadas em Título ou Capítulo especial, geralmente designados por Da Ordem Econômica e chamados, por muitos, de Constituição Econômica" (ob. cit., p. 33). A constante preocupação do Professor Washington Peluso Albino de Sou- za com o tema está presente desde o seu Do econômico nas Constituições

vigentes, 2 vs., edição da Revista Brasileira de Estudos Políticos, Minas Gerais, 1961, até trabalhos mais recentes, entre os quais "O discurso 'intervencionista' nas Constituições brasileiras", in Caderno de Direito

Econômico 1, Resenha Tributária, São Paulo, 1983, pp. 139 e ss.; "Poder Constituinte e Ordem Jurídico-Econômico", in Revista da Faculdade de

Direito da UFMG, v. 30, ns. 28-29, Belo Horizonte, 1985-1986, pp. 51 e ss.; e "A experiência brasileira de Constituição Econômica", in Revista

de Informação Legislativa 102, abril/junho de 1989, Senado Federal, Brasília, pp. 26 e ss.

Esta ideologia, perfeitamente determinável e definível no bojo do discurso constitucional, vincula o intérprete, de sorte, preci-

29. V. meu O direito posto e o direito pressuposto.

30. Washington Peluso Albino de Souza, Direito Econômico, cit., p. 3. 31. Washington Peluso Albino de Souza, ob. cit., p. 33.

samente, a repudiar a postura, aludida por Canotilho,32 assumi-

da por quantos optam por concepções ideológicas dela diferen- tes, e a ensejar o exercício, pelo mesmo Canotilho referido, de um prudente positivismo, indispensável à manutenção da obrigato- riedade normativa do texto constitucional.

Quanto ao tema da interpretação e regime político, remeto o leitor ao exposto no item 74 do meu Ensaio e discurso sobre a inter- pretação/aplicação do direito.

INTERPRETAÇÃO E CRÍTICA DA ORDEM

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