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Sem a calculabilidade e a previsibilidade instaladas pelo direito moderno o mercado não poderia existir.

São clássicas as considerações de Weber: as exigências de calculabilidade e confiança no funcionamento da ordem jurídica e na administração constituem uma exigência vital do capitalismo racional;31 o capitalismo industrial depende da possibilidade de

previsões seguras - deve poder contar com estabilidade, segu- rança e objetividade no funcionamento da ordem jurídica e no caráter racional e, em princípio, previsível das leis e da adminis- tração.32

Ferdinand Lassalle33 observa que, ao final do absolutismo, a

pequena burguesia passa a almejar, "em benefício do seu comér- cio e de suas incipientes indústrias, a ordem e a tranqüilidade

30. Aí o "duplo movimento" a que refere Polanyi, ob. cit., pp. 163-164. 31. Economia y sociedad, vol. II, p. 238.

32. Ob. cit., vol. II, p. 834.

33. A essência da Constituição, pp. 34-35. A conferência Über die Verfassung foi também editada, em tradução de Walter Stõnner, pela Kairós Livraria Edito- ra, 2- ed., 1985, sob o título Que é uma Constituição; a tradução, na edição de que me utilizo, é mais aprimorada.

pública e ao mesmo tempo a organização de uma justiça correta dentro do país, auxiliando o príncipe, para consegui-lo, com ho- mens e com dinheiro". Lembre-se, a propósito, o que anotei no item 2, acima, ao expor o surgimento do Estado moderno: a mo- nopolização, pelo rei, do poder militar e do poder de tributar.

A ordem pública é constituída pelas normas jurídicas que constituem o núcleo mais expressivo daquilo de Nicos Poulant- xas1'1 chama de "le besoin de calcul de prévision": os agentes econô-

micos, no interior de um mercado extremamente complexo, no qual o ganho voltado à acumulação de capital joga um papel pre- ponderante, necessitam de uma justiça e de uma administração cujo funcionamento possa ser, em princípio, calculado racional- mente.

A totalidade estrutural que constitui a ordem pública - va- lho me ainda da concepção de Poulantzas35 - apresenta como

caracteres particulares a constância e a estabilidade, sem as quais seria impossível esse cálculo. Essa possibilidade corresponde a uma exigência inafastável do mercado. Nesse quadro, a ordem pública, para além da racionalidade da generalidade da lei, ga- rante a execução dos contratos, pois saber com certo grau de cer- teza que os contratos serão respeitados, isso é indispensável ao sucesso empresarial.36

Dissera-o já, em outras palavras, Hermann Heller:37 "Com o

desenvolvimento da divisão do trabalho e das trocas, impõe-se a segurança das trocas que no seu todo se identifica com aquilo que o jurista costuma chamar certeza do direito. A segurança das trocas ou certeza do direito tornaram-se possíveis em decorrên- cia de uma notável calculabilidade e previsibilidade das relações sociais, que se tornam realizáveis somente se as relações sociais, e sobretudo as econômicas, forem reguladas de modo crescente por um único ordenamento, ou seja, emanado de um único ponto eqüi- distante. O resultado final, ainda que não definitivo, desse pro- cesso de racionalização social é o moderno Estado de direito, nas-

34. Nature des choses et droit, p. 326. 35. Ob. cit., pp. 323 e ss.

36. Vide Franz Neumann, Estado democrático e Estado autoritário, pp. 49 e ss. 37. "Stato di diritto o dittatura?", L'Europa e il fascismo, p. 208.

cido substancialmente de uma legislação sempre mais ampla, com a conseqüente consciente imposição de regras de comportamen- to social que excluem a autotutela em um âmbito sempre mais vasto de pessoas e coisas, em opção por uma normatividade e execução centralizadas".

Lembro, neste ponto, a observação de Norbert Elias:38 "A cris-

talização de normas legais gerais por escrito, que é parte integral das relações de propriedade na sociedade industrial, pressupõe um grau muito alto de integração social e a formação de institui- ções centrais capazes de dar à mesma lei validade universal em toda a área que controlam, e suficientemente fortes para exigir o cumprimento de acordos escritos. O poder que confere força aos títulos legais e direitos de propriedade não é mais diretamente visível nos tempos modernos. Em proporção ao indivíduo, ele é tão grande, sua existência e a ameaça que dele emana são tão axiomáticas que raramente é submetido a teste. E esse o motivo por que há uma tendência tão forte a considerar a lei como algo que dispensa explicação, como se tivesse sido baixada pelos céus, um 'Direito' absoluto que existiria mesmo sem o apoio dessa es- trutura de poder ou se a estrutura de poder fosse diferente".

O cumprimento dos contratos não podia ser assegurado sob a eqüidade, que, como anotou Franz Neumann39 ao tratar da teo-

ria jurídica liberal [liberal legal theory], era sempre denunciada como incompatível com a calculabilidade, o primeiro requisito do di- reito liberal [= direito moderno]. Era necessário transformar-se a eqüidade em um sistema rígido de normas, a fim de que fosse assegurada a calculabilidade exigida pelas transações econômi- cas. Como o mercado reclamava a produção de normas jurídicas, pelo Estado, que garantissem a calculabilidade e confiança nas relações econômicas, essa necessidade justificou, ainda segundo Neumann,40 a limitação de poder da monarquia patrimonial e do

feudalismo. Essa limitação culminou na instituição do poder legislativo dos parlamentos; a tarefa primordial do Estado é a cria- ção de uma ordem jurídica que torne possível o cumprimento das obrigações contratuais e calculável a expectativa de que es-

38. Ob. cit., p. 62.

39. Estado democrático e Estado autoritário, cit., p. 190. 40. Ob. cit., p. 186.

sas obrigações serão cumpridas. A eqüidade comprometia essa calculabilidade e a segurança jurídica. Daí o direito posto pelo

I istado, que a rejeita e substitui.

O próprio Neumann41 observa, contudo, que essa rejeição somente poderia ser absoluta no quadro de um sistema econômico competitivo. Por isso o ponto de vista da eqüidade é retomado na medida em que cresce a concentração do poder econômico e o Estado passa a desen- volver atividades "intervencionistas".42 Daí, inicialmente, a regra da

razoabilidade, que surge no bojo da legislação antitruste.

O fato é que, como anota Avelãs Nunes,43 a intervenção do

Estado na vida econômica é um redutor de riscos tanto para os indivíduos quanto para as empresas, identificando-se, em termos econômicos, com um princípio de segurança: "a intervenção do Es- tado não poderá entender-se, com efeito, como uma limitação ou um desvio imposto aos próprios objectivos das empresas (parti- cularmente das grandes empresas), mas antes como uma dimi- nuição de riscos e uma garantia de segurança maior na prossecu- ção dos fins últimos da acumulação capitalista".

9. O mercado - insisto neste ponto - é uma instituição jurídi-

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