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Ainda que se oponha à ordem jurídica a ordem econômica} a última expressão é usada para referir uma parcela da ordem ju-

ORDEM ECONÔMICA

16. Ainda que se oponha à ordem jurídica a ordem econômica} a última expressão é usada para referir uma parcela da ordem ju-

rídica. Esta, então — tomada como sistema de princípios e regras jurídicas — compreenderia uma ordem pública, uma ordem priva- da, uma ordem econômica, uma ordem social.

A ambigüidade de todas essas expressões é de tal ordem — e uso aqui, propositadamente, o vocábulo "ordem" — que a opera- cionalização dos conceitos que designam é sempre tormentosa.

A expressão ordem pública, não obstante, ganha sentido bem de- finido ao referir o conjunto de normas cogentes, imperativas, que prevalece sobre o universo das normas dispositivas, de direito priva- do (René Savatier, La théorie des obligations, 3- ed., Dalloz, Paris, 1974, pp. 165 e ss.). Daí outra expressão, lei de ordem pública, isto é, norma jurídica que impacta sobre o universo das relações jurídicas priva- das, de modo impositivo. A noção de ordem pública, assim firmada, é, nitidamente, expressão da ideologia liberal. Em torno dela (da noção de ordem pública), uma das questões mais ácidas que o estudioso do 1. Max Weber (Economia y Sociedad, v. I, cit., pp. 251 e ss.) refere a ordem jurídica como esfera ideal do dever ser e a ordem econômica como esfera dos acontecimentos reais.

direito tem a enfrentar. É que a distinção entre normas de ordem pú- blica e normas que instrumentam o que denomino intervenção por di-

reção (v. item 64) se impõe por inúmeras razões, bastando contudo, para assinalar a sua relevância, observarmos que, segundo o enten- dimento praticamente unânime da doutrina e da jurisprudência, as normas de ordem pública aplicam-se de imediato às situações às quais se voltam, apenas não impactando sobre facta praeterita, mas atingin- do, além d e f a c t a futura, facta pendentia; já quanto às normas de inter- venção por direção, não abrangeriam facta pendentia. E certo ser im- possível, como afirma Vicente Ráo (O direito e a vida dos direitos, v. I, reedição, Max Limonad, São Paulo, 1960, p. 237), indicarmos a priori, por via de definição ou conceito geral, todas as normas de ordem pública. Ademais, a doutrina tem incidido no equívoco de superpor, de um lado, ordem pública e Direito Público e, de outro, ordem pri- vada e Direito Privado. A propósito, lê-se em Gabba (Teoria delia re-

troattivitá delle leggi, v. 1, 3a ed., Unione Tipográfico-Editrice, Milão, 1891, p. 152): "Chi puó invero tracciare un confine fra l'ordine privato e 1'ordine pubblico, fra il bene privato e 1'interesse delia societá?" Ora, ainda que no último termo da sentença como que invertendo os critérios do Digesto 1.1 — publicum jus est quod aã statum rei publicae

spectat; privatum, quod ad singulorum utilitatem — o que subjaz nas afirmações da impossibilidade de se distinguir ordem pública do seu oposto — a ordem privada — não é senão conseqüência daquela equi- vocada superposição (v. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação

do direito, 6â ed., Livraria Freitas Bastos, Rio, 1957, p. 270). Nisso, o que no fundo se tem sustentado não é simplesmente a aplicação ime- diata das disposições de ordem pública, mas sim da generalidade das nor-

mas de Direito Públicol Ocorre, todavia, que nem se superpõem ordem pública e Direito Público — basta que se mencione, para cabalmente demonstrá-lo, o direito premiai (legislação de incentivos tributários e financeiros, v.g., no quadro das normas de intervenção por indução), integrado no bojo do Direito Público — nem o confronto se esgota na oposição entre dois termos (ordem pública e ordem privada). Consi- dere-se a exposição de Gerard Farjat (Droit Economique, 2a ed., PUF, Paris, 1982, pp. 49-50): ordem pública econômica é o conjunto das medi- das, empreendidas pelo poder público, tendentes a organizar as rela- ções econômicas; opõem-se à ordem pública econômica tanto a ordem

privada econômica quanto a ordem mista, que constitui a economia con- certada — esta última compreende, além de medidas "incitativas", medidas autoritárias; a ordem pública retira sua força da noção téc- nica do Direito Civil, inserida no art. 6a do Código Civil francês; res- peita ao conjunto das medidas autoritárias (cogentes) tomadas pelos poderes públicos e concernentes à atividade econômica; o conteiído da noção (isto é, da noção de ordem pública) marca-se na circunstânci.i

de expressar legislações de exceções, exteriores ao Direito Civil clás- sico; o conteúdo da ordem pública econômica se opõe, traço por traço, à

ordem pública clássica; esta última é uma ordem de exceção (a liberdade contratual é a regra); a ordem pública clássica é definível pelo seu con- teúdo: é constituída pelo conjunto dos princípios fundamentais so- bre os quais repousa a sociedade; ela — a ordem pública clássica — é puramente proibitiva ou negativa; já a ordem pública econômica não é mais uma noção de exceção, porém um "instrumento técnico de uma legislação diversificada concorrente com o Direito Civil clássico"; cui- da-se de uma noção funcional; a natureza do comando é que se trans- formou: à interdição (proibição, negação), sucedeu uma grande di- versidade de técnicas de intervenção. Farjat distingue, com nitidez, as imagens de ordem pública clássica e do que denomina ordem pública

econômica. Assim, ao contrário do que tantas vezes tem ocorrido, não se perde na equivocidade da própria imagem intencionada (de inten-

ção, e não intensão) por quem pronuncia a expressão "ordem econô- mica", cuja vagueza, enquanto termo do conceito de ordem pública, é evidente (v. meu O direito posto e o direito pressuposto, cit., Ia ed., pp. 144 e ss., 7â ed., pp. 195 e ss.). A exposição que desenvolve resulta no entanto obnubilada, mercê da insistência no emprego da expressão ordem

pública (ordem pública clássica e ordem pública econômica, além de ordem

pública mista). Aí, mais uma vez, a linguagem arma ciladas nas quais nós, os estudiosos do direito, nos enredamos. Embora estejamos dian- te de objetos distintos, diversos entre si — e Farjat o demonstra — por que permanecemos a referi-los, ambos, por uma mesma expressão, ainda que diversamente qualificada? Recorro, aqui, ao que observa Genaro Carrió (Notas sobre Derecho y lenguaje, 3- ed., Abeledo-Perrot, Buenos Aires, 1986, pp. 35-36): imaginemos que alguém me pergunta se há um gato na casa ao lado; abro a porta e vejo um animal cuja aparência reúne todas as características que normalmente exibem os gatos; respondo, portanto, que sim; meu interlocutor, no entanto, in- siste, perguntando-me se estou seguro do que afirmo; torno a abrir a porta e examino o animal mais de perto; neste momento o gato me encara e, em um impecável português, exclama: "não me amole!" (ou algo semelhante); e, ato contínuo, começa a crescer de modo a, em um instante, alcançar a altura de dois metros, para em seguida reas- sumir seu tamanho e comportamento habituais; a pergunta que cabe é a seguinte: posso continuar chamando a este curioso espécime de gato? Em outros termos: posso continuar (pode Farjat fazê-lo?) chamando o espécime em questão de "ordem pública", ainda que a qualifique como "econômica"? Embora possa responder afirmativamente a essa questão, enfatizando a ressalva de que sempre especificarei o tipo de "gato" a que me refiro — e o adjetivo "econômico" estará se prestando a tal —, tudo indica que, no caso, o compromisso com a clareza, a que

deveríamos estar jungidos, recomenda uma substituição de expres- sões. Daí porque não me refiro a "gato" — ou "gato + adjetivo A" e a "gato + adjetivo B" — mas sim a ordem pública e a intervenção por

direção (se pretendesse aludir a "ordem mista", usaria, conjuntamente, as expressões intervenção por direção e intervenção por indução). O que se tem como certo, de toda sorte — ainda que seja impossível indicar

a priori, por via de definição ou conceito geral, como anota Vicente Ráo, todas as normas de ordem pública —, é o fato de que traços bem definidos apartam as disposições de ordem pública das normas de in- tervenção por direção, permitindo-nos iluminar a zona cinzenta iras bordas da linha que as separa, de modo a indicarmos as que em um e em outro grupo se inserem: (a) as normas de ordem pública estão voltadas à preservação das condições que asseguram e sobre as quais repousa a estrutura orgânica da sociedade, ao passo que as normas de intervenção por direção instrumentam políticas públicas cuja dinamização envolve não meramente a preservação da paz social, mas a perseguição de determinados fins, nos mais variados setores da atividade econômica; as normas de ordem pública não apenas são compatíveis com ela, mas se compõem no núcleo da ordem jurídica do liberalismo, enquanto que as normas de intervenção por direção

conduzem à transformação dessa ordem jurídica; (b) voltadas ao es- tabelecimento de um regime de segurança social, mediante a vedação de comportamentos que afetem o status quo prevalente na organiza- ção social, as normas de ordem pública incidem sobre a generalidade dos agentes, setores e atividades econômicas, de modo indistinto; já as normas de intervenção por direção preenchem o conteúdo funcio- nal de determinadas situações jurídicas, distinguindo-as de outras — o estilo das disposições de ordem pública, ademais, não é amoldável às características destas últimas; (c) as normas de ordem pública compreendem uma ordem de exceção — são proibitivas, nega- tivas, externas ao Direito Privado; as normas de intervenção por di- reção não expressam noção de exceção — compõem ordenação con- corrente com a definida pelo Direito Privado, respeitando à regulação das obrigações, em geral, e dos contratos, de modo a, como anotam René David (Prefácio a Le dirigisme économique et les contracts, de Magdi Sobhi Khalil, LGDJ, Paris, 1967, p. VII) e René Savatier (Du Droit Ci-

vil au Droit Public, 2a ed., LGDJ, Paris, 1950, p. 65), configurá-los como verdadeiros instrumentos de política econômica, transformados me- nos em uma livre construção da vontade humana do que em uma contribuição das atividades humanas, coordenadas pelo Estado, à arquitetura geral da economia nacional; (d) não se superpõem or- dem pública e Direito Público, de unk lado, e ordem privada e Direito Privado, de outro, nem o confronto de que se cuida, quando cogita-

mos da ordem pública, se esgota na oposição entre dois termos, or-

dem pública e ordem privada.

Cumpre anotar, ademais, a distinção que os franceses estabele- cem entre ordem pública econômica de direção e ordem pública econômica de

proteção. Farjat (Droit Privé de 1'Économie, PUF, Paris, 1975, pp. 306-309) observa que a primeira tende a estabelecer uma certa organização da economia nacional, enquanto a segunda tem por fim proteger, em cer- tos contratos, a parte economicamente mais fraca. Daí, também, a dis- tinção entre uma ordem pública superior e uma ordem pública inferior. A

ordem pública econômica de direção, mais próxima da ordem pública clás- sica, dela se distingue por não ser exclusivamente negativa, como no liberalismo, mas também positiva; seu conteúdo é extremamente mó-

vel. A ordem pública econômica de proteção, por outro lado, engloba dis- posições (de proteção) das quais podem eventualmente renunciar os protegidos, embora somente após a sua efetiva aquisição. A propósito, as considerações de Jacques Ghestin (Traité de Droit Civil — Les obligations

— Le contrat, LGDJ, Paris, 1980, pp. 90-91): "Ce qui justifie cet effort de qualification, malgré sa difficulté, c'est la nécessité d'y avoir recours afin d'essayer de systématiser le régime des regles qui constituent l'ordre public économique. Les regles que se rattachent à la protection de certaines catégories de personnes ne peuvent, en effet, être soumises au même régime que celles de l'ordre public de direction. Tout d'abord, si une regle impérative vise à protéger l'une des parties contre l'autre, il semble difficile d'ouvrir à cette derniere l'action en annulation. On a vu également que l'ordre public de protection constituait un minimum auquel les contracts pouvaient toujours déroger à la conditon que ce soit en faveur de la partie protégée. Un tel principe est évidemment inapplicable à l'ordre public de direction, qui vise à imposer une politique économique et sociale. Enfin il est logique de permettre à la personne protégée de renoncer au bénéfice des droits qu'elle a ainsi obtenus, une fois du moins que sa protection n'est plus nécessaire. Une telle renonciation ne se conçoit guere pour l'ordre public de direction."

Além disso, o vocábulo ordem porta em si, na sua rica ambi- güidade, uma nota de desprezo em relação à desordem, embora esta, em verdade, não exista: a desordem é apenas, como observa Gofredo da Silva Telles Júnior,2 uma ordem com a qual não esta-

mos de acordo. A defesa da ordem, desta sorte, sobretudo no cam- po das relações sociais e de sua regulação, envolve uma prefe-

rência pela manutenção de situações já instaladas, pela preserva- ção de suas estruturas.

Esta preferência, se posta em termos radicais, envolverá uma op- ção pelo imobilismo, o que resulta insustentável, visto que mesmo as estruturas são, concomitantemente, ato e potência: toda estrutura é, em ato, o que é e, potencialmente, uma nova estrutura.

Assim, a passagem de uma ordem para outra envolveria a ruptura das estruturas da primeira. Esta suposição subjaz nas afirmações de que à ordem jurídica liberal sucede uma ordem jurídi- ca intervencionista. E, ainda que isso, muitas vezes, não seja ex- plicitamente declarado, o que marcaria essa sucessão seria a am- pliação dos contornos da ordem jurídica liberal, decorrente da "regulação" da ordem econômica.

Aqui, também, inúmeras vezes, uma nota de ressentimento ideoló- gico. A ordem jurídica liberal ratificaria e reforçaria uma ordem (social)

espontânea, ao passo que a ordem jurídica intervencionista pretenderia a substituição dessa ordem espontânea por outra: daí a perniciosidade da ordem jurídica intervencionista, que estaria voltada à exclusão do

natural, em benefício do artificial.

Nisso a suposição de que essa "regulação" seria uma inova- ção da ordem jurídica intervencionista.

17. A expressão "ordem econômica" é incorporada à lingua- gem dos juristas, sobretudo — mas também do direito — a partir da primeira metade deste século. Sob esse uso, de expressão nova, repousa, indiscutida — e como se fora indiscutível — a afirma- ção de que a ordem econômica (mundo do ser) do capitalismo foi rompida. Para tanto contribui, com enorme eficácia, a Constitui- ção de Weimar, de 1919.

Entre nós, a referência a uma "ordem econômica e social", nas Constituições de 1934 até a de 1967, com a Emenda n. 1, de 1969 — salvo a de 1937, que apenas menciona a "ordem econô- mica" — e a duas ordens, uma "econômica", outra "social", na Constituição de 1988, reflete de modo bastante nítido a afetação ideológica da expressão. O que se extrai da leitura despida de

senso crítico, dos textos constitucionais, é a indicação de que o capitalismo se transforma na medida em que assume novo cará- ter, social.

Além disso, faz-se também alusão a uma ordem econômica in- ternacional,3 expressão que, a um tempo só, conota ordem jurídi-

ca e ordem de fato.

A reiterada decisão, da Assembléia Geral da ONU, de estabelecer uma Nova Ordem Econômica Internacional — v.g., Resoluções 3.281 (XXIX), de 12.12.74, que aprovou a Carta de Direitos e Deveres Econô- micos dos Estados, e 3.362 (b-VII), de 16.9.75, sobre Desenvolvimento e Cooperação Econômica Internacional — supõe a preexistência de uma (velha) Ordem Econômica Internacional, que é necessário substituir por uma nova ordem como tal. Tratar-se-ia então, a velha, de uma or- dem de fato; a nova, de uma ordem normativamente regulada (Héctor .Gross Espiell, "El Nuevo Orden Econômico Internacional", in Derecho

Econômico Internacional, Jorge Castaneda et alii, Fondo de Cultura Econômica, México, 1976, p. 84). Dominique Carreau, Patrick Juillard e Thiebaut Flory (Droit International Économique, LGDJ, Paris, 1978, p. 24) a referem como a soma dos princípios diretivos e das regras jurídicas que organizam as trocas entre espaços econômicos sub- metidos a soberanias estatais diversas — uma ordem jurídica, pois. Já Julian D. M. Lew ("La loi applicable aux contracts internationaux dans la jurisprudence des tribunaus arbitraux", inLe contract économique

international, Etablissements Bruylant e Editions A. Pedone, Bruxelas e Paris, 1975, p. 154), distinguindo ordem pública interna, ordem pública

externa e ordem pública internacional — mas todas elas visualizadas des- de a perspectiva do Direito Internacional Privado e não do Direito In- ternacional Público —, define a última como a ordem pública do jus

gentium, referindo-a como equivalente à regra da moralidade interna- cional.

Daí por que se impõe apartarmos distintas conotações sob as quais a expressão é usada. As anotações de Vital Moreira4 são

extremamente úteis:

— em um primeiro sentido, "ordem econômica" é o modo de ser empírico de uma determinada economia concreta; a expressão, aqui, é 3. Washington Peluso Albino de Souza, Direito Econômico, Saraiva, São Paulo, 1980, pp. 207 e ss.

termo de um conceito de fato e não de um conceito normativo ou de valor (é conceito do mundo do ser, portanto); o que o caracteriza é a circunstância de referir-se não a um conjunto de regras ou normas re- guladoras de relações sociais, mas sim a uma relação entre fenômenos econômicos e materiais, ou seja, relação entre fatores econômicos con- cretos; conceito do mundo do ser, exprime a realidade de uma inerente articulação do econômico como fato;

— em um segundo sentido, "ordem econômica" é expressão que designa o conjunto de todas as normas (ou regras de conduta),5 qual- quer que seja a sua natureza (jurídica, religiosa, moral etc.), que res- peitam à regulação do comportamento dos sujeitos econômicos; é o sistema normativo (no sentido sociológico) da ação econômica;

— em um terceiro sentido, "ordem econômica" significa ordem

jurídica da economia.

18. O esclarecimento dessas distinções é indispensável à cor-

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