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É inteiramente equivocada a tentativa de conceituar-se serviço público como atividade sujeita a regime de serviço público.

A NOÇÃO DE ATIVIDADE ECONÔMICA; O DIREITO ECONÔMICO

41. É inteiramente equivocada a tentativa de conceituar-se serviço público como atividade sujeita a regime de serviço público.

Ao afirmar-se tal — que serviço público é atividade desempenha- da sob esse regime — além de privilegiar-se a forma, em detri- mento do conteúdo, perpetra-se indesculpável tautologia. Deter- minada atividade fica sujeita a regime de serviço público porque é serviço público; não o inverso, como muitos propõem, ou seja, passa a ser tida como serviço público porque assujeitada a regi- me de serviço público.25

De outra banda, é certo inexistir uma totalidade normativa que se possa referir como regime de serviço público, além do que, sobremodo quando cuidamos das empresas estatais — empresas públicas e sociedades de economia mista — que exploram ativi- dade econômica em sentido estrito ou que prestem serviço público, impõe-se distinguirmos entre diversos níveis ou modelos de re- gimes jurídicos.26 A distintos regimes jurídicos, assim, sujeitam-

se umas e outras, segundo se esteja a cogitar de traços estruturais ou funcionais, internos ou externos, delas.

Parece-me justificada a transcrição, aqui, com pequenas altera- ções que o atualizam, de trecho de meu "Saque de títulos de crédito contra a Administração Direta", cit., RDP 68/332-334.

Quando nos referimos ao regime de serviço público, estamos sem- pre tomando sob consideração um modelo específico, aplicável à hipó- tese particularmente caracterizada de que cogitamos, cujo formato é demarcado mediante a aplicação de alguns princípios de Direito Pú- 25. Meu Direito, conceitos e normas jurídicas, cit., p. 111.

26. V. meus "Desistência da desapropriação de ações", cit., pp. 34-35; "Lu- cratividade e função social nas empresas sob controle do Estado", cit., p. 54; "Empresas estatais ou Estado empresário", cit., pp. 112 e ss.; em especial, "Sa- que de títulos de crédito contra a Administração Direta", in RDP 68/332-335.

blico, sobre aquela hipótese incidentes. Não há, pois, senão princípios de Direito Público — ou, mais especificamente, de Direito Administra- tivo __ e a definição do regime de Direito Público é conseqüente à cons-

trução de modelo diferenciado em relação a cada caso concreto a que deva ser aplicado.

Isso não significa que tal construção seja produto de um exercício arbitrário — ou mesmo discricionário — do seu agente, visto que o seu desenvolvimento encontra parâmetros de vinculação não apenas no conteúdo e na vocação teleológica daqueles princípios, mas também em pautas enunciadas pelo direito positivo. Não há que tratar, neste passo, da análise detida dos princípios de Direito Administrativo. Cum- pre-me deixar bem fixada, tão-somente, na oportunidade, a circuns- tância de que a construção dos modelos de regime jurídico — porque há vários deles, aplicáveis a situações objetivas díspares entre si — é nutrida pelo recurso à análise dos princípios de Direito, em cada uma de suas porções sob consideração (Celso Antônio Bandeira de Mello,

Curso de Direito Administrativo, 25â ed., Malheiros Editores, 2008, de-

senvolve descrição do regime jurídico-administrativo estruturando-o so- bre dois princípios fundamentais e dezenove corolários).

Apenas para exemplificar: ao tratarmos das empresas estatais — entidades da Administração Indireta — que desenvolvem tanto servi- ços públicos quanto iniciativa econômica, deveremos, tendo em vista a sua aplicação a um e a outro tipo de atuação, construir modelos especí- ficos de regimes de Direito Público e de Direito Privado, sempre desde a ponderação do conteúdo e da finalidade dos princípios que os infor- mam. No caso específico das empresas estatais, tomando também como parâmetro para esta construção a disposição expressa no § l2 do art.

173 do texto constitucional.

Não são simples, no entanto, as tarefas que tais construções en- volvem, cumprindo sejam elas desenvolvidas dentro de clima de ex- trema prudência. Há que notar, por um lado, que a mera referência a um princípio pode ser enganadora. Tome-se como exemplo o princípio da legalidade, que está na raiz tanto dos comportamentos públicos quanto privados. Não resta dúvida quanto ao fato de que, sempre que posso coagir judicialmente um devedor contratual ao cumprimento de uma prestação, sob a disposição contratual que autoriza à coação judi- cial há uma permissão de lei para tanto. A singela referência, sem explicitação, portanto, ao princípio da legalidade, na sujeição a ele da Administração, é imprecisa e insuficiente.

Em que termos se explicita o princípio, nesta hipótese? Que aforis- ma sintetiza? O permissum videtur in omne quod non prohibitum ou o do

quae non sunt permissa prohibita intelliguntur? É necessário não esque- cermos a fórmula de Meyer-Anschütz: "A Administração não é uma

mera aplicação da lei, mas uma atividade dentro dos limites legais... A lei não é pressuposto (Voraussetzung), mas limite para a atividade adminis- trativa. A administração pode fazer não meramente aquilo a que a lei expressamente a habilite, mas tudo quanto a lei expressamente não lhe proíba" (cf. Eduardo Garcia de Enterría, Legislación Delegada, Potestad

Reglamentaria y Control Judicial, p. 286) — na qual se consagra o primei- ro apotegma e se dá sustentação à doutrina do negative Bindung. Ape- nas na medida em que parte ponderável da doutrina insurgiu-se con- tra tal entendimento é que se deu a substituição daquela doutrina — na consagração do segundo apotegma — pelo do positive Bindung: a Administração não pode atuar neste ou naquele sentido senão quando a lei expressamente a tanto o autorize. Na expressão de Winkler: (cf. Eduardo Garcia de Enterría, ob. cit., p. 289) "Keine Handlung ohne Cesetz" — nenhuma atuação sem lei. Afirmar-se simplesmente que, sob o regi- me de Direito Público, a Administração está sujeita ao princípio da lega- lidade, nada significa, eis que o mesmo princípio permeia toda a atua- ção dos agentes privados, em regime de Direito Privado. Pois não é jus- tamente a consideração dos diversos conteúdos que as doutrinas do comprometimento positivo (positive Bindung) e do comprometimento negativo (negative Bindung) atribuem ao princípio que ordinariamente leva a, com singeleza didática, apontarmos a distinção entre os univer- sos do Direito Público e do Direito Privado? — no primeiro se pode fazer o que a lei permite; no segundo, o que a lei não proíbe. Se pre- tendermos, portanto, relacionar o princípio da legalidade ao regime de Direito Público, forçoso seria referirmo-lo, rigorosamente, como prin-

cípio da legalidade sob conteúdo de comprometimento positivo.

Um segundo momento de complexidade é penetrado quando nos colocamos diante de determinadas situações objetivas, dotadas de apa- rente incongruência. Exemplifico. Lúcia Valle Figueiredo, em conheci- do trabalho (Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista, p. 1), pre- tende resolver a seguinte questão: a classificação das empresas públi- cas e sociedades de economia mista, que as inclui no campo do Direito Privado, parte de um modelo a priori ou, na realidade, esses entes sub- metem-se ao mesmo regime que as de personalidade privada? A p. 2 do referido trabalho a autora contesta possam as empresas públicas e as sociedades de economia mista inserir-se sob a égide do Direito Pri- vado, por serem entes governamentais. A p. 31 argumenta que umas e outras são "formas híbridas" e não se inserem quer na classificação das de Direito Público, quer nas de Direito Privado. À p. 84, finalmen- te, afirma que, nas suas relações obrigacionais, ora se submetem elas ao regime de Direito Privado, ora ao do Direito Público. Estou de acor- do com esta última afirmação, que a autora teria alcançado de modo mais direto se houvesse originariamente anotado a distinção existente entre as empresas públicas e sociedades de economia mista que desen- volvem iniciativa econômica e as que prestam serviço público. Discor-

do, contudo, de sua contestação, nos termos da qual não poderiam, entes governamentais, inserir-se sob a égide do Direito Privado.

O que conduz a autora àquela contestação, segundo me parece, é a não observação de que há distintos níveis de incidência dos princípios

jurídicos, o que nos leva à construção de modelos de regimes jurídicos em

diversos níveis. Esse é aspecto fundamental, que merece ser amplamen- te enfatizado.

Permanecendo a cogitar das empresas estatais, direi que há mar- cante distinção entre os seus momentos estrutural e funcional. Daí por- que são objetos distintos os regimes jurídicos estrutural e funcional das empresas estatais. Quando penso no regime funcional das empresas es- tatais — de uma determinada empresa estatal, sendo mais preciso — estou a dela cogitar em seu dinamismo, isto é, no desenvolvimento das suas atividades. Ora, estas atividades podem ser visualizadas des- de a perspectiva dos particulares — relações da empresa estatal com os particulares — ou desde a perspectiva do próprio Estado — relações da empresa estatal com o Estado. Quando penso no regime estrutural da empresa estatal, estou a dela cogitar em termos estáticos, isto é, em seu formato institucional. Posso — e devo, imperiosamente — então, veri- ficar que há um regime jurídico estrutural (mais de um, em verdade: note-se a distinção entre empresas públicas, sociedades de economia mista e empresa estatal) — v. meu Elementos de Direito Econômico, cit., p. 102) e, pelo menos, dois sub-regimes jurídicos funcionais aplicáveis às empresas estatais. Os últimos entendidos como funcional interno — re- lações de empresa com o Estado — e funcional externo — relações da empresa com o setor privado. No nível do regime jurídico estrutural de- bateremos, por exemplo, a caracterização da empresa como sociedade de economia mista ou não; no nível do regime jurídico funcional interno debateremos, por exemplo, o tipo e a extensão dos controles estatais a que está sujeita a empresa; no nível do regime jurídico funcional externo debateremos, por exemplo, se o contrato celebrado entre a empresa e particulares é do tipo denominado administrativo ou privado.

Não há nenhuma interpenetração necessária entre tais regimes. E não posso, por isso mesmo, tomando de um determinado princípio — que, por exemplo, condicione o seu regime estrutural — lançá-lo de um só golpe sobre os âmbitos dos demais regimes que, no nível funcio- nal, aplicam-se à empresa estatal. Assim, seguindo na exemplificação, verifico que, em nome do princípio da supremacia do interesse públi- co, o Estado atua, no interior da sociedade de economia mista (como tal definida para os efeitos do Decreto-lei n. 200/67; v. meu Direito, con-

ceitos e normas jurídicas, cit., pp. 87 e ss.) — momento estrutural: regime jurídico estrutural — sob privilégio, em posição assimétrica em rela- ção aos acionistas privados; não obstante, desde que o objeto de atua- ção da sociedade de economia mista seja a exploração de atividade

econômica em sentido estrito, não estará o seu regime jurídico funcio- nal externo informado pelo princípio da supremacia do interesse pú- blico, como o impõe, aliás, o § Ia do art. 173 do vigente texto constitu- cional. De outra parte, se cuidarmos de mera empresa estatal, na qual não atue em situação de privilégio o Estado quanto aos acionistas pri- vados, mas sim em posição simétrica em relação a eles, não contribui- rá, neste caso, o princípio da supremacia do interesse público, à con- formação do regime jurídico estrutural da empresa; não obstante, nes- te caso, se o objeto de sua atuação consubstancia a prestação de serviço público, estará o regime jurídico funcional externo informado justa- mente pelo princípio da supremacia do interesse público.

Estou inteiramente convencido de que o discernimento do equa- cionamento de distintos regimes jurídicos, que em distintos níveis tem aplicação sobre as empresas estatais, extermina grande parte das difi- culdades a superar não apenas no enfrentamento da tarefa de constru- ção de seus modelos, mas também no que tange à compreensão da circunstância de entidades de direito privado serem porém entes go- vernamentais e atuarem ora no âmbito dos serviços públicos, ora no campo da atividade econômica em sentido estrito.

Sobre o regime jurídico das empresas estatais que prestam ati- vidade econômica em sentido estrito e sua equivalência ao regime jurídico das empresas privadas, veja-se ADI-MC 1.552-DF, DJU de 17.4.1998;AI-AgR337.615-SP, DJU de 22.2.2002; eADI 1.998-DF, DJU de 7.5.2004. Sobre o regime aplicável às empresas estatais que pres- tam serviço público, a impenhorabilidade dos seus bens e sua imu- nidade tributária, veja-se, da jurisprudência do STF, os REs 229.696- PE, DJU de 19.2.2002; 220.906-DF, DJU de 14.11.2002; 225.011-MG,

DJU de 19.12.2002; 407.099-RS, DJU de 6.8.2004; e 354.897-RS, DJU de 3.9.2004, além do RE-AgR 230.161-CE, DJU de 10.8.2001 e a AC 669-SP, DJU de 26.5.2006. Quanto à imunidade da Empresa Brasi- leira de Correios e Telégrafos, veja-se a ACO 765 e em especial a QO nessa mesma ACO 765. Veja-se ainda, da jurisprudência do STF sobre o regime jurídico das empresas estatais prestadoras de ativi- dade econômica em sentido estrito, no tocante à aplicação da legis- lação trabalhista: RE 165.304-MG, DJU de 15.12.2000; ADI 1.515- DF, DJU de 11.4.2003; e AI-AgR 468.580-RJ, DJU de 3.2.2006. Sobre a determinação constitucional de contratação de funcionários por concurso público para todas as empresas estatais, vide MS 21.322- DF, DJU de 23.4.1993; SS-AgR 837-ES, DJU de 13.6.1997; e AI-AgR 680.939-RS, DJU de 1.2.2008. Sobre questões de obrigação tributá- ria e privilégios fiscais, veja-seACO-AgR 765-RJ, D/LI de 15.12.2006.

Ainda sobre o regime jurídico das empresas estatais, veja-se, da jurisprudência do STF, a ADI-MC 3.578-DF, D/li de 24.2.2006. So- bre lei estadual que trata de matéria atinente às empresas estatais, vide ADI 234-RJ, DJU de 15.9.1995. Sobre a obrigação constitucio- nal de realizar licitações, vide AC-MC-QO 1.193-RJ, DJU de 30.6.2006. Quanto às empresas estatais e entidades estatais que ex- ploram atividade econômica em sentido estrito, também da juris- prudência do STF, a ADI 83. No RE 172.816 (Rei. Ministro Paulo Brossard, DJU 13.5.1994), lê-se: "O artigo 173, § 1Q, nada tem a ver

com a desapropriabilidade ou indesapropriabilidade de bens de empresas públicas ou sociedades de economia mista; seu endere- ço é outro; visa a assegurar a livre concorrência, de modo que as entidades públicas que exercem ou venham a exercer atividade econômica não se beneficiem de tratamento privilegiado em rela- ção a entidades privadas que se dediquem a atividade econômica na mesma área ou em área semelhante". Em ED no RE 230.051, o STF fixou o entendimento de que o artigo 12 do Decreto-lei 509/ 1969 foi recepcionado pela Constituição, concluindo que à Em- presa Brasileira de Correios e Telégrafos é aplicável o privilégio da impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços.

A compreensão dessa multiplicidade de regimes jurídicos é indispensável — creio — à correta apreensão do sentido normati- vo inscrito no § Ia do art. 173 do vigente texto constitucional.

42. Embora, como se viu, resulte sempre dificultosa a identi-

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